Território Aduaneiro

Pucomex e o discurso do mínimo viável

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

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  • é analista sênior de facilitação do comércio do Sindasp (Sindicato dos Despachantes Aduaneiros de São Paulo). Possui graduação em Gestão do Comércio Internacional pela Unicamp mestrado em Engenharia de Produção (Unicamp) e MBA em Ciência de Dados pela USP.

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15 de abril de 2025, 11h12

Nos últimos anos, nos fóruns sobre o NPI (novo processo de importação), os participantes do setor privado podem ter percebido um aumento considerável da inserção dos termos “desenvolvimento ágil”, referente à Filosofia Ágil, e “MVP”, referente à sigla minimum valuable product (mínimo produto viável, em português), nos discursos dos gestores do Pucomex (Portal Único de Comércio Exterior).

E, com a aproximação dos prazos de desligamento do Siscomex no que se refere aos controles exercidos por órgãos anuentes, que conforme o cronograma oficial até a publicação deste artigo, deverá ocorrer até o próximo mês de junho para o modal aéreo e dezembro para o modal terrestre, o discurso sobre o MPV como padrão de entregas vem se intensificando.

Mas afinal, o que significa desenvolvimento ágil e MPV? E, principalmente, como isso impacta na realidade do comércio exterior?

Metodologia ágil: valores e princípios

Primeiramente, importa elucidar que não existe apenas uma única “metodologia ágil”, podendo ser assim denominada qualquer metodologia ou framework de trabalho de desenvolvimento de software que busque aplicar os valores e os princípios da Filosofia Ágil (ou Manifesto Ágil, como alguns preferem dizer) [1].

De forma sintética, pode-se definir a Filosofia Ágil como uma forma de pensar e trabalhar gestão de projetos pautada na colaboração, flexibilidade e entrega contínua de valor e é pautada em quatro valores bastante claros e diretos: (1) indivíduos e interações mais que processos e ferramentas; (2) software em funcionamento mais que documentação abrangente; (3) colaboração com o cliente; e (4) resposta a mudanças mais que seguir um plano.

Como se vê, três dos quatro valores estão diretamente relacionados à interação dos responsáveis pelo desenvolvimento de software com o usuário final. Ao transpormos essa percepção para o caso concreto do NPI no Pucomex, verificamos uma quantidade considerável do que seriam os perfis de usuários finais – importadores, despachantes aduaneiros, transportadores internacionais, recintos aduaneiros, entre outros – cada um com necessidades e lógicas de trabalho distintas e que tornam a tarefa de cumprir com a Filosofia Ágil bem mais complexa.

Vinculados aos valores mencionados, existem 12 princípios. Dentre estes, três possuem relação direta com o tema a ser tratado e podem ser traduzidos da seguinte forma: (1) o cliente (usuário final) deve estar em primeiro lugar; (2) não é possível saber tudo no momento do desenvolvimento do software, mas contar com o feedback do usuário é vital; e (3) a simplificação (que não se confunde com superficialidade) sempre produz bons resultados [2].

Neste contexto de simplificação e melhoria contínua é que foi concebida a técnica do MVP. Popularizada por Eric Reis em sua obra Startup Enxuta (2011), que trata da importância de economizar recursos e ser mais ágil no lançamento do software, de modo a ganhar maturidade, o MPV é tido como uma forma de validar as regras de negócios e as ideias de funcionalidades inicialmente desenhadas pelos responsáveis do software.

Spacca

Ou seja, trata-se de técnica que preconiza entregas parciais ou simplificadas de modo a obter mais rapidamente o feedback do cliente e utilizá-las como forma de validação. Portanto, o MPV permite que o fornecedor teste hipóteses iniciais e cheque com os usuários se as funcionalidades foram desenvolvidas de modo apropriado, permitindo a correção de erros e ajustes de rumo. Sob a égide do MPV, quem deve verificar se o software é minimamente “viável” ou “adequado” é o próprio usuário e não o seu desenvolvedor.

Ainda que feitas as devidas conceituações e apresentações, o leitor deve estar se questionando: como tudo isso se relaciona com o comércio exterior?

Transformação ágil, governo digital e Pucomex

O assunto da Filosofia Ágil ganha especial relevância ao comércio exterior brasileiro com a adoção, a partir do ano 2000, da iniciativa Governo Digital, por meio da qual o governo federal tem buscado evoluir seus processos e a prestação de serviços públicos com o auxílio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) com o objetivo de implementar adaptações, inovações e desafios para a realização da melhoria da qualidade do serviço público.

Neste contexto de transformação digital, optou-se por adotar a Filosofia Ágil como ferramenta, inclusive no que diz respeito à concepção e implementação do PUComex, em meados da década passada.

Avaliando o início dos trabalhos para o desenvolvimento desse relevante projeto, é possível afirmar que o espaço aberto à participação dos clientes finais foi amplo e muito bem utilizado.

O Instituto Aliança Procomex foi a principal entidade coordenadora do setor privado nesse sentido, mapeando processos e provendo à Receita Federal e à Secretaria de Comércio Exterior (Secex) insumos valiosos sobre a visão das empresas quanto aos novos procedimentos que deveriam ser especificados.

Durante a pandemia, percebeu-se uma diminuição considerável da interação dos usuários no desenvolvimento do Pucomex, limitando-se ao mapeamento de atributos. Apenas alguns stakeholders foram consultados, apesar de várias entidades se disponibilizarem a participar e contribuir com a construção dessa plataforma. Com efeito, houve uma limitação significativa na capacidade de “colaboração com o cliente” e, consequentemente, na capacidade de encontrar formas de simplificação que não redundassem em superficialidade.

