O direito de defesa, mais uma vez, sob ataque no país
1 de fevereiro de 2025, 13h32
O excesso promovido pelas autoridades na busca pela responsabilização penal de pessoas envolvidas em fatos criminoso não é novo no Brasil. E junto com essa lamentável circunstância, numa consequência nefasta para toda sociedade, tem-se o tolhimento do direito de defesa daqueles que normalmente são os escolhidos como os principais inimigos da vez.
No início de nossa república, o advogado Ruy Barbosa, após ter integrado a administração do primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, acabou se afastando do governo para, em seguida, e tão logo assumida a função pelo vice-presidente, Marechal Floriano Peixoto, promover a defesa de pessoas por quem não tinha a menor afinidade de ideias e conceitos, presas e acusadas de terem tentado promover um golpe de estado por manifestarem o entendimento de que diante da renúncia do então primeiro presidente, o correto seria a convocação de novas eleições.
Ficou famosa, naquele período, a manifestação atribuída ao Marechal Floriano Peixoto, em razão das prisões autoritárias e medidas adotadas pelo advogado Ruy Barbosa, que praticamente enfrentava sozinho o obscuro cenário, lutando pelo direito de defasa dos acusados: “se os juízes concederem Habeas Corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o Habeas Corpus de que, por sua vez, necessitarão”.
Sabemos hoje que não só os Habeas Corpus foram negados, como os acusados acabaram sendo desterrados para a Amazônia e o advogado Ruy Barbosa, perseguido, se exilado na Inglaterra, unicamente por ter lutado pelo direito de defesa daquelas pessoas.
Anos depois desses episódios, e há tempo já gozando do conceito de ser “a mais poderosa máquina cerebral de nosso país”, como retratado por ninguém menos do que Joaquim Nabuco em sua obra “Minha Formação”, o advogado Ruy Barbosa escreveu e legou-nos os ensinamentos materializados no conhecido “O dever do advogado”:
“Todos se acham sob a proteção das leis, que, para os acusados, assenta na faculdade absoluta de combaterem a acusação, articularem a defesa, e exigirem a fidelidade à ordem processual. Esta incumbência, a tradição jurídica das mais antigas civilizações a reservou sempre ao ministério de um advogado.”
Superadas algumas décadas, outro grande advogado e defensor do direito de defesa enfrentou o mesmo quadro: excesso promovido pelas autoridades e tolhimento do direito de defesa dos acusados. Ficou famosa uma de suas passagens: “a advocacia não é para covardes”.
Heráclito Fontoura Sobral Pinto, como sabemos, era um religioso fervoroso, muito conservador, e ainda assim não poupou esforços, após ter sido nomeado pela ordem dos advogados, no auge do Estado Novo, para promover e batalhar pelo direito de defesa de Luiz Carlos Prestes, de quem divergia e, segundo o próprio advogado, “a tudo resistiu, porém, para ficar fiel às suas ideias, erradas e funestas”.
Como Ruy Barbosa, o advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto legou-nos circunspectos ensinamentos sobre o direito de defesa reunidos na obra “Por que defendo os Comunistas”:
“De minha parte, e sobretudo no desempenho do mandato que me foi outorgado por indicação do Conselho da Ordem dos Advogados, hei de reagir, como tenho reagido até agora, contra esse conformismo geral, que tudo nivela. Até hoje não recuei um passo, nem mesmo diante da prisão abusiva, ilegal e estúpida.”
Adiante, no período conhecido como ditadura militar, outro grande advogado exerceu o papel de defensor aguerrido do direito de defesa. Evandro Lins e Silva, notável tribuno, asseverou em seu indispensável “O Salão dos Passos Perdidos”:
“Na hora da aflição, na hora da prisão ilegal, violenta, arbitrária, o advogado não só é o amparo da pessoa, mas também causa um certo temor ao carrasco que prende, porque ele é a palavra da lei, é o defensor do direito, das garantias do cidadão.”
Esses, destarte, são apenas alguns exemplos de advogados que enfrentaram, no passado longínquo, o tolhimento do direito de defesa de alguns de seus constituintes; precisaríamos, pois, de muito tempo para apontar outros notáveis colegas que passaram pelas mesmas agruras e não se curvaram ao excesso promovido pelas autoridades em determinados períodos da história de nosso país.
Exercício permanente
O direito de defesa, embora incompreendido por parte da sociedade, assemelha-se à democracia: para existir, precisa ser respeitado, defendido e exercitado, permanentemente. O artigo 133 da atual Constituição é taxativo: “o advogado é indispensável à administração da justiça”; e foi exatamente para garantir essa premissa que o próprio Supremo Tribunal Federal, seguindo os direitos assegurados aos advogados no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, sumulou, sob número 14, o entendimento de que “é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Ainda assim, e sob os auspícios da legislação que havia introduzido o instituto da colaboração premiada no país, inúmeras pessoas foram presas no contexto daquilo que ficou conhecido como “operação lava jato”.
