Processo Familiar

Bens trazidos à colação não respondem pelas dívidas do falecido

Autor

  • é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

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20 de abril de 2025, 8h00

Ao realizar pesquisa rotineira de jurisprudência, me deparei com um acórdão do Superior Tribunal de Justiça, relativamente recente, versando sobre a responsabilidade patrimonial dos herdeiros, por débitos fiscais do falecido, constituídos antes do óbito [1]. A decisão, na verdade, invocava um outro precedente de 2009, do próprio STJ, no sentido de que os bens transmitidos, em antecipação de legítima, por meio de doação em vida do ascendente ao descendente, estariam incluídos no conceito de herança e, por essa razão, quando trazidos à colação, responderiam pelas dívidas do de cujus, ainda que anteriores ao nascimento da obrigação tributária (fato gerador) ou da constituição do crédito tributário [2].

Fui tomado de espanto, até pela admiração que nutro por grande parte das teses adotadas no Tribunal da Cidadania, muito embora se tratasse de matéria tributária e nenhum dos dois julgados proviesse da 2ª Seção [3], diante do equívoco na fundamentação invocada e da violação de regras centenárias da sucessão hereditária. E, mais ainda, porque localizei, em tribunais estaduais e federais, um ou outro julgamento semelhante.

Os arestos em questão, quando imputam responsabilidade patrimonial aos herdeiros donatários, nos limites das colações a que estão compelidos, não obstante partam de premissas verdadeiras, chegam a conclusões falsas. E o fazem porque se equivocam nos axiomas. Aparentam construir um silogismo, seguindo as regras da lógica dedutiva (silogismo aparente), mas o resultado é um sofisma. A maior parte dessas decisões invoca duas premissas que são corretas, mas que deságuam em uma terceira, incorreta. A primeira: a responsabilidade dos sucessores, pelas dívidas do falecido, está limitada ao valor dos bens herdados e os credores só se podem pagar com os bens hereditários (ver artigos 1.792 e 1.997 do CC/2002) [4]; A segunda: os herdeiros receberam, em vida do devedor, antecipação do que lhes caberia em herança. Mas a conclusão (terceira), de que a doação anterior, feita a herdeiro necessário [5], está incluída no conceito de herança, de modo que o bem deve responder pelas dívidas do de cujus, independentemente de demonstração de fraude à execução, é falsa. Os bens recebidos em antecipação da herança necessária (legítima), nos moldes do artigo 544 do CC [6], quando “conferidos” pelo herdeiro após a abertura da sucessão, NÃO RESPONDEM pelos débitos do falecido.

A distorção, que transforma o silogismo em sofisma, se localiza na segunda premissa. Isso porque as doações do ascendente ao descendente, ainda que feitas em antecipação do que lhe tocará no futuro quinhão legitimário, não integram o acervo hereditário (“herança”), para fins de imputação de responsabilidade patrimonial aos herdeiros.

A colação não “desnatura” a natureza da liberalidade pretérita, que permanece no patrimônio do herdeiro e não retorna “fisicamente” ao monte mor.  O retorno, conferido ou colacionado, é fictício e serve apenas para equalizar as legítimas dos herdeiros necessários. Assim, não sendo herança, porquanto não integravam mais o patrimônio do devedor na data do decesso, os bens doados jamais poderão responder pelas dívidas do morto, incluindo as obrigações tributárias, salvo nos casos de fraude à execução ou fraude contra credores.

Spacca

É no mínimo disruptiva, por absoluta desconexão com a tradição jurídica continental, a tese de que os herdeiros respondem pelo pagamento da dívida, na proporção da legítima adiantada em vida, ou que é cabível a penhora de bens recebidos a título de adiantamento de legítima, sem a comprovação de fraude à execução ou fraude contra credores. É desconhecer o que ensina a doutrina sucessionista, em litania uníssona, e o que é aplicado na prática forense, desde o momento em que se estabeleceu a separação, para fins de responsabilidade patrimonial, entre os bens que já eram do herdeiro antes da morte do falecido e aqueles que eram do de cujus e foram transmitidos ao sucessor por aplicação do droit de saisine (separatio bonorum).

Doutrinadores de hoje e de ontem repetem, em litania uníssona, que os valores trazidos à colação não podem ser penhorados pelos credores do falecido [7]. Os bens colacionados não respondem pelas dívidas passivas da herança, salvo se a doação foi feita em fraude contra  credores [8]. Os credores da herança não se beneficiam com a colação [9].

A doação de ascendente a descendente, ou entre cônjuges, importa, sim,  adiantamento do que lhes cabe por herança. Se não houver ressalva em contrário do doador, o donatário recebe o bem a título de antecipação de legítima e tem, por ocasião da sucessão, o dever de colacioná-lo ao monte mor partível, nos termos dos artigos 544 e 2002 [10] do CC/02. A regra do artigo 544 constitui uma garantia estatuída em benefício exclusivo dos herdeiros necessários, e não dos credores do morto, pois embasada na presunção de igualdade de acesso ao quinhão indisponível do patrimônio hereditário (legítima).

