Direito Civil Atual

ADPF 944 e o futuro da destinação de recursos pecuniários na tutela coletiva

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21 de abril de 2025, 12h15

Encontra-se em tramitação no Supremo Tribunal Federal a ADPF 944, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria. São questionadas decisões da Justiça do Trabalho (e também termos de ajustamento de conduta celebrados pelo MPT) que, ao invés de determinarem o recolhimento de valores decorrentes de condenações coletivas para os fundos públicos (FDD e FAT), ordenam a constituição de fundações privadas com dotações patrimoniais específicas ou a realização de doações diretas, com valor determinado, para entidades públicas ou privadas, ou mesmo para qualquer outra finalidade que não sejam os fundos.

Essas práticas ocorrem e não estão restritas ao âmbito trabalhista, uma vez que também são verificadas, em menor medida, na Justiça Estadual e na Justiça Federal. Esse tema é estudado no âmbito da tutela coletiva. É preciso compreender as razões e os fundamentos que justificam o emprego dessas formas de destinação de valores.

Afirma-se que o modelo brasileiro (que destina valores de condenações e acordos coletivos para fundos públicos) teria inspiração na fluid recovery do direito norte-americano. No entanto, nos EUA o Poder Judiciário, no caso concreto, pode alocar os recursos em finalidade que guarde maior correspondência com a situação que ensejou o dano coletivo [1].

Já o modelo brasileiro de reparação mediante fundos de direitos coletivos falha pelos seguintes fatores: ocorre o contingenciamento e os valores raramente serão aplicados no local onde ocorreu o dano que gerou uma indenização.

Os fundos de direitos difusos mencionados no artigo 13 da LACP são classificados, no âmbito do Direito Financeiro, como fundos especiais [2]. Esses fundos podem ser vistos como uma anomalia no sistema, uma vez que rompem com o princípio da unicidade orçamentária. Em tese surgiram com a ideia de garantir a rápida reversão de recursos para finalidades específicas, possibilitando, também, a transferência do saldo para exercícios seguintes (acúmulo dos recursos não gastos) [3]. No entanto, na prática, os fundos especiais foram completamente desvirtuados, pois, ao invés de financiarem políticas públicas, enfrentam contingenciamentos constantes para que o orçamento anual possa alcançar metas de resultado e gasto [4]. Há nítido desvio da finalidade original.

Além disso, não existe uma correlação (ainda que indireta) entre a  destinação da indenização e o grupo e localidade que foram lesados pelo evento danoso. Concordando com essa linha de pensamento, Sérgio Cruz Arenhart e Gustavo Osna [5]:

“Há, assim, um claro equívoco na forma de execução adotada. Em síntese, o atual Fundo de Defesa trabalha com a apresentação de projetos e convênios para o dispêndio de suas verbas, tocando ritos burocráticos nos quais afinidade temática é aferida com grandes áreas, como o “meio ambiente”. Dessa forma, é descartada a vinculação entre o emprego da verba e a situação fática que serviu à condenação judicial; não há como se falar em ‘recuperação fluída’, pois inexiste recuperação.”

Considerando esses entraves, passou-se a convencionar nos TACs a destinação alternativa de recursos, revertendo-os a instituições de interesse público e social [6]. Essa técnica também é verificada em algumas sentenças proferidas em ações coletivas.

ConJur

Essa prática foi questionada pela CNI na  ADPF 944. A instituição deseja que valores oriundos de TACs e condenações coletivas trabalhistas sejam destinados, apenas, ao FDD e ao FAT.

Resolução Conjunta 10 e a ADPF  944

Posteriormente ao ajuizamento da ADPF 944, o CNJ e o CNMP editaram a Resolução Conjunta  10/2024, “dispõe sobre os procedimentos para a destinação de bens e recursos decorrentes de decisões judiciais e instrumentos negociais de autocomposição em tutela coletiva, bem como sobre medidas de transparência, impessoalidade, fiscalização e prestação de contas”.

A resolução se aplica tanto à Justiça do Trabalho quanto à Justiça Comum, e possui grande preocupação com a fiscalização do emprego dos recursos e com a fundamentação a ser adotada por membros do MP e integrantes do Poder Judiciário ao reverterem valores para finalidades diversas dos fundos de direitos coletivos. A deliberação pela destinação alternativa de valores deve ser perpassada por fundamentação que considere: (1) a pertinência e adequação da medida adotada com a reparação do dano constatado; (2) os mecanismos de fiscalização; (3) as razões que inviabilizam, quando for o caso, a destinação dos recursos atendendo a localidade geográfica e a natureza da lesão; (4) os critérios que orientaram a decisão, entre as alternativas disponíveis (artigo 6º).

Ao julgar a liminar na  ADPF  944, o relator, ministro Flávio Dino, deferiu parcialmente a tutela requerida. Na decisão, além de proibir o contingenciamento de recursos do FDD e do FAT, considerou que as condenações coletivas e os TACs trabalhistas podem se valer de duas formas válidas de destinação de valores decorrentes da tutela coletiva: os fundos tradicionais, ou as alternativas previstas na Resolução Conjunta 10 do CNJ/CNMP (ressalta o caráter de ato normativo primário [7] da resolução) [8].

