O Pillar 2 tropical: sobre o adicional de CSLL da Lei nº 15.079/2024
16 de abril de 2025, 9h22
“Olhei também e não pude conter um movimento de repulsa. Ante meus olhos agitava-se um horrível monstro, digno de figurar nas lendas teratológicas.
Era um polvo de dimensões gigantescas. Teria cerca de oito metros de comprimento e caminhava recuando com incrível velocidade, em direção ao navio, cravando nele os grandes olhos de matiz esverdeado. Seus oito braços, ou melhor, seus oito pés, saindo da cabeça, o que faz com que esses animais sejam chamados cefalópodes, tinham o dobro do tamanho de seu corpo e se agitavam como a cabeleira das Fúrias.”
(Julio Verne, 20 mil léguas submarinas)
Contexto global
O Projeto Beps (Base Erosion and Profit Shifting) foi um divisor de águas para a fiscalidade internacional. Suas 15 ações, lançadas pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 2013, visando saciar as demandas de incremento de arrecadação dos países do G20, revolucionaram paradigmas da tributação internacional, transformando o objetivo primordial de eliminação da dupla incidência em pretensões positivas de incidências mínimas.
Nesse contexto é que surgiu o chamado Pillar 2, um conjunto de medidas com o propósito de assegurar uma tributação efetiva mínima para as administrações fiscais de 15% de imposto de renda sobre os lucros consolidados dos grupos multinacionais que tenham receitas anuais superiores a 750 milhões de euros.
São três as principais modalidades de tributação preconizadas pelo Fisco Global, para obter o resultado almejado: (i) Income Inclusion Rule (IIR); (ii) Undertaxed Profit Rules (UTPR); e (iii) Qualified Domestic Minimum Top-up Tax (QDMTT). [1]
A implementação dessas modalidades se opera pela criação, ex novo, de direitos de tributação ou limites a deduções da base de cálculo do imposto de renda, de modo a permitir que eventuais espaços vazios de tributação efetiva mínima de 15% identificados nas diferentes jurisdições de atuação do grupo sejam preenchidos pela longa manus dos fiscos de outras jurisdições onde também se situam empresas do mesmo grupo.
Os contribuintes passaram a viver sob o olhar atento de uma nova criatura — o Big Brother fiscal —, que observa o atingimento dos patamares mínimos ideais de imposto (hoje consensados em 15%, mas que poderão ser maiores, a depender da crescente voracidade arrecadatória dos fiscos), e usa seus tentáculos para preenchê-los, por vezes de forma extraterritorial, pela via da tributação (ou limitação a dedução) pelos países onde estão situadas outras entidades do grupo.
A principal modalidade de tributação extraterritorial é o IIR que significa a atribuição de um direito de tributação ao país sede da entidade principal do grupo multinacional até o limite necessário para preencher (top-up) o espaço vazio de tributação efetiva em uma dada jurisdição. Um exemplo facilitará a compreensão.
Um grupo multinacional francês, cuja entidade principal é domiciliada na França e detém 60% do capital de uma subsidiária argentina. Imagine-se que na Argentina a tributação efetiva do lucro foi de 9%. Há um espaço a ser preenchido de 6% para chegar ao número mágico de 15%. O lucro sub tributado será incluído na base de cálculo do imposto de renda francês e lá tributado a 6%.
Situação análoga existirá pelo mecanismo, mais complexo, agressivo, e, por isso, rejeitado por diversas jurisdições, do UTPR. Esse mecanismo opera, por exemplo, no caso em que a jurisdição da entidade principal não tenha implementado o IIR (p. ex. EUA), e, uma entidade controlada na Argentina não tenha atingido o patamar mínimo de tributação efetiva de 15%. Havendo uma empresa irmã, também controlada pela entidade principal, domiciliada em uma jurisdição que tenha implementado do UTPR, essa empresa poderá ter a dedução de certas despesas incorridas nas relações intragrupo limitada, no todo ou em parte, de modo a permitir alcançar, por via oblíqua, a tributação almejada.
Nenhuma dessas providências será necessária, porém, se o país de domicílio da entidade sub tributada tiver adotado o QDMTT, como fez o Brasil. Com efeito, a existência do QDMTT significa a atribuição de um direito de tributação adicional preventivo para o país onde está domiciliada a entidade que não atingiu os patamares mínimos de tributação efetiva. Imagine-se a empresa com tributação efetiva de 9% sendo domiciliada no Brasil. Esse espaço de 6% será preenchido (top-up) pelo próprio Brasil, não deixando que se aplique o IIR, nem o UTPR.
