Complexidade do pedido de suspensão de Cadastros Ambientais Rurais na ADPF 743/DF
1 de fevereiro de 2025, 11h26
Há pouco mais de dez dias, no âmbito da ADPF 743/DF, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, proferiu decisão, com bom nível de cautela, com o seguinte teor:
[…] Além disso, durante a audiência e por meio da petição eDOC 1025, os partidos autores Rede e PSOL requereram que “o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima seja expressamente autorizado a suspender de imediato os cadastros ambientais rurais das propriedades em que se identifique desmatamento ilegal pelos sistemas do Prodes e Deter, uma vez que essa suspensão dos cadastros tem sido realizada pelas secretarias de meio ambiente dos estados”. Sobre tal requerimento determino a manifestação da União, em 10 dias úteis.
Trata-se de pedido realizado por dois partidos políticos, autores da ADPF que segue tramitando como um litígio estrutural [1].
Na ação em questão se discute de forma ampla as medidas voltadas ao combate ao desmatamento ilegal, a proteção da biodiversidade e o controle de emissões de gases de efeitos estufa oriundo dessa fonte.
Visto o pedido formulado pelos partidos parece, à primeira vista, algo razoável que a União possa, utilizando-se de dados dos satélites Prodes e Deter, realizar a suspensão dos cadastros ambientais rurais (CAR) das propriedades em que se identifique desmatamento ilegal.
Sendo todos os entes federados competentes, com atribuição constitucional, para a defesa e proteção do meio ambiente, juridicamente parece não haver dúvida sobre tal possibilidade, o que encerraria, de forma muito fácil e rápida, a avaliação jurídica sobre a proposição e estaria dada, portanto, a competência ao Ministério do Meio Ambiente a realizar os bloqueios dos imóveis no âmbito do CAR.
Contudo, a vida real não se afigura assim tão simples ainda que o argumento de face seja a proteção ambiental e é aqui que uma decisão judicial precipitada e sem a compreensão dos aspectos de fato, sociais e econômicos envolvidos, pode criar um imbróglio sem precedentes na execução de política pública necessária e legítima que é a do combate ao desmatamento ilegal.
A cautela adotada pelo ministro Flavio Dino parece acender um facho de luz sobre o tema e espera-se que esse facho se torne um grande farol.
Isto porque o conjunto da legislação nacional sobre a legalidade e legitimidade de imóveis rurais tem no CAR um elemento central. Ainda, os esforços regulamentadores sobre a concessão de crédito bancário, a mobilização da cadeia produtiva que comercializa grãos, alimentos e carne produzidos nos imóveis rurais, a exportação desses produtos, dentre tantas outras medidas em curso no combate ao desmatamento ilegal tem o CAR como documento básico de validação de qualquer transação oriunda de imóvel rural.
É dizer que um CAR suspenso ou cancelado impedirá, de imediato, que esses produtos oriundos de áreas desmatadas possam ser comercializados e se transformem em renda para seus produtores.
Contudo, há aspectos de fato que envolvem o cancelamento do CAR, com base nas imagens dos satélites, que precisam ser considerados com cuidado para que a medida, que a princípio pode parecer legítima, tanto do ponto de vista jurídico, quanto ambiental, não torne a intenção de coibir o desmatamento ilegal, uma violação de direitos sem precedentes.
Isto porque, a caracterização do desmatamento é feita mediante a leitura de imagens pelos Satélites Prodes e Deter, operados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), realizadas por algoritmos estruturados na base de programação de computadores que determinam a possibilidade de ter havido desmatamento em dado local, o que se denomina de “alertas” de desmatamento.
‘Alertas’
Como o próprio nome diz, os “alertas” são indicativos de que uma área sofreu perda de vegetação nativa e não uma certeza. Isto porque a fonte tecnológica que processa a informação tem baixa acurácia, sobretudo no que diz respeito ao Deter, cujos alertas não passam por validação. No caso do Prodes, passam sim por validação, porém isso é feito por amostragem e não no número total de alertas, o que implica em margem de erro bastante alta.
Acrescente-se a isso o fato de que há alertas de desmatamento registrados pelos satélites, aos milhares, que são falso-positivos, ou seja, parece desmatamento à luz e interpretação do algoritmo, mas não é.
Ainda, os alertas satelitais não conseguem cruzar as informações colhidas com bancos de dados, a saber se o desmatamento foi realizado com licença ambiental do órgão competente ou não.
Em razão desses aspectos, a margem de erro nas leituras de desmatamento é muito alta quando se considera esses dois satélites e a tecnologia envolvida, razão pela qual, desde que o sistema de alertas de desmatamento foi criado, os dados são disponibilizados aos órgãos ambientais para que façam a aferição individual dos alertas e verifiquem a prática de infrações ambientais, conferindo a segurança jurídica minimamente necessária.
Até então, os alertas de desmatamento não geram consequências imediatas exatamente pelo fato de que se faz necessária a verificação da veracidade e integridade da informação gerada pelos algoritmos e as checagens e cruzamento de dados que avaliem se há, em cada caso, a prática de um ilícito.
Com base nesse trabalho de aferição é então que os órgãos ambientais, sejam eles da União, dos estados e dos municípios, podem atuar na ação de fiscalização de autuar e embargar as áreas desmatadas ilegalmente. Autuações essas que decorrem do poder de polícia onde se confere direito ao contraditório e ampla defesa pela via do processo administrativo, conforme determina a lei brasileira (artigo 70 da Lei 9.605/98).
