Opinião

Parâmetros para a declaração de inconstitucionalidade de leis que instituem o Plano Diretor

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22 de abril de 2025, 7h14

O plano diretor é um dos pilares estruturantes da política de desenvolvimento urbano no Brasil. Previsto no artigo 182, §1º, da Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), representa o principal instrumento de planejamento municipal, orientando a expansão e o ordenamento do solo urbano com base em critérios técnicos e democráticos. O artigo 40, §3º, do Estatuto da Cidade estabelece a obrigatoriedade de sua revisão ao menos a cada dez anos, ao passo que o §4º reforça a exigência de ampla participação popular por meio de audiências públicas, debates com a sociedade civil organizada e ampla publicidade dos documentos produzidos.

Nos últimos anos, tem-se observado o aumento significativo de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra leis municipais que instituem ou revisam planos diretores. Muitas dessas ações não decorrem de um objetivo genuíno de analisar a compatibilidade dessas normas com a ordem constitucional, mas sim de disputas políticas travestidas de questionamentos jurídicos. Como observa Bruno de Oliveira Carreirão:

“É evidente que os habituais conflitos no processo de revisão de um plano diretor têm como pano de fundo algo muito mais profundo do que normas procedimentais; as divergências a respeito dos rumos para o planejamento urbano geralmente têm suas raízes em diferenças políticas e ideológicas.”

Contudo, para que uma alegação de inconstitucionalidade prospere, é indispensável que se respeitem os limites do controle concentrado de constitucionalidade, mecanismo destinado à verificação da compatibilidade vertical entre normas infraconstitucionais e a Constituição.

Os limites do Poder Judiciário

Spacca

O Supremo Tribunal Federal já assentou que não cabe, nessa via, o confronto direto entre normas municipais e legislação infraconstitucional federal (RE 290.549/RJ, rel. min. Dias Toffoli; ADI 3.790/PR, rel. min. Menezes Direito). Além disso, o controle concentrado de constitucionalidade não admite dilação probatória, restringindo-se à análise formal e abstrata da norma

Diante disso, impõe-se a seguinte indagação: quais vícios procedimentais ou omissões seriam efetivamente aptos a ensejar a declaração de inconstitucionalidade de uma norma que institui ou revisa o plano diretor?

Tanto a Constituição Federal quanto a Constituição do Estado de São Paulo conferem aos municípios competência para ordenar o território urbano, desde que observadas diretrizes técnicas e democráticas. Os artigos 30, VIII, e 182 da Constituição Federal reconhecem a autonomia municipal para promover o ordenamento territorial de forma planejada. Complementarmente, os artigos 180 e 181 da Constituição Paulista impõem a exigência de participação comunitária em estudos, programas e projetos voltados ao desenvolvimento urbano.

Embora se reconheça a ampla autonomia legislativa dos municípios, tal competência encontra limites constitucionais, sobretudo no que tange à obrigatoriedade de participação popular e à elaboração de estudos técnicos prévios. Tais requisitos refletem a natureza estruturante do plano diretor, cujas normas interferem diretamente no cotidiano e nas expectativas futuras da coletividade urbana.

 

A jurisprudência e a doutrina têm afirmado que a ausência total de participação popular, ou sua realização em moldes claramente insuficientes, pode levar à nulidade da norma. Contudo, conforme leciona Fábio Gomes dos Santos, essa nulidade deve ser reservada a casos de comprometimento manifesto e irremediável da função democrática do processo legislativo:

“Casos em que se entende cabível a nulidade são aqueles em que se verifica flagrante e irremediável prejuízo aos debates, constituindo situações nas quais as medidas administrativas adotadas não propiciaram minimamente aquilo que caracteriza tecnicamente uma audiência pública. (…) Ficando claro que não houve descaso com as normas aplicáveis, tampouco intenção explícita de descumpri-las, mas sim uma flexibilização justificada diante de obstáculos concretos à participação, pode ser aceitável considerar que não houve irregularidade.”