Pode-se, assim, dizer que há uma ordem de precedência de aplicação desses direitos de tributação adicional. Primeiro verifica-se se houve tributação efetiva menor que 15%. Se houve, o país sede da empresa tributará através do QDMTT, o espaço que, por aplicação de sua própria lei interna, restou não tributado às taxas idealizadas pelo Fisco Global. Na ausência de QDMTT, a tributação será exercida pelo país de domicílio da entidade principal, através do IIR; na falta de QDMTT e de IIR, os países das entidades irmãs acionarão os mecanismos de UTPR, que poderão resultar em múltiplas pretensões fiscais pela via obliqua da indedutibilidade.
O QDMTT brasileiro
O QDMTT veio a ser instituído pela Lei n.º 15.079, de 27 de dezembro de 2024, sob o nomen iuris de adicional de CSLL incidente sobre o lucro líquido ajustado obtido pelas pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil integrantes de um grupo de empresas multinacional, controlado por entidade não residente no Brasil, que tiver auferido receitas anuais de 750 milhões de euros ou mais nas demonstrações financeiras consolidadas da entidade investidora final em pelos menos dois dos quatro anos fiscais imediatamente anteriores ao analisado.
Trata-se, como se viu, de uma medida de caráter defensivo do Brasil, visando impedir que o espaço vazio de tributação mínima seja preenchido por outras jurisdições, seja a da matriz, pelo IIR, sejas as de empresas irmãs, pelo UTPR.

A definição a respeito da aplicação ou não do dito adicional, exige a realização de cálculos complexos para saber a extensão da base de incidência — o chamado Lucro GloBE —, assim considerado o lucro líquido ajustado pela adição ou exclusão de diversos itens previstos em anexos à lei, tais como dividendos, ganhos ou perdas em participação no capital, ganhos ou perdas na avaliação a valor justo, perdão de dívida, ganhos ou perdas cambiais assimétricas, entre outros.
Há, ainda, os chamados ajustes de substância, aplicáveis diante da existência de uma atuação substantiva da subsidiária na jurisdição, atuação essa revelada pela magnitude de seus ativos tangíveis e da respectiva folha de pagamentos.
Escapa aos limites dessa coluna adentrar nas complexas especificidades contábeis do emaranhado de ajustes de cálculo concebidos pela alta tecnocracia do Fisco Global, plasmados em anexos técnicos da Lei n.º 15,079, de 2024, e esmiuçados da Instrução Normativa n.º 2.228, de 2024.
Não deixaremos, porém, de expor algumas reflexões críticas a respeito dessa nova legislação à luz do direito constitucional brasileiro.
Reflexões críticas
Está bem de ver que o tributo em questão nada tem de adicional de CSLL, pois, como tratado pela legislação de regência, sua base de cálculo é distinta da CSLL, não sendo devido “adicionalmente” a algo previamente existente.
Trata-se de verdadeira contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide), regrada no artigo 149 da CF/88, tendo em vista tanto sua finalidade quanto seu caráter discriminatório. O tratamento desigual e não isonômico aplicado à tributação das pessoas jurídicas com o mesmo faturamento global, consoante estejam ou não integradas em grupos multinacionais, só pode ser compreendido e admitido como constitucionalmente adequado se se conceber o dito adicional como novo tributo com natureza interventiva especialíssima e não como um adicional da CSLL das pessoas jurídicas em geral.
Sendo CIDE, sua instituição, e eventuais agravamentos, devem observar a anterioridade anual e nonagesimal, o que, ao nosso ver não permite a exigência do tributo sobre os fatos geradores ocorridos nos 90 dias posteriores à sua instituição.
Veja-se que, independentemente da natureza de Cide ou de CSLL do QDMTT brasileiro, o certo é que a vacatio legis se imporá da mesma forma, haja vista a sua aplicação às contribuições sociais do art. 195 da CF/88.
Outra reflexão que se impõe tem a ver com a “deslegalização” provocada pela necessidade de se adotar, em um espaço dominado pelo princípio da legalidade, os regulamentos técnicos ditados pelo Fisco Global. É o que se extrai do artigo 3º e §1º da Lei 15.079, de 2024:
Art. 3º Ato da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda regulamentará o disposto neste Título e disporá, em especial, sobre: (….)
