Opinião

Direito Penal Tributário: a falta de responsabilidade penal por sonegação fiscal culposa

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  • é professor associado de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) visiting scholar na Queen Mary University of London e no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht.

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21 de abril de 2025, 11h14

1. O caso analisado

Em importante precedente, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, por unanimidade, no julgamento do Recurso Especial nº 1.854.893/SP, que “a mera negligência ou imprudência na gestão empresarial não configura o crime de sonegação fiscal previsto na Lei nº 8.137/1990”. O acórdão reafirma o entendimento de que a responsabilidade penal tributária exige a presença de dolo específico, isto é, o comportamento que visa a lesar o fisco. Afasta, assim, a aplicação da chamada teoria do domínio do fato como fundamento autônomo para imputação criminal.

No caso concreto, a recorrente, sócia de uma empresa contribuinte de ICMS, assumiu a condução da sociedade após o falecimento súbito de seu cônjuge, gestor anterior. Sem experiência na condução das questões fiscais, delegou a gestão tributária a contadores e consultores especializados. O Ministério Público sustentou que a sonegação de ICMS teria ocorrido mediante inserção de dados inexatos e omissões em documentos fiscais.

Houve condenação em primeiro e segundo graus. Estas se basearam na teoria do do fato pela condição societária da ré, que detinha poderes de gestão e recebia dividendos da empresa. No entanto, “nenhuma conduta dolosa foi efetivamente individualizada” na imputação. O acórdão recorrido destacou expressamente que a gestora agiu de modo “equivocado” na delegação de responsabilidades, o que, segundo o STJ, aproxima a conduta da culpa em sentido estrito, algo totalmente incompatível com o tipo penal do artigo 1º da Lei 8.137/90.

2. Teoria do Domínio do Fato: limites e aplicação no Direito Penal brasileiro. O problema da (falta de) prova

O voto condutor, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, dedica-se a uma análise crítica da teoria do domínio do fato, notadamente em sua formulação por Claus Roxin. Segundo o ministro, embora a teoria seja um instrumento útil para a distinção entre autores e partícipes, ela “não pode substituir a exigência de prova do nexo causal e do dolo na conduta penalmente relevante”. Portanto, a posição societária, isoladamente, “não autoriza a imputação penal”. Nas palavras do Relator, “É insuficiente e equivocado afirmar que um indivíduo é autor porque detém o domínio do fato se, no plano fático, não há nenhuma circunstância que estabeleça o nexo entre sua conduta e o resultado lesivo”.

Nesse sentido, o acórdão reconhece que há uma distinção ontológica e normativa entre a responsabilidade penal subjetiva, fundada em dolo e conduta individualizada, e a responsabilidade objetiva ou presuntiva, incompatível com os princípios constitucionais do Direito Penal.

A Constituição consagra como princípios fundamentais a ampla defesa e contraditório, estruturas do devido processo legal e que garantem um modelo jurídico com segurança jurídica. Em razão disso, a regra basilar é que todos os tipos de provas são permitidos e praticados, desde que admitidos em lei e moralmente legítimos. Sem prova adequada, o agente não tem como exercer o direito ao due process of law de modo proporcional.

Sabe-se que prova é todo elemento pelo qual se procura comprovar a (1) existência e (2) a veracidade de um fato. No direito processual, sua finalidade é influenciar o convencimento do julgador. No Direito Tributário, embora também cumpra esse papel, a prova servirá para comprovar a realização do fato concreto que dará ensejo à tributação. O mesmo deve ocorrer com o direito penal, aferindo-se a ocorrência ou não do que se denomina de fato típico. O processo de qualificação do fato acontece através da subsunção, um processo tendente a lógico, que compatibiliza as características contidas na norma com as colhidas no fato concreto, considerando subsumido quando ocorrida a compatibilidade necessária.

Operações e investigações de autoridades por vezes se baseiam em presunções da ocorrência de ilícitos e são desassociadas da prova objetiva. São numerosos os casos de presunções – inadequadas e ilícitas – de operações da Polícia Federal e do Ministério Público, evidenciando o cuidado que o Poder Judiciário tem de controlar certas acusações arbitrárias e, muitas vezes, baseadas em suposições e narrativas.

