Precisamos falar sobre justiça de transição nos 40 anos da democracia brasileira
13 de abril de 2025, 8h00
Em meio à euforia pela vitória do filme Ainda Estou Aqui na categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2025, o Brasil celebrou, recentemente, os 40 anos de sua redemocratização – marco histórico que deveria ser lembrado e revisitado pela sociedade brasileira por meio de uma reflexão crítica sobre os caminhos trilhados pelo país desde o fim da ditadura militar até os dias de hoje. A premiação do filme, que denuncia as violações cometidas pelo regime militar, reflete a importância da arte na preservação da memória histórica de um povo e na busca por justiça.
Contudo, em vez dessa reflexão coletiva que a data pedia, uma parcela (menor, é verdade) da população brasileira resolveu sair às ruas reivindicando anistia para aqueles que participaram dos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023. O evento, ocorrido em 16 de março (domingo) na praia de Copacabana, foi marcado, entre outras coisas, por uma fala do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, que proferiu: “eleições sem Bolsonaro é negar a democracia no Brasil”.
Como é possível que, dentro de um mesmo país, convivam noções (não necessariamente conceitos) tão antagônicas de democracia? Como é possível que, em nome da democracia, uns celebrem o fim da ditadura militar e outros clamem pelo seu retorno? Como é possível que parcela relevante da sociedade brasileira comemore a vitória de um filme contra a ditadura militar no Oscar e outra parcela saia de casa vestida de verde e amarelo para idolatrar um político apoiador da ditadura militar de 1964 e que se tornou inelegível por afrontar as leis do país?
Fornecer respostas a essas perguntas não é tarefa simples. E, certamente, não é esse o objetivo deste pequeno texto. Porém, como tampouco pretendemos deixar os leitores em estado de aporia [1], optamos por seguir um entre os vários caminhos possíveis e falar sobre um tema de extrema importância dentro de uma democracia: a necessária justiça de transição.
Permissividade
Resumidamente, entende-se por justiça de transição o resgate da memória e a consequente reparação às vítimas ou às suas famílias pelas violações cometidas em períodos de exceção. Exemplo disso foi a retificação de certidões de óbito de cidadãos que foram torturados e mortos pela ditadura militar, para que constasse que a causa da morte foi a atuação violenta do Estado brasileiro[2]. De igual modo, no último dia 18 de março, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania declarou Vladimir Herzog anistiado político post mortem e concedeu uma reparação econômica mensal vitalícia para a viúva [3]. Finalmente, outro exemplo de justiça de transição é a efetiva punição, mesmo que tardia, daqueles agentes que cometeram atos contrários aos direitos humanos ou contra o Estado Democrático de Direito.

Por mais que existam exemplos concretos de uma correta aplicação da justiça de transição no Brasil, historicamente o país não lidou bem com a passagem do regime ditatorial para o regime democrático. Diferentemente de outros países que também passaram por ditaduras, como Argentina e Chile, o Brasil optou no final da década de 1970 por um modelo que priorizou a anistia sem demandar responsabilizações. Essa escolha moldou as décadas seguintes, deixando muitas feridas abertas e permitindo que ideias autoritárias continuassem a circular livremente na sociedade.
A Lei da Anistia, aprovada ainda em 1979, beneficiou tanto os opositores ao regime quanto os agentes do Estado que cometeram violações de direitos humanos. Essa anistia foi estrategicamente articulada pelos próprios militares para garantir a sua impunidade e a falta de responsabilização criou um ambiente de permissividade, em que a violência do Estado nunca foi plenamente enfrentada. Somente em 2011 foi instaurada a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigou crimes cometidos durante a ditadura militar. No entanto, a comissão não resultou nas punições esperadas, pois a Lei da Anistia seguiu sendo interpretada como um obstáculo para qualquer responsabilização judicial.
Dor imprescritível
Nesse sentido, é importante dar um passo atrás (2010) e mencionar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 153/DF, na qual o relator, ministro Eros Grau, indicou a constitucionalidade da Lei da Anistia mais por fundamentos formais do que materiais. Veja-se o pequeno excerto:
“5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, ‘se procurou’ [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento – o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.”