Aparentemente o tema caminhava para uma pacificação. No entanto, quando a liminar foi submetida à chancela do Plenário, o ministro Dias Toffoli apresentou divergência, defendendo interpretação restritiva, votando no sentido de que a liminar deveria estabelecer que condenações coletivas e TACs trabalhistas somente podem reverter valores para o FDD e o FAT. Na sequência, vários ministros fizeram uso da palavra [9].

O ministro Barroso lembrou que a resolução conjunta também foi editada para possibilitar o destino – com a agilidade –  de valores pelo Judiciário e Ministério Público ao Rio Grande do Sul (no contexto da catástrofe climática do início de 2024), trazendo diversos cuidados para a fiscalização da destinação e emprego dos recursos.  O ministro Cristiano Zanin e o ministro Alexandre de Moraes lembraram o julgamento da ADPF 569, que tratou da destinação verbas decorrentes de acordos e condenações criminais. O ministro Luiz Fux rememorou que o tema foi enfrentado no TCU no Acórdão nº 1955/2023. O ministro André Mendonça sugeriu que escolha sobre a destinação de valores nesses casos pode representar incursão no mérito do ato administrativo. O ministro Fachin ponderou que a Resolução Conjunta 10 preocupa-se com a mitigação de danos causados a legítimos interesses transindividuais, no âmbito do direitos fundamentais, sendo necessária uma compreensão que abarque as reais necessidades de proteção de direitos como o meio ambiente e os diretos dos trabalhadores. Já o ministro Gilmar Mendes ressaltou que o FDD deveria exercer o papel de destinar verbas para a contenção de desastres e também demonstrou preocupação com a criação de fundações privadas apenas para o recebimento desses recursos, ato contínuo, pediu vistas, interrompendo o julgamento.

Após o anúncio do pedido de vistas, o relator, ministro Flávio Dino sugeriu que a decisão a ser proferida pela corte não pode ficar restrita à Justiça do Trabalho (objeto do pedido), entendendo que a tese jurídica a ser fixada também deve abranger a Justiça Comum, sob pena de ocorrer inaceitável assimetria.

Considerando o escopo que o processo assumiu, a próxima decisão a ser proferida na ADPF 944 envolverá a discussão da validade da Resolução Conjunta 10 terá enorme repercussão para o futuro da tutela coletiva.

Contribuição para o debate

As considerações trazidas pelos ministros são pertinentes. Traremos alguns argumentos que eventualmente possam contribuir com esse debate.

De fato, no passado foram verificadas situações destoantes evolvendo a destinação de verbas com origem em acordos e processos criminais, o que motivou o julgamento da ADPF 569. Neste julgamento, o STF firmou a tese de que as receitas provenientes de condenações judiciais por atos ilícitos, apurados com fundamento em sistemas normativos de responsabilidade pessoal (penais, civis e administrativos), possuem destinação legalmente vinculada.

A decisão da ADPF 569 [10] abrange feitos criminais e processos cíveis-sancionatórios na esfera da tutela do patrimônio público (lei anticorrupção empresarial). Esse entendimento não pode ser aplicado na ADPF 944  sem que seja feita a necessária distinção de casos.

A ADPF 944 trata do sistema geral de tutela de diretos transindividuais, que não opera numa lógica sancionatória; mas sim preventiva e reparatória (responsabilidade civil). Em diversas situações não é possível a reparação específica do dano causado, além disso muitas indenizações na tutela coletiva têm natureza imaterial (danos morais coletivos e danos sociais). É adequado, do ponto de vista da função compensatória da responsabilidade civil, que valores decorrentes de condenação obtida em ações ou acordos coletivos sejam transferidos a uma instituição ou finalidade que – direta ou indiretamente – beneficie  a coletividade localmente afetada. Isso, inclusive, consagra valores e objetivos previstos na Constituição.

Bons exemplos foram noticiados no último ano no site do CNJ

O TRT 11 homologou acordo celebrado entre MPT e uma grande empresa do polo industrial de Manaus, por descumprimento de cota de pessoas com deficiência (PCD). O valor de 2 milhões de reais foi destinado ao financiamento de Barco Hospital que prestará serviços de saúde às comunidades ribeirinhas e indígenas no estado do Amazonas [11].

Em Feliz Mato Grosso (MT) foi realizado mutirão de conciliações em ACPs relacionadas a danos ambientais. O valor de aproximadamente um milhão de reais foi revertido para melhorias em entidades públicas ou que prestam serviços sociais na cidade. Os valores foram aplicados para beneficiar a comunidade que reside no local diretamente afetado pelos danos que geraram as indenizações [12].

Direito dos desastres

Como lembrado pelo ministro Barroso, a Resolução Conjunta 10 também possui norma que permite  a destinação de recursos de acordos ou processos coletivos para ações de combate aos efeitos de qualquer calamidade pública, desde que decretada formalmente por ato do Poder Executivo federal, estadual ou municipal (artigo 15).

