O uso tradicional das folhas de coca e a Lei de Drogas
1 de fevereiro de 2025, 6h01
Vestígios arqueológicos encontrados no Vale Nanchoc, no Peru, indicam que há 8 mil anos, antes da roda, do alfabeto e do decálogo, a humanidade já mascava folhas de coca. [1] Os incas consideravam a planta sagrada, um presente de Inti, o Deus Sol. Segundo a lenda, Manco Capac, o primeiro inca (considerado o filho do Sol), foi enviado por seu pai até as águas do lago Titicaca para trazer aos homens algumas boas-novas: as leis da agricultura, os princípios da arte e as primeiras sementes da Erythroxylum coca. [2]
Durante a colonização espanhola, surgiu uma nova versão, com um quê de profética. Khana Chuyma era um sacerdote que vivia em uma ilha do lago Titicaca. Sua função era proteger o “tesouro do Deus Sol”. Foi capturado pelos espanhóis e resistiu às torturas sem revelar a localização do tal tesouro. Em reconhecimento, o deus lhe ofereceu um pedido. O sacerdote clamou por algo que ajudasse seu povo a suportar a escravidão e a humilhação. A divindade então lhe presenteou com a coca, indicando que a planta seria uma fonte de alívio para os incas e uma maldição para os estrangeiros que ousassem explorá-la. [3]
Seja qual for a origem mítica, o uso das folhas de coca pelos povos andinos permanece até os dias de hoje. Por um lado, o consumo é medicinal, sendo a planta vista como a solução para problemas digestivos, hipoglicemia e contra o “soroche”, o mal da altura que tanto afeta os habitantes da serra andina. Por outro, é religioso, constituindo uma espécie de oferenda aos espíritos ancestrais. [4] Mas talvez a sua dimensão mais importante seja a cultural. O consumo das folhas é uma prática secular indissociável do “modo de ser” dos membros das sociedades andinas, que inclusive trabalham enquanto mascam a planta milenar.
Em alguns países, o status da coca chega mesmo a ter um reconhecimento constitucional. É o caso da Bolívia, onde o artigo 384 da Constituição de 2009 alça a planta ao patamar de “fator de coesão social”, sendo considerada também um patrimônio cultural e um recurso natural renovável da biodiversidade da Bolívia.
Legislação restritiva no Brasil
O Brasil, ao contrário, seguindo a maioria dos países, tem uma legislação bem restritiva em relação à planta. O artigo 33, § 1°, I e II, da Lei 11.343/2006, que criminaliza, de forma equiparada ao tráfico de drogas, dentre outras condutas, a de quem traz consigo ou cultiva “matéria-prima destinada à preparação de drogas” é uma norma penal em branco complementada pela Portaria SVS/MS nº 344/1998. Essa, na sua Lista-E (lista de plantas e fungos proscritos que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas), inclui a Erythroxylum coca Lam no item ‘4’.
Não pretendemos aqui discutir a possibilidade de regulação administrativa do uso da folha de coca, como ocorreu com a Ayahuasca, para uso estritamente religioso, pela Resolução nº 01/2010 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), e com produtos derivados da Cannabis sativa, para tratamento de saúde, pela Resolução RDC nº 660/2022 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O nosso intuito é apenas o de analisar a configuração atual da Lei de Drogas em face da utilização tradicional das folhas de coca, apontando para as problemáticas consequências penais.
Pois bem, o principal problema da legislação, no nosso sentir, diz respeito à impossibilidade de enquadramento da conduta no caput artigo 28 — que tipifica o uso como crime de menor potencial ofensivo.
É assim, porque, no caput, a lei faz menção apenas às drogas, isto é, às “substâncias de uso proscrito” (Lista — F da Portaria 344/1998), de modo que aí não se inclui a Erythroxylum coca, que é elencada pela portaria entre as “plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas” (Lista — E).
