'Tudo é vaidade e dor': Eclesiastes, Schopenhauer e a ficção normativa do Direito
18 de abril de 2025, 19h18
Em diferentes tempos e linguagens, o livro de Eclesiastes e a obra de Arthur Schopenhauer produzem diagnósticos convergentes sobre a condição humana: a vida, tal como experimentada, é marcada pela frustração, pela insaciabilidade do desejo e pela inevitabilidade da morte.
Entre a sabedoria hebraica do Antigo Testamento, cuja autoria é atribuída pela tradição ao Rei Salomão, e a filosofia alemã do século 19, aparece uma coincidência estrutural: a suspeita profunda sobre a racionalidade e a finalidade da existência. Em ambos os casos, a experiência do mundo é atravessada por um sentimento de insatisfação e impotência diante da estrutura da realidade.
Para o que se propõe neste texto – inclusive tendo em consideração a formação do autor – cabe dizer que esse pessimismo existencial contrasta com um dos pilares simbólicos da modernidade: a normatividade jurídica, que pressupõe ordem, previsibilidade, responsabilização e, em alguma medida, sentido – notadamente a partir de preceitos lógicos.
O Direito, em seu formato moderno, se apresenta como instrumento de racionalização da vida coletiva, de administração dos conflitos e de realização de uma promessa de justiça. Busca-se, aqui, ainda que de forma sintética, elaborar certa leitura crítica que articula o pessimismo existencial do livro de Eclesiastes e compreensão de Schopenhauer com a realidade da normatividade jurídica, a partir da análise de eventuais fissuras, limites impostos, congruências e divergências. A partir dessa aproximação, torna-se possível suscitar dúvida na crença na coerência interna do sistema jurídico, revelando o quanto este depende de construções simbólicas que não resistem a uma ontologia do sofrimento.
O livro de Eclesiastes, atribuído a Salomão e posicionado no cânone sapiencial da Bíblia hebraica, formula uma crítica existencial radical [1]. Sua abertura, que pode ser compreendida como uma das declarações mais desoladoras da tradição judaico-cristã, é clara: “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1:2). A palavra-chave — hevel — é frequentemente traduzida como “vaidade”, mas seu significado literal é mais profundo e sombrio: vapor, fumaça, sopro. Dito de outro modo, para além da vaidade como questão ligada à imagem ou beleza, o mundo, segundo o Pregador (o autor de Eclesiastes), é inconsistente e efêmero, beirando, segundo os capítulos 2 e 3 do mesmo livro, o inapreensível.
Nessa perspectiva, todos os empreendimentos humanos se revelariam estéreis: o trabalho, o saber, o prazer, a justiça. A repetição cíclica dos fenômenos naturais (“o sol nasce e se põe…”), a inevitabilidade da morte e a indistinção entre o destino do justo e do iníquo denunciam a ausência de uma ordem moral ou teleológica que fundamente a experiência. O autor de Eclesiastes exprime uma visão do mundo onde o tempo é destrutivo, e a memória é vã. Enfim, nada se fixa, tudo é vaidade ou efêmero.
Em termos jurídicos, o impacto dessa visão é radical. A ideia de que é possível construir um sistema racional de retribuição, de imputar responsabilidade, de restaurar equilíbrio através da norma, é posta em xeque. O Direito, nessa visão, não seria mais que uma das tantas tentativas humanas de dar sentido ao que não tem sentido. O autor de Eclesiastes adverte: “Vi ainda debaixo do sol que no lugar do juízo havia impiedade, e no lugar da justiça, iniquidade” (Ecl 3:16).
Em salto de vários séculos para o que a tradição traz como autor de Eclesiastes – Rei Salomão –, mais que 2.500 anos, Arthur Schopenhauer parte de uma epistemologia kantiana, que desloca em direção a uma ontologia negativa.
Em O Mundo como Vontade e Representação, afirma que a realidade em si mesma — o númeno kantiano — é vontade: uma força cega, irracional e incessante, que se manifesta em todos os seres vivos. O homem é sua expressão mais refinada, mas também a mais atormentada: quanto mais desenvolvida a consciência, mais aguda a experiência da dor.
Ainda segundo este pensamento, a vontade se expressa como desejo, e consequência disso seria o sofrimento. Logo, toda satisfação seria apenas momentânea; então, surge-se um novo desejo. Por consequência, ainda segundo Schopenhauer, quando não se deseja, sobrevém o tédio. A vida, para o polonês falecido em Frankfurt, é um circuito fechado de insatisfação. O prazer é apenas a suspensão momentânea da dor.

Esse sistema ontológico tem a capacidade de esvair a ideia de um sujeito autônomo e racional, fundamento da responsabilidade jurídica moderna. A filosofia do Direito — especialmente no liberalismo clássico — se estrutura sobre a crença na liberdade da vontade, na capacidade do sujeito de deliberar e escolher. Schopenhauer, ao seu turno, nega essa liberdade: a vontade antecede e atravessa toda racionalidade. A liberdade é ilusão; o sujeito não age, apenas é conduzido.