Em síntese, num primeiro momento, o Supremo decidiu não interferir no arranjo político que culminou numa lei formal (de efeitos concretos) editada para pôr fim à ditadura militar. Naquele momento histórico (2010) não parecia fazer sentido, na visão da corte, remexer em algo que já havia sido resolvido pelo Poder Legislativo e que, de certa forma, havia viabilizado a transição de um regime ditatorial para um regime democrático.
Contudo, recentemente, o mesmo Supremo Tribunal Federal, em composição bastante renovada, reconheceu a repercussão geral no ARE nº 1.501.674/PA, de relatoria do ministro Flávio Dino, com a seguinte ementa:
“CRIME DE OCULTAÇÃO DE CADÁVER. LEI DA ANISTIA. DIREITO FUNDAMENTAL AO LUTO COM DIGNIDADE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.
1 – A família da pessoa falecida tem o direito fundamental ao luto, com dignidade. A dor pela perda de um ente querido é imprescritível.
2 – Repercussão Geral reconhecida para a seguinte questão: ‘Possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº. 6.683/79.’”
A decisão da Suprema Corte, que pode reacender a discussão sobre a justiça de transição no Brasil, vem num momento de instabilidade democrática que demanda uma nova visão sobre o tema. Como disse o próprio ministro Eros Grau, “O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente”, a demonstrar que, eventualmente, o ministro relator da ADPF 153/DF, dado o novo contexto fático vivenciado no país, poderia mudar e de opinião e, caso ainda estivesse na corte, acompanhar o ministro Flávio Dino.
Pedagogia
Tudo se torna mais relevante quando se considera que, agora, quatro décadas após a redemocratização, o Brasil se vê diante de um novo pleito por anistia: desta vez, para os envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Esse episódio demonstrou que as ameaças à democracia não ficaram no passado. Movimentos de extrema direita organizaram ataques contra as instituições da República, na tentativa de deslegitimar o resultado de uma eleição democrática. No momento, setores políticos e sociais pressionam pelo perdão judicial aos envolvidos, evocando um discurso de pacificação nacional.
Diante desse contexto, o Brasil tem a oportunidade de trilhar um caminho diferente daquele percorrido nas décadas de 1970/1980. Se, no passado, a transição para a democracia foi marcada pela impunidade, hoje existe a possibilidade de implementar uma resposta estatal justa, real e efetiva, que não apenas puna os responsáveis pelos ataques à democracia, mas que também eduque a sociedade sobre os riscos do autoritarismo. Não se trata apenas de punir os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, mas de estabelecer um marco pedagógico que deixe claro que a democracia não pode ser atacada impunemente.
Vale a pena insistir que a justiça de transição pode se manifestar de diversas formas: responsabilização judicial, preservação da memória histórica, reformas institucionais e educação para a democracia. Pegando esse gancho, é importante ponderar que, no Brasil, a aposta na educação é essencial, com o fortalecimento do ensino de história política e de direitos humanos. O verdadeiro desafio é construir um país onde a democracia seja um valor inegociável, protegido por instituições fortes e por uma sociedade plenamente consciente de sua importância. Em síntese, precisamos falar sobre justiça de transição para que os ataques à democracia não se repitam e para que possamos, enfim, superar os fantasmas da impunidade que ainda assombram o Brasil.
[1] Conforme explica Marilena Chauí, o termo grego “Aporía significa: incapacidade de encontrar caminho ou trajeto; falta de uma via ou um meio de passagem; impossibilidade de chegar a um lugar; por extensão: impossibilidade de deduzir, concluir, inferir. A aporía é uma dificuldade insolúvel” (CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 495).
[2] Sob a presidência do ministro Luís Roberto Barroso, o CNJ editou a Resolução nº 601/2024, que “Dispõe sobre o dever de reconhecer e retificar os assentos de óbito de todos os mortos e desaparecidos vítimas da ditadura militar”.
[3] Sobre o tema, conferir a seguinte reportagem publicada no portal G1: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/03/18/governo-brasileiro-reconhece-vladimir-herzog-como-anistiado-politico-50-anos-apos-morte-pela-ditadura-militar.ghtml. Acesso em 02/04/2025.
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