Por consequência, o crime, em tese, acaba sendo o do artigo 33, § 1º, I, pois é nele que se faz a menção ao porte de “matéria-prima destinada à preparação de drogas”, onde poderia se enquadrar a Erythroxylum coca. Foi nesse sentido o entendimento da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no CC 172.464/MS, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca:
“Inviável o enquadramento do transporte de folhas de coca no tipo previsto no art. 28 da Lei 11.343/2006, que descreve o transporte de droga para consumo pessoal. Isso porque, a folha de coca (“erythroxylum coca lam”) é classificada no Anexo I – Lista E – da Portaria/SVS n. 344, de 12/5/1988 – que aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial – como uma das plantas proscritas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas. Seja dizer, ela não é, em si, considerada droga.” (CC 172.464-MS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, por unanimidade, DJe de 16/06/2020.)
O relator, implicitamente, chega a uma importante conclusão ao estabelecer que “a conduta do investigado melhor se amoldaria ao tipo descrito no § 1º, I, do artigo 33 da Lei 11.343/2006 se, e apenas se, ficar demonstrado, ao final do inquérito ou da ação penal que o intuito final do investigado era o de, com as folhas de coca, preparar drogas”. Vale dizer, os termos utilizados pelo § 1º, I, do artigo 33 da Lei de Drogas indicam que apenas o porte de matéria-prima destinada à preparação de drogas é crime. Se tal destinação não for comprovada, o fato é atípico.
Tese nesse sentido fora defendida anteriormente pelo Ministério Público de Rondônia, que pleiteou a absolvição do destinatário de uma encomenda de 478 g de folhas de coca, com base no artigo 386, III, do CPP (STJ – HC: 175958 RO 2010/0106936-1, Relator: Ministra Laurita Vaz, DJe de 05/09/2012). Lamentavelmente, o pleito não foi apreciado devido à ocorrência de prescrição. Em decisão recente, porém, o TJ-SP absolveu, por atipicidade da conduta, um réu que transportava 5.600 g de folhas de coca. Considerou-se que a falta de provas acerca da destinação ilícita conduz à atipicidade, por isso o fundamento utilizado para a absolvição acabou sendo o inciso VII (e não o III) do artigo 386 do Código de Processo Penal (TJ-SP – APR: 15135923720208260228, São Paulo, Relator: Sérgio Mazina Martins, 12ª Câmara de Direito Criminal, DJe de 04/10/2023).
Folhas de coca x cocaína
À primeira vista, poder-se-ia argumentar, então, que a situação de quem é abordado portando folhas de coca é mais benéfica do que a de quem é encontrado trazendo consigo pequena quantidade de cocaína, por exemplo. Mas trata-se de um juízo equivocado, pois, no primeiro caso, o agente possivelmente terá que passar pelo inferno do inquérito policial — estando sujeito à deflagração de uma ação penal e à imposição de prisão, inclusive em flagrante e preventiva —, até que a autoridade competente chegue à conclusão acerca da tipicidade de sua conduta. No segundo, se as circunstâncias indicarem uso, será lavrado termo circunstanciado, não havendo prisão em flagrante (artigo 48, § 2º), e as possíveis penas (artigo 28, I, II e III) são todas de caráter educativo, mantida a primariedade do agente.
Em outros termos, o artigo 33, § 1º, I, da Lei de Drogas foi construído de tal forma, que é exigida uma grande racionalidade por parte das autoridades quando da avaliação das circunstâncias que envolvem o caso concreto (quantidade de folhas, elementos antropológicos etc). A repercussão será brutal: de um lado, a atipicidade; do outro, até 15 anos de reclusão por um crime equiparado a hediondo.
