Senso Incomum

A sociedade dos juristas mortos, o Black Mirror e a petição por IA

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17 de abril de 2025, 8h00

Atenção: não é a série Black Mirror, nem Conto da Aia:

É o TRT-RS, local em que o servidor dá a ordem para o robô:

“E faça Análise da petição inicial por inteligência artificial – ChatJT (diligência experimental). Certifico que, de ordem, foi realizada análise da petição inicial e documentos pela ferramenta ChatJT, com os seguintes parâmetros” (e segue a análise que servirá de base para a decisão!).

E o robô fez (leia aqui).

1. Prelúdio

Assisti ao primeiro episódio da nova temporada de Black Mirror. Assustador. Porque retrata o que se passa já hoje, embora seja distópico.

Conto um pouquinho da trama: a esposa de um operário, professora, tem um tumor cerebral. Fatal. Porém, uma empresa de inteligência artificial, uma startup, pode proporcionar uma nova vida à professora. O custo é alto, mas suportável. Com o dispositivo, ela tem, como em um celular, território limitado de cobertura.

De repente, ela mistura em suas falas pequenos comerciais, igualzinho aos reclames que cobrem os textos na internet.  Alguém fala algo e ela mete um reclame publicitário. Como você, que pesquisa sobre bicicleta, recebe na hora propostas de vendas.

E aí começa o inferno. Os “planos de cobertura” do “celular” da professora vão alterando, vão custando mais. Se não fizer um premium, um luxor… ficará “sem sinal”… ou “sem créditos”. Bom, para não dar spoiler, paro por aqui.

2. E morrem os usuários dos livros e surge a sociedade dos juristas mortos

Como sempre, a série vai fundo no cutuco de nosso Zeigeist. Dilacera nossas feridas narcísicas. Quais são os limites da criação tecnológica? Dizem no Vale do Silício que não há limites.

Spacca

Religiosos dirão que o smartphone (no Brasil já há mais do que pessoas) é a marca da besta. Bom, se andarmos pelas ruas e shoppings, veremos que todas as pessoas estão fazendo a mesma coisa: olhando para a telinha, para o grande irmão, que tudo vê e que tudo sabe.

No direito dia a dia vemos a extensão do estrago feito pela formação de brainrot (cérebros apodrecidos). Não preciso falar dos estudos que mostram que esse império de Tik Toks e quejandices prejudicam a cognição. Já estamos na sociedade dos leitores mortos, substituídos por zumbis que andam pelas ruas e escadas rolantes olhando Instagram com filminhos de cachorrinhos e as novas tatuagens de protagonistas das redes.

Tribunais se deparam com invenção de “precedentes” e até de artigos de códigos. Petições feitas por robôs são o de menos. Já existem empresas que pesquisam precedentes para o causídico. Startups vendem para o causídico petições e recursos. Tudo pronto em 30 segundos. Faça você mesmo o teste. Agora.

3. A obsolescência programada ad infinitum

O problema é que, como na série Black Mirror, existe uma obsolescência programada no “sistema”. A cada dia isso funciona como na drogadição. Você sempre quererá mais. E venderá a sua mãe. E, pior, entregará a gentil senhora.

A tempestade perfeita: depois do ChatGPT, DeepSeek e seus concorrentes, outras plataformas estão entrando no rol de ferramentas de IA usadas por adolescentes nos estudos. Coconote, PDF To Brainrot, Raena e TurboLearn AI são alguns dos aplicativos usados por estudantes para resumir conteúdos e transformá-los em áudios ou vídeos curtos, auxiliando na concentração [1].

Tudo pode ser encolhido, resumido e transformado em imagem. E até em joguinhos.  Pior, muito pior: ao pesquisar no TikTok por brainrot studying (estudar com o cérebro podre, em tradução livre), é possível encontrar centenas de vídeos com dicas para usar plataformas de IA que resumem conteúdo. Nas postagens, os jovens ensinam a usar as ferramentas e prometem bons resultados no estudo [2].

Em uma publicação com mais de 1,5 milhões de curtidas, por exemplo, uma jovem mostra como usar o app PDF To Brainrot e afirma que conheceu o recurso por meio da irmã mais nova. Nos comentários, há relatos como “isso mudou minha vida” e “genial” [3].

Bingo.

 

Epílogo: já de hoje se pode dizer que Black Mirror é a perfeita alegoria do trapezista que, de tão perfeito e autossuficiente, morre …por achar que voava. A IA e seus adeptos-usuários acham que voam. E isso é perigoso.

Lá no início tem o link do “relatório” feito pela inteligência artificial sob as ordens do servidor do TRT. A questão é: quem conferiu? E quem garante que a decisão não foi sugestionada por esse relatório? Ou que a própria decisão também não tenha sido “sugerida” pelo mesmo robô?

Eis o nosso Black Mirror. Em Mato Grosso a IA inventou um artigo do Código Civil; em Santa Cataria inventou precedentes; em busca em que testamos um determinado “depósito” de precedentes, apareceram vários inventados… Em que momento nos daremos conta de que existem limites? Os regimes autoritários se instalaram por omissão da comunidade jurídica. Bernd Rüthers denunciou isso. E eu já fiz isso várias vezes aqui e em outros veículos. Problema: não fiz por tik tok. Falhei.

 


[1] Reportagem da jornalista Sofia Lungui no jornal Zero Hora

[2] Idem.

[3] Idem.

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