Opinião

Escuta especializada pode produzir prova para investigação e responsabilização penais?

Autores

  • é presidente da Abracrim-MA discente do LLM em Direito Penal econômico pelo IDP especialista em ciências penais e advogado criminalista.

    Ver todos os posts
  • é advogado criminalista doutorando em Ciências Jurídico-Criminais na FDUC mestre em Direito Estado e Sociedade pela UFSC especialista em Ciências Penais pela Unisul aperfeiçoamento em Direito Penal Económico e Europeu pelo IDPEE/FDUC.

    Ver todos os posts

13 de abril de 2025, 6h01

Em meio aos sinuosos contornos do complexo rito de apuração de crimes sexuais contra menores e conforme a dinâmica da grande maioria desses casos — caracterizada por a vítima relatar, primeiramente, a uma pessoa próxima, que depois repassa os relatos ao Conselho Tutelar, que, por sua vez, os encaminham ao profissional psicólogo(a) para realização da “escuta especializada” (EE) e, conforme o caso, do “depoimento especial” (DE) —, busca-se responder se a EE pode constituir indícios de autoria e materialidade para eventual propositura de denúncia pelo Ministério Público (MP) ou provas para condenação por um juiz ou colegiado.

A EE é o “procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente” (artigo 7º, caput, da Lei nº 13.431/2017) voltado à “superação das consequências da violação sofrida” (artigo 19, caput, do Decreto nº 9.603/2018). Não obstante tenha “relevância jurídica” [1], ela é um instituto clínico-psicológico-terapêutico sem quaisquer finalidades probatórias [2]. O DE [3] é o “procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência” (artigo 8º, caput, da Lei n. 13.431/2017) com “finalidade de produção de provas” (artigo 22, caput, do Decreto nº 9.603/2018). Ele é tanto de meio de obtenção de provas como meio de provas. Há outras diferenças entre a EE e o DE, em especial, quanto ao executor do procedimento [4] (competência), aos métodos de escuta e rito (formas) [5] e ao fim (finalidade) [6].

Frente ao exposto e nomeadamente ao §4º do artigo 19 do Decreto nº 9.603/2018 – “a escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de responsabilização, e fica limitada estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade de proteção social e de provimento de cuidados” (destaque nosso) — tem-se, no mínimo, um direcionamento à resposta ao problema. Diante dos riscos de sugestionabilidade, falsas memórias e revitimização [7] em toda a cadeia de repasse de informações — neste “telefone sem fio” —, são várias as razões de existir da proibição referida. Analisemos.

A primeira delas está cravada na legalidade estrita (artigos 5°, II, da CF/1988; 1° do CP) sob o argumento de que, caso a EE pudesse ser admitida como meio de obtenção de prova ou meio de prova, o legislador teria regulamentado de outra forma [8], uma vez que a lei não contém palavras inúteis. Corrobora essa leitura as regras de aplicação da lei no tempo, pois o Decreto nº 9.603/2018 é posterior à Lei nº 13.431/2017 — a qual criou os procedimentos de escuta. Portanto, além de regulamentá-la, em caso de conflito, aplica-se o critério lex posterior derogat legi priori (artigo 2°, §2°, do Decreto-Lei nº 4657/1942). Por fim, os artigos 8º, caput, dessa lei e 22, caput, daquele decreto são violados, ao se aplicar a EE para colheita de prova: tanto por ir contra o sentido daquela “regra” [9] jurídica, quanto por ignorar os últimos, quando a situação exigia o inverso, ou seja, as suas respectivas aplicações.

Numa perspectiva jurídico-administrativa, ambos, EE e DE, devem atender aos elementos do ato administrativo, como a forma, a competência e a finalidade, pois ao se empregar a EE para colher provas, estar-se-á, no mínimo, diante de vício àqueles elementos, nos moldes do artigo 2°, caput, b), a) e e), com as correspondentes b), a) e e) de seu parágrafo único, da Lei n. 4.717/1965. E viciado o ato administrativo, eis a consequência jurídica: a nulidade.

Para uma conclusão parcial, considerando-se que as infrações ao §4º do artigo 19 do Decreto nº 9.603/2018, aos artigos 8º, caput, da Lei nº 13.431/2017 e 22, caput, do Decreto nº 9.603/2018, bem como ao artigo 2°, caput, b), a) e e), com as correspondentes b), a) e e) de seu parágrafo único, da Lei nº 4.717/1965 constituem-se “em violação a normas [….] legais”, nos moldes do artigo 157 do CPP, eventuais provas assim colhidas são consideradas como “provas ilícitas”. Ademais, como são “provas obtidas por meios ilícitos”, outro caminho não resta a não ser declará-las “inadmissíveis, no processo” penal (CF, artigo 5º, LVI), e como consequência desta ilicitude probatória, tem-se por sua “inadmissibilidade, a impedir o seu ingresso (ou exclusão) no processo […][10].

A segunda razão é de carácter constitucional e decorre da constatação de que o uso da EE como meio de obtenção de prova ou meio de prova viola (também) “normas constitucionais”, como os princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da moralidade pública (artigos 5°, LIV e LV; e 37, caput, da CF/1988). Este último “condiciona a validade e legitimidade de todos os atos emanados por qualquer das suas funções (Executivo, Legislativo ou Judiciário)” [11] e autoriza “o controle jurisdicional de todos os atos do poder público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais” [12]. Dessa forma, tal infração enseja também a ilicitude probatória em processo penal, pois “enxergar uma violação ao princípio da moralidade administrativa decorrente da inobservância das formalidades processuais apenas reforça o caráter instrumental e legitimante do processo que visa, ao fim e ao cabo, a sempre odiosa privação de liberdade do indivíduo” [13].