Direito como ficção
O impacto disso sobre a estrutura jurídica é profundo. Vê-se, aqui, por exemplo, a perda do fundamento ontológico da culpa, em seu sentido mais amplificado. A responsabilidade penal — baseada na consciência e vontade do agente — se revela frágil. O Direito, ao afirmar a autodeterminação do indivíduo, estaria encobrindo a verdadeira natureza da existência: um fluxo irracional de impulsos que o sujeito apenas racionaliza a posteriori.
O estudo do Direito pelo passar histórico demonstra que a normatividade jurídica tem como base de organização uma promessa: a aplicação das normas permitirá ordenar o mundo de modo justo, coerente e racionalmente fundamentado. Essa promessa exige, entre outras coisas: (a) que os sujeitos sejam livres e conscientes; (b) que suas ações sejam voluntárias e passíveis de imputação; e (c) que haja alguma correspondência entre ação, consequência e valor.
Tanto Eclesiastes quanto Schopenhauer negam essas premissas. O primeiro afirma que os justos e os ímpios têm o mesmo destino, que o tempo e a sorte governam o mundo, e que a justiça humana é muitas vezes um lugar de “iniquidade”. O segundo sustenta que o sujeito é determinado por uma vontade inconsciente, que antecede qualquer escolha ou razão.
A partir dessa perspectiva, o Direito aparece como uma ficção consoladora. Não no sentido de algo necessariamente falso, mas enquanto construção simbólica que busca dar forma, previsibilidade e sentido à vida em sociedade. A racionalidade jurídica — com sua lógica causal, sua fé no procedimento e sua crença na forma (aqui quase se pondo como dogma religioso ou situação histórico-mitológica) — produz um mundo simbólico que mascara a arbitrariedade da experiência real.
Tem-se como certo – aqui em afirmação carente de qualquer metodologia científica – que a forma jurídica exige consistência, esta sim política e metodológica. No entanto, a vida, tal como descrita por Eclesiastes e Schopenhauer, é essencialmente inconsistente. Não se trata de negar a importância prática do Direito, mas de reconhecer seus limites como estrutura de sentido. Em muitos casos, a normatividade não apenas fracassa em restaurar a ordem, como também pode produzir sofrimento adicional: revitimiza, silencia, reproduz injustiças.
Curiosamente, nem Eclesiastes nem Schopenhauer defendem o cinismo ou a destruição da ordem social. Ambos propõem formas de resistência modesta.
Em primeiro momento, o autor de Eclesiastes sugere que se aproveite a vida de forma simples: “Goza a vida com a mulher que amas… pois esta é a tua porção” (Ecl 9:9). Trata-se de uma ética da moderação, do usufruto discreto do presente, sem ilusões grandiosas.
Em complementação – não necessariamente proposital –, Schopenhauer propõe a contemplação estética, a compaixão e a negação da vontade como saídas do circuito da dor. É uma ética da renúncia, da introspecção, da lucidez metafísica.
Ambos os autores, portanto, rejeitam a pretensão de totalidade do saber humano. E é justamente aqui que sua contribuição à reflexão jurídica se torna mais valiosa: ao expor o excesso de confiança na razão normativa, ajudam a cultivar uma atitude de desconfiança crítica, de modéstia epistemológica.
Essa lucidez pode ser fundamental para práticas jurídicas mais conscientes de seus limites e menos comprometidas com a ficção de neutralidade ou completude. Um Direito atravessado por Eclesiastes e Schopenhauer talvez seja menos triunfalista, mais atento à dor, mais humilde em suas promessas.
A leitura cruzada de Eclesiastes e Schopenhauer traz a capacidade de criar tensões entre a confiança moderna na ordem normativa do Direito e o estado atual das coisas. Ambos os autores fazem questão de expor que a vida excede o plano das normas, que o sofrimento é estrutural e que a justiça, como construção humana, é precária e, na maioria das vezes, atrasada quanto ao plano fático das coisas.
O pessimismo, longe de ser resignação, pode ser lido aqui como lucidez crítica: não se pretende abolir a normatividade, mas sim impedir que ela se cristalize. A modéstia de Eclesiastes e a renúncia de Schopenhauer funcionam como antídotos contra a arrogância da forma jurídica. O Direito, assim como a vida, não pode tudo. Reconhecer isso talvez seja o primeiro passo para que possa, ao menos, não fazer mal.
[1] Qohelet (ou Coélet, em português) é o nome hebraico do autor — ou personagem central — do livro bíblico conhecido como Eclesiastes, que faz parte do Antigo Testamento. O nome Qohelet deriva da raiz hebraica qahal (קהל), que significa “ajuntar, reunir”, referindo-se a alguém que fala perante uma assembleia, como um pregador ou sábio. Por isso, o nome é geralmente traduzido como “Pregador”, “Orador” ou “Sábio que ensina na assembleia”. Na Septuaginta (tradução grega da Bíblia hebraica), Qohelet foi traduzido como Ekklesiastes, de onde vem o nome “Eclesiastes”. O autor do mencionado livro bíblico ao se apresentar como “filho de Davi, rei de Jerusalém” – conforme versão traduzida e atualizada por João Ferreira de Almeida para o Brasil – seria elemento apto a reforçar a ideia de autoria do Rei Salomão.
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