O Inspetor Geral, de Nikolai Gogol
13 de abril de 2025, 7h24
Numa pequena localidade russa, talvez na Ucrânia, em algum momento da primeira metade do século 19, o chefe dos correios informa ao prefeito e ao juiz que há um importante funcionário do czar na cidade. O alto funcionário está em um hotel e se recusava a pagar as despesas de hospedagem.

Esse é o ponto de partida da peça “O Inspetor Geral”, de Nikolai Gogol (1801-1852). A peça data de 1836. O leitor (ou mais propriamente o espectador) percebe ser uma comédia de erros, não fosse o engate com vários problemas de políticas públicas, que de algum modo são muito atuais. Uma peça atemporal.
O prefeito assustou-se. Temia que suas imprecisões administrativas (para valer-me de uma metáfora) fossem descobertas pelo alto funcionário (o inspetor geral). Havia muitos problemas. Deveria escondê-los, maquiando a cidade a qualquer custo, e com rapidez.
O prefeito certamente seria penalizado pelo czar se o inspetor geral descobrisse a má administração, o desvio de recursos e o desmando total. As informações que seguiriam para São Petersburgo (que foi a capital da Rússia de 1712 a 1918) deveriam ser interceptadas. O inspetor geral deveria ser contactado e dissuadido de tomar qualquer atitude mais séria contra o prefeito.
O juiz, de igual modo, reconhecia o modo desleixado como ditava o direito na cidade. Seria penalizado. O inspetor de ensino temia que seus péssimos métodos organizacionais e educacionais fossem descobertos. Seria penalizado pelas autoridades da capital. O encarregado da assistência social também tinha muito a esconder, e mais ainda a temer. Estava atemorizado com a presença do inspetor geral.
Parece que boa parte dos habitantes dessa pequena e imaginária cidade russa tinha algum motivo para ter medo do inspetor geral. Eram pequenos motivos que se avolumavam. Um médico, dois agricultores, alguns funcionários aposentados. O inspetor geral era uma ameaça para a sobrevivência da cidade. O prefeito se dispõe a resolver o problema. Abordaria o alto funcionário da corte.
Não sabiam, mas estavam totalmente enganados. Não se tratava de um alto funcionário da corte; o visitante não era um inspetor geral. Era jovem, viajava com os recursos do pai. Caia na jogatina. Perdeu todo o dinheiro que tinha. Estava permanentemente endividado. Não tinha mais recursos para se alimentar e, por isso, a insistência e a cobrança dos donos da hospedaria. O putativo inspetor geral discutia com seu cocheiro e companheiro de viagem. Não sabiam o que fazer.
O prefeito foi visitar o imaginário inspetor geral na hospedaria. O inspetor pensou que seria preso por conta das dívidas e, no início, mostrou-se na defensiva, inclusive se desculpando. Aos poucos vão se entendendo. O prefeito leva o inspetor para conhecer alguns lugares da cidade, que meticulosamente preparou para receber tão importante visita.
O inspetor é recepcionado com muita festa e pompa na casa do prefeito. Todos tentam agradar ao inspetor, que astutamente toma dinheiro emprestado de todos. Embalado pela bebida e pela cordialidade o falso inspetor apaixona-se e declara-se para a filha do prefeito. Conta vantagens. Diz que é íntimo da corte. Mente. As pessoas o tem como um nobre fino, delicado, educadíssimo. Pensam que é muito influente.
Ao mesmo tempo, pressionado pelo cocheiro, o inspetor pensa um modo de deixar a cidade. O prefeito sonha alto. Com o casamento da filha, imagina-se na capital, talvez como general, ou em qualquer alto posto da alta administração. O casamento da filha lhe abriria todas as portas, a glória, e as altas posições. Toda a cidade alegra-se e fica orgulhosa com o casamento que se avizinhava.
Antes de partir o inspetor redigiu uma carta para um amigo literato que tinha em São Petesburgo. Ridiculariza os tipos da cidade, o prefeito e todos os demais. A carta foi interceptada pelo chefe dos correios, a quem o prefeito ordenara interceptar todas as cartas. Queria saber se o inspetor geral o denunciaria e quais seriam os termos da denúncia.
O chefe dos correios leu a carta para todos os interessados. Houve um estupor generalizado. Uma indignação absoluta. Foram todos enganados. O mais desiludido era o prefeito, que não casou a filha e que não chegaria a general. A impostura do imaginário ilustre visitante tomou todos de surpresa.
Espírito da época
Importante que o leitor desta coluna leia a peça e descubra e entenda o que houve com o inspetor ao final da comédia. Registro, no entanto, que me parece que cada época tem uma interpretação muito peculiar dessa hilariante peça. Creio que não se pode atribuir toda a vilania ao inspetor geral. Há corrupção entre todos dessa bizarra cidade, habitada por corruptos ingênuos, se é possível essa combinação.
O inspetor geral é uma obra atemporal, que castiga deliciosamente os costumes. Gogol construiu uma verdadeira farsa. Ao engano central, que é o mote da peça, o autor agregou a cumplicidade geral da cidade com todas as formas de mentira.
Pode-se inferir que o falso inspetor efetivamente ameaçou a falsa aparência e o efetivo oportunismo. A peça não retrata individualmente um impostor. Capta uma vontade coletiva contida na crença em uma autoridade inexistente (ou potencialmente existente) a quem cabe a ordem em um ambiente marcado pela desordem. O Inspetor Geral talvez não seja apenas uma crítica cruel ao poder. Bem mais do que isso.
Tenho a impressão de que Gogol fulmina aqueles que servem ao poder, ou que simulam seriam servidos. Afinal, o maior talento do falso inspetor foi apenas deixar que cada um se traísse por conta própria — e nisso, ele foi um verdadeiro mestre.
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