Espécies de alíquotas: há teto constitucional implícito ao IBS/CBS até 2033?
16 de abril de 2025, 6h36
O sistema tributário, desenhado originariamente pela Constituição de 1988, se baseia na repartição da competência para a criação de impostos sobre o consumo entre as três esferas da federação. De forma ampla, os estados podem instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), os municípios podem instituir imposto sobre serviços (ISS) e a União tem competência para a instituição de imposto incidente sobre produtos industrializados (IPI).

Esse modelo já havia sido pensado e adotado no Brasil pela Emenda Constitucional nº 1/1969, com alteração da então vigente Constituição de 1967, e foi mantido, com ajustes, pela Constituição de 1988, em que pese a existência de críticas doutrinárias que já apontavam, à época, os problemas desse desenho [1].
Subsequentemente, o modelo sofreu alterações pontuais, como a ampliação da incidência do ICMS sobre importações e o alargamento da competência da União para a criação de contribuições sobre a receita ou o faturamento, com regimes cumulativo e não cumulativo.
Como é notório, essa repartição de competências gerou e ainda gera uma série de ineficiências para o sistema tributário brasileiro, como o estímulo à guerra fiscal entre os entes federativos, a criação de políticas de atração de investimentos descentralizadas e não coordenadas e efeitos adversos sobre a neutralidade do sistema.
A tentativa de reforma desse modelo se arrastou por décadas, mas invariavelmente esbarrou em dois obstáculos centrais: de um lado, o receio político dos Estados quanto à perda de arrecadação; de outro, o receio jurídico, manifestado por parte da doutrina, de que a unificação dos tributos sobre o consumo num imposto nacional do tipo IVA violaria o princípio federativo e comprometeria a própria validade da emenda constitucional reformadora.
Por isso, a Emenda Constitucional nº 132/2023 foi desenhada com diversos cuidados para sustentar a narrativa de que a competência de estados e municípios estaria sendo preservada no novo sistema. Isso se observa, por exemplo, na previsão de que o IBS é de competência compartilhada entre estados e municípios (artigo 156-A, CF), na criação do Comitê Gestor como órgão colegiado com representação de todos os entes subnacionais (artigo 156-B, CF), e, ainda, na autorização para que as alíquotas do IBS sejam compostas pelo somatório das alíquotas do estado e do município de destino da operação, alíquotas essas que são fixadas por lei própria de cada um dos entes subnacionais (artigo 156-A, V, CF).
Esse último ponto merece especial atenção, sobretudo porque a Emenda nº 132/23 introduziu espécie de alíquota até então inexistente no sistema brasileiro: as chamadas alíquotas de referência, que serão fixadas por resolução do Senado (artigo 156-A, § 1º, XII, CF) e que conviverão com as alíquotas próprias, que serão fixadas por lei ordinária de cada ente subnacional. Em meio a esse novo vocabulário técnico, difundiu-se a ideia de que a alíquota total do IBS e da CBS teria um limite máximo de 26,5%.
A questão, no entanto, merece ser avaliada com o devido cuidado, passando pela correta compreensão da natureza jurídica das alíquotas de referência, dos limites constitucionais à centralização do Senado Federal quanto à fixação dessas alíquotas e, ainda, da tentativa de manutenção da autonomia legislativa de cada um dos entes subnacionais para fins de fixação das alíquotas do IBS/CBS que, como já foi dito, é pilar fundamental para sustentar a constitucionalidade da Emenda nº 132/23 ante o princípio federalista.
O primeiro passo é compreender que a Constituição determina que o Senado deve fixar as alíquotas de referência do IBS e da CBS (artigo 156-A, § 1º, XII e artigo 130 do ADCT). Isso vale para todas as esferas federativas. Essas alíquotas, como do seu próprio nome se infere, são referências, pelo que serão aplicadas apenas se os entes subnacionais não fixarem suas próprias alíquotas (as chamadas alíquotas próprias).
Cálculo das alíquotas e regras de redução mandatória
As alíquotas de referência devem ser calculadas com base em estudos do Tribunal de Contas da União e devem ter por objetivo manter a carga tributária atual como proporção do PIB. As alíquotas serão fixadas no ano anterior ao de sua vigência, sem aplicação da regra da anterioridade mínima prevista no artigo 150, III, “c”, da CF (artigo 130 § 1º, do ADCT).
De modo resumido: (1) de 2027 a 2033, a receita da União com CBS e IBS deve ser equivalente à redução de receita com PIS/Cofins, PIS/Cofins-Importação, IPI e IOF-Seguros; (2) de 2029 a 2033, a receita dos Estados e do DF com o IBS deve ser equivalente à redução de receita com o ICMS e com fundos criados pelos estados até 30/4/2023 financiados com “contribuições” estabelecidas como condição à fruição de benefícios fiscais; e (3) de 2029 a 2033, a receita dos Municípios e do DF com o IBS deve ser equivalente à redução de receita com o ISS.
A Constituição estabelece, ainda, duas regras que podem ser chamadas de regras de redução mandatória. A primeira, a regra de redução mandatória de 2030 (artigo 130, § 4º, do ADCT) impõe redução obrigatória das alíquotas de referência da CBS em 2030. Caso a média da arrecadação da União com a CBS (em 2027 e 2028), como proporção do PIB, ultrapasse a média arrecadada entre 2012 e 2021 com os tributos antigos (PIS, Cofins, PIS/Cofins-Importação, IPI e IOF-Seguros), a alíquota deverá ser reduzida.