CCT Aéreo: um exemplo a não ser seguido

Um dos exemplos práticos de como a falta de interação com o usuário final pode comprometer entregas relevantes de projetos digitais foi a implementação do Módulo de Controle de Carga e Trânsito (CCT) Aéreo, no segundo semestre de 2023.

Ao ser implementado, ao invés de melhorar o fluxo de cargas na importação logo de início, o módulo impactou enormemente as operações dos dois maiores aeroportos do Brasil, Guarulhos e Viracopos, que correspondem por mais de 80% do fluxo de cargas e ocasionou, em um primeiro momento, efeito diverso daquele pretendido: aumento de filas; diversos erros inesperados; e incremento de tempo de liberação.

A falta de comunicação ou de acesso por alguns importantes stakeholders, como os representantes legais (importadores e despachantes aduaneiros) das cargas importadas, antes do lançamento implicou em problemas e dificuldades de operação que se arrastaram por meses e, no processo, graves prejuízos foram acumulados pelos usuários do setor privado. Destaca-se que foram contínuos os alertas ignorados feitos por esses players sobre os riscos da implementação — aliás, esses dois elos sequer foram chamados a participar da construção do sistema, apesar de atuarem diretamente no fluxo de cargas.

Desde esse episódio, é possível perceber uma melhora na interação entre os gestores do Pucomex e o setor privado. Entretanto, ainda bastante longe da dinâmica observada antes da pandemia.

Próximas entregas

Como mencionado, o discurso dos anuentes e da própria equipe gestora do PUComex vem, cada vez mais, pautando-se no modelo MPV. No entanto, não nos parece que essa abordagem tenha a ver com o aprendizado sobre o passado, visto que o MPV parte da premissa em que as entregas são segmentadas para promover iterações (ciclo de evoluções) a partir do feedback do usuário final, haja vista que, até o presente momento, há dois meses das entregas previstas no cronograma oficial, houve poucas evoluções a partir do feedback dos representantes dos usuários finais (importadores, despachantes aduaneiros, transportadores, entre outros) sobre as funcionalidades disponíveis atualmente. Se forem implementadas evoluções, as mesmas não foram revalidadas com esses representantes.

O que se verifica é a utilização do discurso do “Mínimo Produto Viável” como um escudo a críticas e futuras reclamações quando, em junho de 2025, forem entregues módulos incompletos e/ou com lacunas operacionais.

Um receio iminente é que, devido à reforma tributária, várias funcionalidades que deveriam ser classificadas como MPV na visão do Setor Privado sejam assim desqualificadas pelos gestores do Pucomex por falta de tempo de desenvolvê-las, implementá-las e testá-las. Se isso ocorrer, existe um risco considerável de que importadores, despachantes aduaneiros e outros usuários não vejam evoluções entre o Siscomex e o Pucomex no que tange à fluidez do despacho.

Qual é a solução?

Sabemos que não se trata de situação fácil e, como tal, não existem respostas ou soluções milagrosas. Também sabemos que a situação atual, em que são mantidos dois sistemas operando simultaneamente é insustentável em termos operacionais e financeiros. Ainda assim, aceitar que as entregas sejam feitas às pressas e novos módulos sejam impostos aos usuários sem reais condições de uso não trará vantagem a nenhuma das partes.

A nosso ver existem diversas maneiras de aumentar a interação do setor privado: pilotos para funcionalidades específicas; disponibilização no ambiente de treinamento das funcionalidades antes que as mesmas sejam implementadas; engajamento de representantes dos múltiplos stakeholders para participação focada no ambiente de homologação; compartilhamento público do roadmap de funcionalidades (não confundir com o cronograma); estruturação de “radar de oportunidades de melhorias do Pucomex”, em que estejam disponíveis as funcionalidades sugeridas, analisadas e aceitas (ou não); entre outros.

Destaca-se que mecanismos formais como o Comitê Nacional de Facilitação de Comércio (Confac) e os Comitês Locais de Facilitação de Comércio (Colfacs) também podem servir de fontes de insumos de feedback, já que, se não fosse a greve, estes deveriam funcionar de maneira ininterrupta e com reuniões periódicas junto ao setor privado e seus representantes.

Em que pese o adiantado da hora e a aproximação rápida dos prazos, o que se espera não são entregas completas e perfeitas, mas que o governo federal honre a Filosofia Ágil, e consequentemente o MPV, não só como forma de garantir o sucesso Pucomex, mas, principalmente, para que ele reflita a esperada melhoria da qualidade do serviço público que promete.

 


[1] Algumas das mais famosas metodologias são Scrum Framework e eXtreme Programming. Apesar do Kanban ter sido desenvolvido bem antes da publicação do Manifesto Ágil, também podemos inseri-lo nesse hall de metodologias ágeis.

[2] Os princípios citados, em sua redação original, são: (1) “Nossa maior prioridade é satisfazer o cliente através da entrega contínua e adiantada de software com valor agregado”; (2) “Mudanças nos requisitos são bem-vindas, mesmo tardiamente no desenvolvimento. Processos ágeis tiram vantagem das mudanças visando vantagem competitiva para o cliente”; e (3) “Simplicidade–a arte de maximizar a quantidade de trabalho não realizado–é essencial”.

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

  • é analista sênior de facilitação do comércio do Sindasp (Sindicato dos Despachantes Aduaneiros de São Paulo). Possui graduação em Gestão do Comércio Internacional pela Unicamp, mestrado em Engenharia de Produção (Unicamp) e MBA em Ciência de Dados pela USP.

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