1º O ato a que se refere o caputdeste artigo deverá ser elaborado e periodicamente atualizado para que esteja em consonância com os documentos de referência aprovados pelo Quadro Inclusivo da OCDE, e suas disposições deverão ser estabelecidas de modo a preencherem os requisitos para qualificação do Adicional da CSLL como um Qualified Domestic Minimum Top-up Tax(QDMTT).
A necessidade de uniformização e revisão periódica de critérios imposta pelos tecnocratas, com regulamentos extensos e de monótona aridez, exigiu uma inédita inconstitucional delegação de competências do parlamento para a Receita Federal que, se não contida, servirá como gravíssimo precedente de violação da garantia individual em que o princípio da legalidade se traduz.
Essa preocupação mais se acentua pela leitura do §4º do referido artigo 3º, que amplia de forma inadmissível, a competência do regulamento em questão, autorizando-o a disciplinar outros ajustes às bases de cálculo e aos tributos além daqueles previstos na própria lei.
4º Observado o disposto no § 1º, o ato a que se refere o caputdeste artigo poderá estabelecer outros ajustes ao lucro ou prejuízo GloBE e aos tributos abrangidos ajustados além dos previstos nesta Lei.
Não se ignora que tenha havido uma autocontenção, pela submissão do regulamento à anterioridade e à vacatio legis, ex vi do §5º, segundo o qual as atualizações ou alterações que importem em aumento da carga tributária serão aplicadas ao ano fiscal que iniciar: I — no ano subsequente ao da publicação da atualização ou alteração; II — 90 (noventa) dias após a publicação da atualização ou alteração”
Sucede, porém, que a Constituição faculta ao chefe do executivo o uso da medidas provisórias, com força de lei, nos casos de relevância e urgência, exatamente para permitir agilidade na implementação das medidas que são de competência do legislativo.
É, pois, de se repudiar essa delegação em branco, apenas admitindo-se como constitucionalmente válidas alterações ao QDMTT brasileiro por regulamento que sejam mais favoráveis aos contribuintes, isto é, que reduzam sua carga tributária.
Ao fim, não se pode deixar de dirigir uma crítica ferrenha ao artigo 36, que veicula uma das mais abjetas normas de restrição de acesso ao judiciário.
Art. 36. O Adicional da CSLL de que trata esta Lei será considerado não recolhido caso seja, direta ou indiretamente, objeto de litígio judicial ou administrativo e não poderá ser utilizado como crédito na aplicação das Regras GloBE pelo grupo de empresas multinacional em nenhuma circunstância, ano fiscal ou jurisdição.
Ora, os contribuintes não podem ter seu direito de questionamento judicial do QDMTT brasileiro cerceados pela ameaça de considerá-lo como tributo não recolhido, com as graves consequência daí decorrentes. É certo que o contencioso pode se alongar e ter efeitos temporais negativos na consideração dos créditos nas cadeias globais de participações, mas usar a lei para punir o exercício de direito livremente assegurado pela Constituição é um exemplo de escola de inconstitucionalidade gritante.
Todas essas reflexões críticas podem ser meras palavras ao vento se cumprida a promessa de Trump de retaliar, impondo “contramedidas” caso outros países promulguem regras tributárias “discriminatórias” e “extraterritoriais” que prejudiquem empresas americanas, dentre as quais estão as regras de tributação mínima como o QDMTT brasileiro [2].
Diante da resistência trumpista haverá ainda espaço para esses anagramas — IIR. UTPR, QDMTT — que mascaram pretensões tributárias extraterritoriais do Fisco global?
Que venham os próximos capítulos desse novos tempos sinistros.
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[1] Afora esses três mecanismos de tributação dos lucros sub tributados, o Pillar 2 prevê um mecanismo – o Subject to Tax Rule (STTR) – que poderá ser utilizado pelos países das fontes pagadoras para elevarem o percentual do IRF em pagamentos intragrupo quando esses estiverem sujeitos a uma alíquota nominal de IRPJ no país de residência inferior à alíquota da retenção estabelecida nos tratados. Trata-se de medida cuja implementação depende da inclusão de novas disposições aos tratados existentes.
[2] https://www.conjur.com.br/2025-jan-23/eua-e-a-guerra-fiscal-a-resistencia-de-trump-ao-imposto-minimo-global-da-ocde/
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