Todos sabem a dimensão dos excessos praticados: delações sem prova mantidas em sigilo; impedimento dos advogados acessarem os inquéritos policiais; emprego de métodos para dificultar o contato dos advogados com seus constituintes encarcerados provisoriamente; magistrado e membros do Ministério Público atuando em conjunto, inclusive para disseminar informações que pudessem influenciar a opinião pública. Fez-se de tudo para conseguir um juízo sumário de culpabilidade, sem que os acusados tivessem a oportunidade de se defender, adequadamente.
E foi justamente pela gravidade dos excessos praticados naquele período que muitos advogados passaram, em grupo, a defender as prerrogativas profissionais para a profícua representação de seus constituintes; como se viu naquela ocasião, e independentemente de que partido ou ideologia política fosse o investigado, os advogados se uniram para que as regras e princípios que regem o processo penal constitucional fossem categoricamente respeitadas; nada mais do que isso.
Para que fique claro, a ideologia, a opinião pessoal ou o posicionamento político partidário de cada um não têm qualquer relação com o direito de defesa. O direito de defesa deve ser garantido, e ponto final. Isso é importante para a sociedade, para a democracia e para as próprias instituições republicanas.
A ausência do direito de defesa representou uma hecatombe na França, tendo motivado até mesmo um disparo criminoso de arma de fogo contra o advogado Fernand Labori, que demonstrou, seguindo o devido processo legal, que Alfred Dreyfus havia sido acusado, julgado e condenado injustamente à prisão perpétua, por meio de circunstâncias mantidas em segredo a que nem mesmo os advogados podiam ter acesso para se manifestar.
Na indispensável obra “O Julgamento do Capitão Dreyfus”, de Nicholas Halasz, pode-se avaliar a dimensão da gravidade do que aconteceu naquele país até que o defensor tivesse tido a altivez de enfrentar os abusos e arbitrariedades cometidas contra Alfred Dreyfus, exigindo, de forma imperativa, que o direito de defesa fosse respeitado.
Supreendentemente, e passados menos de dez anos da famigerada “operação lava jato”, que pretendeu implementar, de forma absolutamente ilegítima, um juízo universal em Curitiba para julgar e condenar toda e qualquer pessoa envolvida nos fatos apurados naquela conjuntura, com a imposição de penas expressivas, apresenta-se no cotidiano dos advogados criminalistas mais uma fase de inegável dificuldade de compreensão do que está acontecendo de novo no país.
Longe de se pretender avaliar o mérito de cada processo, tem chamado a atenção de todos o elevado patamar de fixação de penas de pessoas que sem foro de prerrogativa vêm sendo condenadas, numa aparente releitura do ilegítimo juízo universal, agora no Supremo Tribunal Federal, de participar dos episódios ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023.
E não é somente isso que tem chamado a atenção. Dentro dessa mesma conjuntura, e objetivando desempenhar o exercício do direito de defesa de pessoas presas preventivamente em razão de pretensa delação premiada, mantida em segredo de todos, inclusive dos próprios advogados, tal como se fazia na operação “lava jato”, defensores do mais alto nível e respeitabilidade profissional têm se manifestado de forma concreta sobre a dificuldade de ter acesso ao material que em teoria justificaria o encarceramento provisório de seu constituinte; preso sem saber o motivo.
Não há dúvida sobre a gravidade dos fatos ocorridos no país no dia 8 de janeiro de 2023. Também não há dúvida de que todos que concorreram para a prática dos crimes consumados naquele dia merecem ser processados, julgados e condenados, na medida de suas respectivas culpabilidades, e definitivamente pelo juízo competente para essa finalidade.
Para que isso seja legítimo e adequado, contudo, há necessidade de respeitar o direito de defesa dos advogados, independentemente do partido e mote ideológico da pessoa que está sendo investigada ou processada.
Prisão preventiva decretada em razão de delação premiada mantida em segredo, inclusive dos advogados dos próprios encarcerados, definitivamente não se coaduna com o atual estágio de nosso Estado democrático de Direito, e é por isso que esperamos de todos os advogados que no passado se uniram para exigir o cumprimento das regras processuais, que façam o mesmo agora pelos colegas que vêm enfrenando o mesmo percalço, unicamente por buscarem o direito de defesa daqueles que estão sendo considerados como os principais inimigos da vez.
As circunstâncias apresentadas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em sua monumental obra após o exercício de seus dois mandatos, muito antes da introdução do instituto da deleção premiada, ocorrida no país em 2013, explicitam bem a necessidade da reflexão:
“(…) em 1975, me puseram um capuz, me ameaçaram com tortura, me interrogaram por horas a fio, sem que eu atinasse a razão nem conhecesse os fatos e situações questionadas. Sem apelar para Berlim, Maquiavel ou Weber, eu me indagava: “E se confessar o que não sei?” Como julgar moralmente a mentira de alguém diante do algoz ou da ameaça de morte?, pergunto hoje. Eu não tinha o que delatar e mais me indignei do que me amedrontei. A experiência daqueles dias sombrios me levou a julgar de modo diferente as “delações” em circunstâncias semelhantes.”
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