Apesar de tudo, a absolvição não é uma conclusão óbvia. Considerando a proibição da entrada da planta no território nacional pela Portaria 344/1998, o juiz poderia, teoricamente, no momento da sentença, alterar a capitulação jurídica do fato para o crime de contrabando (artigo 344-A do CP), eis que esse tipifica a importação de “mercadoria proibida”. Tanto existe tal hipótese que alguns advogados foram levados a afiançar a tese de forma subsidiária, dado que a pena cominada é bem menor (TRF-4 – ACR: 50032588020214047005 PR 5003258-80.2021.4.04.7005, Relator: Danilo Pereira Junior, DJe de 9/11/2021, 7ª Turma).
Não nos parece ser possível nem recomendável essa tipificação. É inegável que o bem jurídico protegido pelo artigo 344-A não é exclusivamente patrimonial, pois envolve a vontade do Estado de controlar a entrada de determinados produtos, visando à segurança e à saúde pública, como foi definido pelo STJ no AgRg no REsp 1.479.836/RS. A princípio, essa natureza “pluriofensiva” do crime permitiria, em tese, que o ato de importar folhas de Erythroxylum coca para uso tradicional fosse enquadrado no tipo penal.
No entanto, é importante ressaltar que a tipicidade não se limita apenas ao aspecto formal — isto é, à correspondência entre o fato e a descrição típica —, mas também ao aspecto material, ou seja, à lesividade da conduta ao bem jurídico protegido. E quanto a esse último aspecto, o grau de ofensa aos bens tutelados pelo artigo 344-A é tão irrisório, que nos parece ter incidência o princípio da insignificância, de modo a excluir a tipicidade material da conduta.
Importação de sementes de cannabis sativa
Raciocínio semelhante foi empregado pelo STJ no REsp nº 1.838.937 – SP (2019/0280673-0), em caso envolvendo a importação de sementes de Cannabis sativa. Em entendimento mais recente, no julgamento do Tema Repetitivo nº 1143, a 3ª Seção do STJ firmou a tese de que “o princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar mil maços”. (REsp: 1.971.993 SP 2021/0371977-2.)
Ora, se o princípio da insignificância pode ser aplicado para sementes de Cannabis sativa e para mil cigarros (!), não há por que deixar de aplicá-lo para o sujeito que importa folhas de coca com o objetivo de mascá-las ou infundi-las para fazer chá, por exemplo.
De todo modo, classificar a conduta de importar as folhas de coca para uso tradicional no tipo do artigo 334-A do Código penal se constitui como mera possibilidade teórica — como mencionado, já afiançada por alguns advogados —, não respaldada pela jurisprudência pátria. Até porque, em geral, a denúncia oferecida só costuma imputar o crime de tráfico de drogas por equiparação e não o contrabando. A melhor solução continua sendo a da absolvição pela atipicidade — formal e material.
Ainda, há julgados em que a absolvição ocorre com base em erro de proibição inevitável (artigo 386, VI, do CPP), como ocorreu num caso envolvendo ré de origem boliviana que trouxe as folhas para revendê-las, como produtos típicos, à comunidade boliviana de São Paulo (TRF-3 – ApCrim: 5003731-72.2023.4.03.6181 SP, Relator: Jose Marcos Lunardelli, 11ª Turma, DJe de 12/03/2024).
Embora, em um primeiro momento, a solução possa se afigurar como possível, trata-se, na verdade, de um erro dogmático. Como a escusabilidade do erro de proibição — que exclui o crime — consiste justamente na falta de consciência da ilicitude (penal) da conduta, o instituto só tem aplicação quando se está diante de um injusto penal. Porém, no caso de revenda (que também poderia ser transporte, importação etc) das folhas de coca para comunidade que faz uso estritamente tradicional, trata-se de uma conduta atípica, já que a planta não se destina à preparação de drogas (artigo 33, § 1º, I). De sorte que não é cabível falar em falta de consciência da ilicitude. Dizendo de outro modo, não há crime a ser excluído pelo instituto. No entanto, a aplicação é plenamente possível na remota hipótese de denúncia por contrabando (artigo 334-A do CP).