Ademais, a Constituição não estabelece parâmetros objetivos — quantitativos, temporais ou espaciais — para aferir a suficiência dos instrumentos participativos, o que demanda do Poder Judiciário uma postura de cautela interpretativa, evitando a adoção de critérios excessivamente formalistas que possam restringir o espaço legítimo de deliberação democrática.

A judicialização excessiva e seus riscos

A crescente judicialização das normas relativas ao plano diretor revela uma tendência preocupante: a utilização do Poder Judiciário como instância revisora de decisões políticas regularmente tomadas no âmbito legislativo. Marco Aurélio Marrafon adverte para o risco institucional dessa prática:

“Tem se tornado cada dia mais comum que os próprios mandatários e os partidos políticos, por não aceitarem os resultados deliberados, recorram ao Poder Judiciário para resolver problemas políticos. Não raro provoca-se o Supremo Tribunal Federal para obter vitórias em detrimento das deliberações majoritárias. O resultado é a configuração de um quadro de forte esvaziamento da legitimidade da política democrática.”

Embora a jurisdição constitucional exerça função essencial na proteção da supremacia da Constituição, ela não deve se converter em instância substitutiva da vontade democrática regularmente expressa. A atuação judicial deve ser comedida e excepcional, voltada à proteção de garantias constitucionais fundamentais e não à revisão de escolhas políticas legítimas.

Fortalecendo a legitimidade democrática

A preservação da legitimidade democrática exige o fortalecimento das arenas institucionais de deliberação, como os parlamentos municipais e os conselhos participativos. No caso do plano diretor — norma de planejamento urbano com impacto coletivo e duradouro —, sua legitimidade deve advir do diálogo social contínuo e transparente, e não de validação judicial posterior.

A intervenção judicial deve ser medida de exceção, cabível apenas diante de violação direta, inequívoca e insanável à Constituição, especialmente nos casos de ausência de participação popular e de estudos técnicos mínimos (afronta aos artigos 180, II e V, 181, caput, e 191 da Carta Paulista). Nesse sentido, são ilustrativos os seguintes precedentes:

– ADI 2226757-13.2023.8.26.0000, rel. des. Décio Notarangeli, j. 28/2/2024;

– ADI 2235845-12.2022.8.26.0000, rel. des. Francisco Casconi, j. 4/10/2023;

– ADI 2111004-08.2023.8.26.0000, rel. des. Vianna Cotrim, j. 13/9/2023;

– ADI 2270133-83.2022.8.26.0000, rel. des. Jarbas Gomes, j. 9/8/2023;

– ADI 2024127-65.2023.8.26.0000, rel. des. Elcio Trujillo, j. 28/6/2023.

A judicialização excessiva, sobretudo quando motivada por interesses político-partidários, compromete o princípio da separação dos poderes, esvazia a autonomia municipal e prejudica o processo democrático.

Conclusão

Conclui-se, portanto, que a declaração de inconstitucionalidade de planos diretores deve ser medida excepcional, reservada a hipóteses extremas, diante de vícios formais graves e diretamente atentatórios à Constituição. Fora dessas situações, impõe-se o respeito às decisões soberanas do Poder Legislativo local e à dinâmica participativa que as legitima.

É nesse equilíbrio — entre a atuação jurisdicional legítima e a autonomia político-legislativa dos municípios — que reside o caminho constitucionalmente adequado para a construção de cidades mais justas, inclusivas e sustentáveis.

 


Referências:

CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Requisitos da revisão do plano diretor. Conjur, 30 jun. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-30/bruno-carreirao-requisitos-revisao-plano-diretor2.

MARRAFON, Marco Aurélio. Constituição, Poder e os Parâmetros do Controle Jurisdicional do Processo Legislativo. Conjur, 1 mar. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-01/constituicao-poder-parametros-controle-jurisdicional-processo-legislativo/

SANTOS, Fábio Gomes dos. Constitucionalidade dos Planos Diretores Municipais: aspectos controvertidos. Revista de Direito Urbanístico, v. 44, n. 3, 2021, p. 87-88.

 

Autores

  • é procuradora jurídica da Câmara Municipal de Nova Odessa, graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-Campinas, especialista em Direito Constitucional pela PUC-Campinas e pós-graduanda em Direito Legislativo pelo IDP.

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