Direito do Consumidor: responsabilidade objetiva sancionatória é inconstitucional
24 de abril de 2025, 8h00
Distinções fundamentais entre responsabilidade civil e sancionadora
A linguagem jurídica, por vezes, provoca confusões conceituais, nas quais o mesmo termo refere-se a diferentes institutos. É o caso do vocábulo “responsabilidade”, usado tanto para a responsabilidade civil quanto para a penal e a administrativo-sancionadora, cada qual com fundamentos teleológicos e axiológicos distintos. Na área da defesa do consumidor, a responsabilidade civil se estrutura sob o paradigma da reparação, no sentido da restauração do lesado ao status quo ante. Seu fundamento repousa na ideia de que o causador do dano tem o dever de repará-lo, restituindo a pessoa prejudicada ao momento anterior ao evento danoso. Nisso se funda a responsabilidade objetiva no âmbito do direito do consumidor: não busca punir, mas simplesmente indenizar. Daí porque a demonstração do nexo causal é suficiente, sem a consideração subjetiva acerca da intenção ou culpa do agente.
Trata-se de uma projeção do princípio do risco, pelo qual quem se beneficia da atividade econômica deve também arcar com os riscos a ela inerentes. No que tange à responsabilidade sancionadora administrativa, no entanto, a lógica é outra. Nela, o centro gravitacional desloca-se da recomposição patrimonial para a repreensão de condutas socialmente indesejadas. O objetivo não se resume a compensar o dano, mas exercer um juízo de reprovação e censurabilidade. Ao anunciar a possibilidade de punição aos possíveis infratores, busca a dissuasão por meio da intimidação coletiva, a chamada prevenção geral. Ao mesmo tempo, ao castigar o infrator implica em comunicar-lhe as consequências de seu comportamento desviado e a quebra do seu dever de lealdade ao ordenamento legal, a chamada prevenção especial.
Aqui, muito além da lógica da mera reparação econômica, o exercício do juízo de culpabilidade pressupõe não só a demonstração do nexo de causalidade objetiva entre a conduta e o dano, mas também a vinculação subjetiva do agente com o resultado, mediante a demonstração do dolo (vontade livre e consciente de violar o bem jurídico) ou da culpa (quebra do dever objetivo de cuidado).
Na responsabilidade civil consumerista, atribui-se o dever de indenizar; na responsabilidade administrativo-sancionadora, a censura moral, ética e jurídica, a pressupor um imprescindível juízo de reprovação. Há um efeito reputacional e outro econômico, decorrentes da verificação de um comportamento censurável. Daí porque a imposição desse castigo, normalmente expressado por meio de uma pena pecuniária, mediante a presunção de dolo e culpa, viola os princípios constitucionais do estado de não culpabilidade (CF, artigo 5º, LVII), ampla defesa (CF, artigo 5º, LV), devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV) e responsabilidade subjetiva (CF, artigo 5º, LXVI). Além disso, caracteriza conduta abusiva por parte dos órgãos de controle, verdadeira exacerbação de um poder que não lhes foi outorgado. Enquanto o sistema reparatório coexiste com o juízo exclusivamente causal, o sancionador exige uma avaliação ética e pessoal para a reprovação. A sanção se presta a punir uma transgressão provocada por um comportamento subjetivamente reprovável.
Não se pode censurar moral ou juridicamente uma pessoa física ou jurídica sem antes indagar sobre sua intenção, negligência ou diligência. O elemento subjetivo atua como pressuposto indispensável ao sistema sancionador. No caso das empresas, a conduta dolosa se extrai pela análise do comportamento de seu comando diretivo, quando, por exemplo, autoriza a comercialização de produtos sabidamente perigosos à saúde do consumidor. Quanto à culpa, basta comparar seu comportamento com aquele que devia ser esperado pelas regras objetivas de cuidado. Em nenhuma hipótese, porém, seja a pessoa natural ou corporativa, pode-se admitir que o Estado sancione com base em responsabilidade objetiva, isto é, sem o crivo do juízo de culpabilidade. Transportá-la para o campo sancionador implicaria em responsabilização automática, fazendo com que o CDC deixe de atuar como um instrumento de proteção ao consumidor, para convolar-se em mecanismo arbitrário de punição, sem as garantias constitucionais que necessariamente acompanham o poder punitivo.

Essa estrutura compromete não apenas a legitimidade das sanções aplicadas, mas também a própria confiança dos administrados no sistema jurídico. Não se trata aqui de uma disputa meramente técnica entre categorias jurídicas, mas da fixação dos limites do poder estatal em uma ordem constitucional fundada na dignidade da pessoa humana e na prevalência dos direitos fundamentais. Quando o Estado se permite punir sem atender aos parâmetros constitucionais de verificação da culpabilidade, ele deixa de ser o garantidor da ordem jurídica para se transformar em um órgão de controle autoritário, arbitrário e sem legitimidade constitucional. O risco desse desvio institucional é a corrosão paulatina das bases que sustentam o Estado Democrático de Direito. É justamente por isso que a linha divisória entre a responsabilidade civil consumerista e a sancionadora administrativa precisa ser traçada com clareza e rigor. A utilização da responsabilidade objetiva fora do espaço que lhe é próprio, compromete a integridade do sistema jurídico, desfaz as fronteiras entre justiça e conveniência administrativa e ainda coloca em risco a legitimidade da atuação estatal.