Veja-se que, diferentemente de meras probabilidades [1], a prova deve apresentar objetivamente que determinado fato ocorreu e que sobre ele há efeitos jurídicos. E, no direito brasileiro, o ônus da prova é do Fisco [2] e da autoridade ministerial. Nesse sentido, é insustentável qualquer lançamento tributário ou qualquer ato administrativo expedido sem suporte em provas válidas. O mesmo se diz em relação às acusações e tentativas condenatórias.

E isso porque a declaração de nulidade da prova, portanto, afeta o ato administrativo que realizou os lançamentos tributários, porquanto baseados em documentos inidôneos dentro do modelo de legalidade que o Estado brasileiro adota. Em sendo assim, parece ser inquestionável a noção de que qualquer auto de infração baseado em provas nulas acaba maculado, havendo que ser expelido do ordenamento jurídico [3]. Dessa maneira, caso declarada nula a prova no processo judicial a prova equivale, no método jurídico, à sua inexistência, especialmente em matéria tributária, pois afasta o ato administrativo da legalidade e da segurança jurídica.

É oportuna, nesse sentido, a lição de Maria Rita Ferragut a respeito da qualificação de “enunciados como ‘prova'”, pois sujeita “ao cumprimento de métodos de produção reconhecidos pelo sistema” [4]. Dessa forma, “Para ingressar no ordenamento jurídico, o direito positivo seleciona as propriedades que entram e as que ficam fora do sistema: é a dualidade do ser e do dever-ser, do sistema social e do jurídico. É a segurança jurídica e a legalidade impondo limites ao conhecimento humano juridicamente relevante. Por conta disso, muitos fatos sociais não assumem o status de fato jurídico” [5], não se admitindo que uma prova considerada nula em um processo judicial seja reinserida no direito tributário, retomando seu status de validade.

3. Repercussões práticas da decisão examinada

O precedente sob exame tem relevância prática no Direito Penal Econômico, porquanto: 1) reafirma a exigência do dolo específico nos crimes do artigo 1º da Lei 8.137/90, reafirmando a atipicidade de condutas culposas (negligência ou imperícia na gestão contábil-tributária); 2) desautoriza condenações penais baseadas exclusivamente na condição societária do agente, afastando a presunção automática de autoria em virtude da estrutura empresarial e da figura do administrador.; 3) impede a ampliação indevida da teoria do domínio do fato para situações que não envolvam plano comum, coautoria funcional ou aparato organizado de poder; e, finalmente, 4) promove, de forma objetiva, a segurança jurídica (estabilidade e previsibilidade), ao exigir um juízo consistente e embasado nas provas dos autos.

O julgamento do REsp 1.854.893/SP reforça uma premissa elementar, porém constantemente tensionada no âmbito dos crimes econômicos: o Direito Penal não pode se fundar em presunções de culpa ou em estruturas societárias de modo arbitrário. A culpabilidade, como requisito da responsabilidade penal, exige conduta voluntária, dolosa e vinculada ao resultado típico. No campo tributário, a criminalização do risco empresarial ou da má gestão administrativa, sem evidência de fraude ou intenção deliberada de sonegar, constitui perigoso retrocesso. A decisão do STJ, nesse cenário, representa um salutar freio à responsabilização penal objetiva travestida de domínio do fato, reafirmando os pilares do garantismo penal, da presunção de inocência e da legalidade estrita.

 


[1] Cf. Roque Antonio Carrazza. Reflexões sobre a Obrigação Tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p. 319.

[2] Cf. Paulo de Barros Carvalho. Notas sobre a Prova no Processo Administrativo Tributário. In: Direito Tributário – Homenagem a Alcides Jorge Costa, pp. 859-860.

[3] Cf. Fabiana Del Padre Tomé. Prova e Aplicação do Direito Tributário, in: Direito Tributário – Homenagem a Paulo de Barros Carvalho, Coordenação: Luís Eduardo Schoueri, p. 621.

[4] Cf. Maria Rita Ferragut. As provas e o Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 59.

[5] Cf. Maria Rita Ferragut. As provas e o Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 59.

Autores

  • é professor associado de Direito Tributário da UFRN com estágio de pesquisa de pós-doutoramento na Queen Mary University of London, doutor em Direito pela UFPE com estágio e bolsa de pesquisa no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht, membro do IBDT e da Apet, coordenador da Liga de Direito Tributário e da Liga de Direito Societário da UFRN e advogado.

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