Ocorre que no pedido ora formulado pelos partidos políticos pretende-se acrescentar aos esforços de fiscalização tradicionais, a suspensão do Cadastro Ambiental Rural como medida adicional às de fiscalização, que se insere, nesse contexto, como verdadeira sanção decorrente do ilícito, sem que se afira, com certo grau de certeza a existência do ilícito, sem que tal sanção tenha sido criada por lei e sem que decorra do exercício do poder de polícia válido.
A ver-se, em primeiro lugar, se a suspensão do CAR é uma sanção. Ora, uma vez seja ela aplicada pelos órgãos governamentais, a pessoas físicas e jurídicas que descumprem a lei e praticam o desmatamento ilegal, que tem como intenção clara desmotivar a prática de infrações, proteger o interesse público, impedir novas condutas ilegais e portanto, prevenir o dano ambiental, a suspensão do CAR, porque adentra em todos esses objetivos das sanções administrativas, é, em essência, uma sanção e portanto e como tal, só pode existir se decorrer da lei e do poder de polícia.
Seguindo esse raciocínio, a suspensão do CAR, tendo caráter de sanção, deve ter previsão em lei, como requisito de legalidade na sua adoção por ente público, seja ele da União, dos estados ou dos municípios que estão absolutamente vinculados ao princípio da reserva legal para o exercício do poder de polícia.
Nesse sentido, registre-se que as infrações ambientais previstas em lei estão adstritas aquelas definidas no artigo 72 da Lei 9.605, dentre elas, a multa, o embargo, a apreensão, a suspensão de venda de produto. A suspensão do Cadastro Ambiental Rural, como decorrência da prática de ilícito não está lá no rol das sanções administrativas ambientais. Também não está prevista em qualquer outra legislação com esse caráter de sanção. Logo, falta a ela previsão legal para ser adotada como sanção.
Não fosse isso suficiente, a suspensão direta do CAR, ainda que se entendesse como legítima, não pode decorrer pura e simplesmente de um alerta de desmatamento não confirmado por uma ação estatal legítima, decorrente do poder de polícia, porque a ela faltaria o grau de certeza mínimo para sua caracterização como ilícito. Ora, se o alerta não verifica o cruzamento de dados com as licenças ambientais, o alerta pode se sobrepor com atos lícitos, o que invalidaria a suspensão do CAR dele decorrente, desde início.
Como se sabe, o exercício do poder de polícia depende da caracterização de um ilícito, conforme dispõe o artigo 70 da Lei 9.605/98 segundo o qual, “considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”.
Não tendo havido ação ou omissão violadora de regra jurídica a suspensão do CAR seria ilegal e, portanto, ato jurídico nulo de pleno direito.
Acrescente-se a isso o fato de que a validação dos alertas de desmatamento, no âmbito do Prodes, que é feita por amostragem, não é realizada por agentes de fiscalização detentores do poder de polícia ambiental. A análise das imagens do satélite que geram os dados Prodes é realizada por técnicos de geoinformação que trabalham para o Inpe que não é um órgão integrante do Sisnama, conforme exige o artigo 70, §1º da Lei 9.605, segundo o qual são “autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sisnama, designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha”.
Por fim e como não menos importante, há outras circunstâncias factuais envolvidas que tornam a medida requerida pelos autores algo absolutamente crítico e contraproducente para o desenvolvimento de políticas públicas eficientes. Uma vez o CAR tenha sido suspenso, estima-se dificuldades operacionais de relevada e significativa dificuldade para o levantamento da suspensão, haja vista que o Sistema do Cadastro Ambiental Rural (Sicar), mantido e desenvolvido pela União e colocado a serviço dos estados para operacionalizar as declarações e suas validações, tem históricas, graves e notórias inconsistências, como perda de dados rotineiras, travamento, “bugs”, além de questões de arquitetura do sistema, extremamente retrógrada e deficitária que impede, atualmente, todos os estados que utilizam essa plataforma em realizar avanços nas análises e validações do CAR. Estima-se que suspensão de CAR possa levar meses, mesmo quando o ato for caracterizado como lícito.
Esse conjunto de circunstâncias de fato e de direito ora trazidas à luz faz chamar atenção para a decisão que será tomada pela Suprema Corte no caso. A ver se a decisão será pela segurança jurídica, legalidade, cautela e bom senso ou se a decisão seguirá a regra de que o fim justifica os meios, ainda que irrazoáveis e ilegais, ferindo a ordem jurídica básica que confere ordenamento e estruturação ao sistema jurídico nacional.
A depender da decisão que venha a ser dar, no âmbito da ADPF, e atendido o pedido dos autores, tal qual formulado e sem modulação (“seja o MMA autorizado a suspender de imediato…”), poderemos ter no Brasil a primeira autorização para a aplicação de sanção administrativa ambiental sem previsão legal, sem probabilidade razoável quanto a existência do ilícito e sem que decorra do exercício regular e válido do poder de polícia. Tudo a bem do meio ambiente!
______________________________________
[1] Conforme conceito extraído do próprio site do STF, “litígios estruturais são ações nas quais se buscam enfrentar uma violação massiva de direitos que não resulta de um único ato do poder público, mas de um conjunto de ações e omissões de diferentes autoridades e até de diferentes instâncias de governo. A sua solução de modo geral envolve a reformulação de políticas públicas, por meio da participação de autoridades, beneficiários e sociedade civil. São litígios complexos que envolvem um conjunto amplo de atores. Trata-se de uma experiência relativamente nova na prática do STF”[1]. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-vai-debater-avancos-e-desafios-dos-litigios-estruturais-em-seminario-internacional/
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!