Não pretendeu o legislador do artigo 544 do CC/2002 (ou aquele do artigo 1.171 do CC/1916 [11]), determinar que, a partir da colação, sobreviesse a responsabilidade dos bens doados pelas dívidas da herança. Do contrário, “bastaria ao doador, para esvaziar a garantia dos credores, dispor que os bens doados saiam de sua parte disponível” [12] .

Em resumo, como se verifica na esmagadora maioria das decisões judiciais que abordam o tema de forma técnica, e com amparo na doutrina de escol, “considerando que a antecipação da legítima é fundada na teoria da igualdade entre os descendentes e visa tão-somente equalizar as cotas hereditárias, os bens doados em vida pelo de cujus não respondem pelas dívidas que este deixou. Ressalte-se que este posicionamento, o de o bem doado não responder pelas dívidas da herança, não dá azo a toda sorte de fraude. É que, se com a doação o doador esvaziar seu patrimônio de modo a prejudicar seus credores, estes podem anular o negócio jurídico fraudulento, por meio da ação pauliana, nos termos do art. 158 do CC/02” [13] .

Felizmente, e com poucas exceções, a jurisprudência dos tribunais brasileiros mostra-se consolidada no sentido de que a interpretação do artigo 544 do Código Civil de 2002, não obstante tenha o discurso legislativo aludido à “herança” em substituição à “legítima” do artigo 1.171 do Código Civil de 1916, não confere aos credores do falecido qualquer direito sobre os bens colacionados [14] [15].

 


[1] Ao examinar execução fiscal de crédito tributário, esta Corte Superior consignou que “a antecipação da legítima está incluída no conceito de herança e, por essa razão, integra a apuração do quinhão hereditário (art. 2.002 do Código Civil). Ainda que efetivada em momento anterior ao do nascimento da obrigação tributária (fato gerador), ou da constituição do crédito tributário (lançamento), não exclui a responsabilidade tributária do sucessor, resguardado o limite das forças da herança. Inteligência do art. 131, II, do CTN” (AGRG no RESP n. 644.914/PR, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 19/3/2009). 8. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ; AgInt-REsp 1.660.327; Proc. 2016/0124420-9; SP; Rel. Min. Og Fernandes; DJE 20/06/2022)

[2] AGRG no RESP n. 644.914/PR, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 19/3/2009.

[3] Integrada pelas Terceira e Quarta Turma, é responsável pela uniformização do direito privado nacional.

[4] Art. 1.792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe- -lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados. Art. 1.997. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube.

[5] Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

[6] Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.

[7] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões, vol. III. Ed. 3ª, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1952, pp. 433-434.

[8] ITABAIANA DE OLIVEIRA. Arthur Vasco. Tratado de direito das sucessões. Vol. II. Da sucessão testamentária. São Paulo: Max Limonad, 1952, p. 826.

[9] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Vol. LV, 3ª Ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 339.

[10] Art. 2.002. Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação.Parágrafo único. Para cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível.

[11] Art. 1.171. A doação dos pais aos filhos importa adiantamento da legitima.

[12] Trecho de acórdão do TRF 2ª R.; AI 0009125-04.2017.4.02.0000; Quarta Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Luiz Antonio Soares; DEJF 21/08/2020.

[13] Trecho de acórdão do TRF 2ª R.; AI 0009125-04.2017.4.02.0000; Quarta Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Luiz Antonio Soares; DEJF 21/08/2020.

[14] Regra prevista no art. 544 do Código Civil, relativa a adiantamento de herança, que visa somente à proteção dos demais herdeiros necessários. Eventual desconstituição da doação, pleiteada por credor do ‘de cujus’, que deve se dar pelas vias adequadas da fraude à execução, fraude contra credores ou outras espécies tais quais as relativas aos vícios do negócio jurídico. Decisão reformada para afastar a penhora sobre o imóvel. RECURSO PROVIDO EM PARTE. (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2009067-52 .2023.8.26.0000 São Paulo, Relator.: Ernani Desco Filho, Data de Julgamento: 26/06/2023, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/06/2023).

[15] Bem imóvel que à época da constituição da dívida, já não mais integrava o patrimônio do coexecutado, portanto não podendo responder pelo seu pagamento. O art. 544 do Código Civil traz regra para a proteção dos herdeiros necessários em caso de adiantamento da legítima, que combinado com o art. 2002 se destina a igualar as cotas hereditárias, mas não para estabelecer a responsabilidade dos bens doados pelas dívidas do falecido constituídas posteriormente. Recurso não provido. (TJ-SP – AI: 22154287220218260000 SP 2215428-72.2021.8.26.0000, Relator.: Gilberto dos Santos, Data de Julgamento: 24/11/2021, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/11/2021)

Autores

  • é doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, conselheiro da Câmara de Mediação e Arbitragem do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam, membro da Comissão Especial do Senado para a Reforma do Código Civil, advogado e parecerista.

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