O contexto do pós-desastre (que também envolve a atuação do Poder Judiciário) é caracterizado pela necessidade, em um primeiro momento, de medidas emergenciais e, na sequência, de medidas de compensação e reconstrução [13]. No caso dos desastres climáticos do Rio Grande do Sul, o Poder Judiciário brasileiro destinou 6,7 milhões de reais para a Defesa Civil gaúcha [14].

Nesta seara, lembre-se, também, que recentemente o STF homologou a repactuação do acordo para reparação e compensação dos danos causados pela barragem em Mariana (MG) [15]. O acordo destina R$ 100 milhões para órgãos públicos para aplicação em projetos ambientais e socioeconômicos; R$ 32 bilhões para reparação de áreas degradadas, reassentamento de comunidades e pagamento de indenizações; R$ 8 bilhões são destinados para povos indígenas, quilombolas e tradicionais.

Cautelas adotadas na Resolução Conjunta 10

A criação de novas fundações apenas para o recebimento de valores decorrentes de condenações é uma das maiores preocupações expressadas pelos ministros. A resolução conjunta teve o cuidado de proibir a reversão de valores para entidades privadas não legalmente constituídas a menos de três anos (artigo 7º, III). Veda-se, também, o uso de recursos para o custeio do Poder Judiciário e do MP (artigo 7º, I).

Conclusão

As destinações alternativas de valores na tutela coletiva asseguram a aplicação do princípio da reparação integral (valor que norteia a responsabilidade civil [16]), possibilitando o benefício, ainda que indireto, da comunidade e o local lesados pelo dano. Também podem catalizar, de forma rápida, recursos para a contenção de desastres. A Resolução Conjunta 10 do CNJ/CNMP é um ato normativo primário e trouxe critérios de fundamentação, transparência e accountability para essas destinações. A manutenção da resolução conjunta 10 pelo STF na ADPF 944 é medida adequada e trará a necessária pacificação para esse importantíssimo tema.

 


[1]    MULHERON, Rachel P. The modern cy-près doctine: applications and implications. Routledge: Londres, 2016, p. 222/224.

[2]    BASSI, Camillo de Moraes. Fundos especiais e políticas públicas: uma discussão sobre a fragilização do mecanismo de financiamento. Rio de Janeiro: Ipea, 2019, p. 38.

[3]    BASSI, Camillo de Moraes. Fundos especiais e políticas públicas: uma discussão sobre a fragilização do mecanismo de financiamento. Rio de Janeiro: Ipea, 2019, p. 7-13

[4]    BASSI, Camillo de Moraes. Fundos especiais e políticas públicas: uma discussão sobre a fragilização do mecanismo de financiamento. Rio de Janeiro: Ipea, 2019, p. 21-24.

[5]    ARENHART, Sérgio; OSNA, Gustavo. Curso de Processo Civil coletivo. São Paulo: RT, 2019, p. 326.

[6]   TELES, Izabel Cristina de Almeida. Destinação dos recursos oriundos dos TACs e dos acordos e condenações judiciais. Boletim Científico ESMPU. n. 44. Brasília: ESMPU, 2015, p. 74.

[7]   A existência poder normativo primário do CNJ (e, por extensão, do CNMP) foi primeiramente admitida pelo STF no julgamento da ADC n. 12/DF, em que foi reconhecida a constitucionalidade da Resolução 07/05 do CNJ, que vetou o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário. Para a Corte Constitucional, considerando as funções atribuídas ao CNJ pelo art. 103-B, § 4.º, da CF, a resolução então questionada possui característica de ato normativo primário ao regulamentar aspectos relativos à competência e funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos dos tribunais (STF, Plenário, ADC 12, rel. Min.Carlos Britto, j. 18.12.2009).

[8]   STF, decisão monocrática, ADPF 944, rel. Min. Flávio Dino, j. 22.08.2024.

[9]   Os debates podem ser consultados no canal do STF no youtube (sessão plenária de 02.04.2025).

[10]   STF, ADPF 569, Pleno, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 20.05.2024.

[11]  https://www.cnj.jus.br/conciliacao-destina-r-2-milhoes-para-saude-de-comunidades-ribeirinhas-na-amazonia/

[12]  https://www.cnj.jus.br/comarca-de-feliz-natal-mt-arrecada-quase-r-1-milhao-na-conciliacao-de-acoes-de-danos-ambientais/

[13]  ZANETI JR., Hermes; CARVALHO, Délton. O papel das cortes judiciais no pós-desastre: litigância em casos de desastres, casos repetitivos e tutela coletiva. Revista de Processo n. 351, São Paulo: RT, 2024, p. 203.

[14]  https://www.cnj.jus.br/justica-federal-da-5a-regiao-destina-r-67-milhoes-para-defesa-civil-gaucha/

[15]  STF, Plenário, referendo na Pet 13.157/DF, rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 06.11.2024.

[16]  Sobre o princípio da “reparação integral” e suas funções, ver os ensinamentos de Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Princípio da reparação integral – indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010).

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