Em última análise, o que está em jogo não é apenas a técnica jurídica da imputação, mas o próprio modelo de Estado que se pretende sustentar. A defesa da responsabilidade subjetiva no campo sancionador não é uma posição ideológica, mas dogmática, não é uma opção política, mas uma exigência científica, uma imperiosa obediência constitucional. A separação entre responsabilidade civil e sancionadora não deve ser relativizada em nome da eficácia administrativa. O custo dessa suposta eficiência é a erosão de garantias individuais, a ampliação do arbítrio e o desvirtuamento da própria noção de justiça. Preservar as fronteiras conceituais entre esses dois regimes não é apenas uma exigência teórica, mas uma salvaguarda prática contra o abuso de poder.
O processo administrativo sancionador e os princípios do Direito Penal: a chamada “jurisdição administrativa punitiva”
Ao adentrar o universo do processo administrativo sancionador, impõe-se uma reflexão prévia sobre a natureza do poder que nele se exerce. Não se trata de atividade administrativa regulatória, mas de exercício do poder punitivo estatal, ainda que fora do âmbito tradicional do Direito Penal. Essa constatação altera substancialmente os pressupostos jurídicos da atuação administrativa, exigindo um enquadramento teórico distinto daquele aplicado aos atos meramente discricionários da administração. A noção de “jurisdição administrativa punitiva” ou, em termos mais precisos, de “direito administrativo sancionador”, surge justamente para explicar esse fenômeno.
Ainda que o poder sancionador da administração não se confunda com a jurisdição penal do Estado, ele reproduz seus efeitos na esfera individual de modo igualmente gravoso, pois o que se aplica ao administrado, no fim das contas, é uma sanção. E onde há sanção estatal, há necessidade de garantias materiais e procedimentais. Essa constatação impõe uma mudança na abordagem jurídica do tema. Não é mais possível encarar o processo administrativo sancionador como simples expediente procedimental de apuração de infrações administrativas. É preciso reconhecê-lo como um espaço de afirmação do poder punitivo estatal, cuja legitimidade depende do respeito a limites rigorosos, sob pena de se naturalizar o arbítrio sob o disfarce da legalidade formal.
É nesse ponto que se revela essencial a aproximação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal. Ainda que distintos em suas formas e tradições, ambos partilham do mesmo núcleo conceitual: a imposição de um mal ao indivíduo como resposta estatal a uma conduta reprovável. Essa similitude de essência exige a aplicação dos princípios e garantias próprios do direito penal ao processo administrativo sancionador, especialmente no que diz respeito à tipicidade, à culpabilidade e ao devido processo. A simbiose entre os dois ramos não representa uma indevida ampliação do direito penal, mas afirmação de seus princípios garantistas como uma reação jurídica limitadora da expansão do poder punitivo estatal. A administração pública, ao exercer seu poder sancionador, encontra-se na mesma posição vertical que o Estado no processo penal: é ao mesmo tempo parte interessada na punição e detentora do poder de decidir.
Tal configuração reforça a necessidade de neutralidade, contraditório real e imputação subjetiva. Quando se está diante de uma atuação punitiva, os princípios estruturantes da culpabilidade, da presunção de inocência, da legalidade estrita e da proporcionalidade deixam de ser meras diretrizes para se tornarem exigências constitucionais incontornáveis. Negar a aplicação dessas garantias em nome da natureza administrativa da sanção equivale a legitimar a imposição de um castigo sem as garantias do devido processo legal, sob o frágil argumento de que se está diante de uma sanção administrativa e não criminal, desconhecendo o fato de que esta última nem sempre é a mais severa. Essa dualidade normativa é incompatível com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, que não admite zonas cinzentas de exercício do poder punitivo sem amarras jurídicas. A culpabilidade, nesse contexto, emerge como elemento inafastável da sanção.
Sua ausência transforma o processo administrativo em um mecanismo de imputação automática, onde a responsabilidade passa a ser presumida e a defesa, um mero rito simbólico. A punição, nesse modelo, deixa de ser expressão de reprovação para se tornar um cálculo estatístico, um índice de produtividade administrativa. Perde-se o sentido ético do processo e instala-se uma lógica instrumental de mera formalidade. A imputação subjetiva – seja ela por dolo ou culpa – é, portanto, a condição mínima para que se possa falar em sanção legítima. Não se trata de um capricho doutrinário, mas de um imperativo racional: ninguém pode ser punido sem que se demonstre sua adesão voluntária ou negligente à conduta proibida. A ausência dessa demonstração anula o juízo de censura e converte a sanção em ato arbitrário. Confundir o direito administrativo sancionador, que pune e castiga, com o direito civil reparatório é ignorar sua parcela penal e, com isso, conferir ao Estado um poder que não lhe foi concedido pela CF, o de punir sem demonstrar dolo ou culpa do suposto infrator.
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