Problemas jurídicos para porte de folhas de coca
Eis os problemas jurídicos (e as soluções) para quem for flagrado com folhas de coca para uso tradicional. No caso de quem semeia, cultiva ou faz colheita (artigo 33, § 1º, II, da Lei de Drogas), a conduta será típica caso as plantas se constituam — isto é, se transformem — em matéria-prima para a preparação de drogas. No caso de destinação tradicional, porém, em consonância com a interpretação que os tribunais conferem ao inciso I, entendemos não haver possibilidade de tipificação.
No entanto, dúvida pode surgir quanto à possibilidade de se enquadrar essa última conduta no artigo 28, § 1º, da Lei de Drogas: “Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”.
A resposta nos parece ser negativa. Estudos acadêmicos já concluíram que a “folha de coca, utilizada de maneira tradicional e culturalmente apropriada, apresenta um perfil de segurança significativamente favorável e reconhecidos benefícios medicinais”. [5] Além disso, como já se mencionou, é disseminado entre os membros de comunidades andinas o hábito de mascar as folhas de coca enquanto trabalham — lembremos que há cafeína na sua composição.
Nesse sentido, as folhas de coca não causam mais “dependência física ou psíquica” do que uma xícara de café, não sendo razoável a sua subsunção ao artigo 28, § 1º. Em harmonia com a jurisprudência a respeito de quem porta as folhas para uso tradicional, nos parece que a consequência deve ser a mesma para quem semeia, vale dizer, a atipicidade da conduta. Ao contrário, se o objetivo fosse, a partir do cultivo das folhas, o de produzir pequena quantidade de cocaína, aí sim a conduta se enquadraria.
Não queremos passar a impressão de que esse cenário é o ideal, afinal a Erythroxylum coca não deixa de ser uma planta proscrita que, após sofrer um complicado processo químico, pode gerar a cocaína e o crack (subproduto da pasta da cocaína). Assim, o legislador andaria bem se reconfigurasse o artigo 28 da Lei de Drogas, pela inserção de um novo parágrafo, para enquadrar a conduta de quem, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo (pensamos, no caso específico das folhas de coca, que também seriam adequados outros verbos como “importar”), em pequena quantidade, plantas que podem gerar substância entorpecente para uso pessoal, ainda que isso se dê em um contexto estritamente tradicional.
As penas também precisariam ser reformuladas, pois advertência sobre os efeitos e comparecimento a curso educativo não fariam sentido, considerando que as folhas de coca não são drogas propriamente ditas.
É claro que, preferivelmente, órgãos como a Anvisa e o Conad haveriam de regulamentar com rigor essa questão, de modo que apenas a conduta de quem fosse flagrado sem autorização seria enquadrada no artigo 28.
A solução da absolvição pela atipicidade da conduta — que parte da jurisprudência parece ter agasalhado — é a resposta juridicamente cabível diante de uma legislação imperfeita, mas está longe de ser a ideal.
[1] DILLEHAY, Tom D. et al. Early Holocene coca chewing in northern Peru. Antiquity, Durham, v.84, n.236, p.939-953. 2010.
[2] BARRETO, I. F. “O uso da folha de coca em comunidades tradicionais: perspectivas em saúde, sociedade e cultura”. História, ciências, saúde, vol. 20, n. 2, abril-junho, 2013.
[3] CASINI, Benedetta. Memorias de una planta. Estudios Curatoriales, n. 9, 2019.
[4] BOITEUX, Luciana; CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Da folha de coca à cocaína: os direitos humanos e os impactos das políticas internacionais de drogas nas populações nativas da Bolívia. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=5e9f92a01c986baf. Acesso em: 10 jan. 2025.
[5] PEREIRA, Gustavo José Vasco et al. Tradicionalidade das espécies de Erythroxylum conhecidas como “coca” na região Sul-Americana: história, propriedades químicas e aspectos farmacológicos.” Brazilian Journal of Health Review, vol. 6, no. 6, 2023. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/65845/47027. Acesso em: 27 jan. 2025.
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