A segunda, a regra de redução mandatória de 2035 (artigo 130, § 5º, do ADCT), impõe redução das alíquotas de referência do IBS e da CBS em 2035, caso, entre 2029 e 2033, a arrecadação média da União, dos estados e dos municípios com esses tributos, como proporção do PIB, for superior à média da arrecadação total entre 2012 e 2021 com os tributos extintos (PIS, Cofins, IPI, ICMS, ISS e IOF-Seguros) [2].
Apesar dessas regras, não há na Constituição qualquer norma explícita que imponha um limite máximo às alíquotas próprias dos entes federativos. Ao contrário: a Constituição prevê apenas um limite mínimo para a alíquota do IBS (artigo 131, § 6º, do ADCT). Ainda assim, a melhor interpretação das regras de transição do artigo 130 do ADCT, aliada às normas de redução programada, indica que há, até 2033, um compromisso constitucional implícito de manutenção da carga tributária como proporção do PIB e, nesse caso, as alíquotas de referência podem sim funcionar como parâmetros máximos para fixação da carga tributária total incidente. Mas isso parece ser uma conclusão extraível apenas até 2033, por força dessas regras constitucionais de transição.
Claro que uma objeção a esse raciocínio poderia ser feita sob o argumento de que essas reduções mandatórias se referem apenas às alíquotas de referência, não afetando o direito de os entes subnacionais fixarem suas alíquotas próprias. Esse argumento ignora que a Constituição utiliza as alíquotas de referência também com uma função de coordenação federativa e como instrumento eficaz de manutenção da carga tributária atual. A transição para o novo modelo de tributação do consumo é baseada na ideia de que não haverá aumento de carga tributária em proporção do PIB, pelo que, ao menos durante a transição, existem fundamentos constitucionais para a defesa de que a liberdade dos entes subnacionais para a fixação de suas alíquotas próprias encontra limite na fixação das alíquotas de referência pelo Senado.
Não se ignora que o artigo. 130, § 7º, do ADCT foi cauteloso em prescrever que essas revisões das alíquotas de referência não implicam na autorização de restituição de tributos que tenham sido eventualmente pagos indevidamente, mas isso apenas confirma que, durante a fase de transição, as alíquotas próprias devem ser prescritas — em compatibilidade às alíquotas de referência — para fins de manutenção da atual carga tributária.
Uma limitação tal como essa, caso viesse a ser formulada por lei complementar, ainda que possa ser bem-vinda do ponto de vista político, esbarraria no princípio federalista e na preocupação de que os entes subnacionais possam exercer o pouco que lhes restou de autonomia: fixar suas próprias alíquotas, colocando em risco a higidez de toda a Emenda nº 132/23.
A Lei Complementar nº 214/2025 de fato faz menção, em seu artigo 475, ao limite máximo do somatório das alíquotas de referência no patamar de 26,5%, mas este percentual não deve ser entendido como um autêntico limite.
O que a lei prescreve é que serão realizadas avaliações quinquenais da eficiência, eficácia e efetividade de regimes diferenciados, específicos e outros regimes favorecidos no âmbito do IBS e da CBS como instrumentos de políticas públicas e que, na primeira dessas avaliações quinquenais, que deve ser realizada com dados de 2030, caso a estimativa do somatório das alíquotas de referência ultrapasse 26,5%, caberá ao Poder Executivo enviar ao Congresso um projeto de lei complementar propondo ajustes nos regimes favorecidos, de modo a manter o somatório das alíquotas de referência no já mencionado patamar de 26,5%.
Bem compreendida a questão, é fácil perceber que a lei complementar não prescreveu uma trava ou um limite, até porque, qualquer tentativa de impor, por lei complementar, um teto para as alíquotas próprias dos estados e municípios violaria frontalmente o pacto federativo. Se aos entes subnacionais restou apenas a faculdade de fixar alíquotas, retirar-lhes essa prerrogativa equivaleria a esvaziar completamente sua competência.
Não há, portanto, segurança de que o IBS/CBS máximo será de apenas 26,5%. E é difícil imaginar uma solução juridicamente válida que transforme esse número em um teto vinculante por meio de lei complementar. O que há é um caminho interpretativo segundo o qual, durante a fase de transição e em vista de uma leitura sistêmica das regras constitucionais de transição, especialmente das regras de redução mandatória, as alíquotas máximas de CBS e IBS devem ser fixadas de modo a manter a carga tributária em proporção do PIB.
Essa conclusão é consequência do compromisso constitucional com a neutralidade da carga tributária do novo sistema em comparação ao antigo, ponto que foi sempre defendido como trunfo para aprovação da reforma tributária.
[1] Por todos, Cf. COSTA, Alcides Jorge. Algumas Ideias sobre uma Reforma do Sistema Tributário Brasileiro. Revista Direito Tributário Atual, 1988, v. 7/8, p. 1733–1770.
[2] Tendo em vista das regras de transição paulatina do IBS até 2033, nos termos do art. 128 do ADCT, a receita do IBS considerada pela regra do art. 130 do ADCT é uma receita ponderada, e não nominal. Assim, por exemplo, como no ano de 2029, há manutenção da cobrança do ICMS e do ISS em 90% (com cobrança do IBS na proporção que seja capaz de suprir a referida diminuição, ou seja, os 10% descontados), a regra do art. 130 manda multiplicar o valor arrecadado de IBS para esse ano por 10 (o que considera uma receita ponderada de 100% para o IBS).
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