Spacca

Essa deturpação da EE com suas correspondentes infrações legais dá-se em razão das supostas dificuldades de execução do único procedimento de colheita de prova admitido nesses casos, as quais são exatamente as exigências legais e constitucionais do DE impostas pelo ordenamento jurídico. Não há “boa intenção” aqui que justifique o contorno à regra.

Conforme o artigo 11 da Lei nº 13.431/2017, sendo funções principais do DE a garantia do exercício do contraditório e da ampla defesa [14], quando se opta por não realizá-lo e o conteúdo da EE é citado na denúncia, a acusação submete o suposto fato punível descrito ao exame cruzado na instrução processual como se prova fosse, ainda que o material não esteja juntado de fato aos autos [15]. Com isso se está diante de uma probatio diabolica para qualquer defesa [16], cuja impossibilidade de contraditório torna-a insustentável em um sistema minimamente acusatório [17]. E não só. Se o MP realmente pretende albergar o devido processo legal, como sugere a descrição de sua função também como custos legis, deve solicitar, antes do oferecimento da denúncia, a realização do DE para, só então, realizado o mais rápido possível [18] e convalidando-se aquilo que, porventura, esteja descrito na EE, ajuizar a inicial.

Prova testemunhal por aproximação

Como o DE deve ser realizado na fase de investigação por meio de medida cautelar de antecipação de prova [19], não sendo requisitada sua realização, por que se admitir a EE para tal fim ou mencioná-la na denúncia sem que o DE tenha sido realizado? Porque não só há limites legais e constitucionais mais rígidos para o uso do DE, mas também porque, em grande parte dos casos, tenta-se salvar uma investigação ou uma ação penal esvaziadas ou malfeitas [20]. Torna-se ainda mais incompreensível essa lamentável prática quando se sabe que não é a ausência da EE que prejudica eventuais propositura de denúncia e condenação em processo penal, mas sim a violação de normas legais e constitucionais, que se dá pela não aplicação do DE.

Como a regra geral do cenário de apuração destes casos de suspeita de crimes sexuais contra menores é a da inexistência de provas outras que não a palavra da vítima, especialmente valorada, limitando-se o campo probatório à prova oral, senão que, mais restritamente, à prova testemunhal; e em se considerando que a busca da verdade real deve ser a orientação de todo e qualquer processo penal, eis a conformação jurídico processual penal do DE: meio de prova de escuta de menores vítimas ou testemunhas de violências, portanto, prova testemunhal por aproximação [21].

Conclusão

Logo, a resposta ao título desta reflexão só pode ser negativa. Considerada a profunda diferença de sentido entre o acolhimento, o cuidado e a proteção do menor na EE (preferencialmente realizado por psicólogo ou assistente social) e as colheitas de substratos de autoria e materialidade para investigação policial e de provas, no DE (obrigatoriamente realizado na presença de autoridade policial ou judiciária), a EE não deve produzir provas para as “investigação e responsabilização” penais.

Conforme explicado, o único caminho transitável (dentro dos limites legais e constitucionais) é cumprir o §4° do artigo 19 do Decreto nº 9.603/2018, vinculando-se os órgãos de persecução penal e os demais à legalidade, como sói ocorrer no Estado de Direito.

 


[1] “(…) embora a escuta especializa não tenha como finalidade precípua a produção de prova, é inegável que o seu conteúdo possui relevância jurídica […]”, Brasil/CNMP. Guia prático…, p. 28, destaques nossos.

[2] Neste sentido, cfr.: Brasil/CNMP. Guia prático…, p. 16 e 28; Botega/Togni, Atuação 32 (2020), p. 105.

[3] Cf.: Botega/Togni, Atuação 32 (2020), p. 102-3, onde consta a evolução histórica e legislativa do “depoimento sem dano” até se chegar ao atual instituto da “escuta especializada”.

[4] Segundo o art. 19, caput, do Decreto n. 9.603/2018, qualquer profissional dos “órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos” pode realizar a EE. Conforme os arts. 8.º, caput, da Lei n. 13.431/2017 e 22, caput, do Decreto n. 9.603/2018, qualquer “autoridade policial ou judiciária” pode realizar o DE. Neste sentido, cfr.: Guimarães/Silva, Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação 9 (2023), p. 4.125, exemplificando quanto à EE.

[5] Quanto ao método, a EE engloba “empatia e apoio, criando um ambiente seguro para expressar emoções e experiências”, enquanto o DE é um “procedimento adaptado a idade e necessidade da vítima para minimizar o trauma do testemunho”, Guimarães/Silva, Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação 9 (2023), p. 4.126 e 4.127. Sobre o rito, há determinação legal somente para a realização do DE (arts. 11 e ss. c/c 12 e ss. da Lei n. 13.431/2017); enquanto não há um próprio para a EE, mas apenas diretrizes de protocolos (p.ex., o NICHD – National Institute of Child Health and Human Development) sugeridos pela doutrina, em especial, pela doutrina da psicologia. Neste sentido, cfr.: Digiácomo/Digiácomo. Comentários à Lei n. 13.431/2017, 2018, p. 38.

[6] Cfr.: Guimarães/Silva, Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação 9 (2023), p. 4.125, 4.135 e 4.126; Botega/Togni, Atuação 32 (2020), p. 106; Lima, Amanda de Medeiros. Depoimento especial e escuta especializada: análise da implementação no município de Natal-RN. Dissertação de Mestrado pelo Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal: UFRN, 2020, p. 61.

[7] Antecipa-se já que, apesar de existirem outros fatores que levem a esses riscos, eles podem ser minimizados por meio da aplicação do DE. Neste sentido, cfr.: Botega/Togni, Atuação 32 (2020), p. 110, 103 e 126; Amaral/Ávila, Revista Jurídica Cesumar 22 (2022), p. 15 e 21.

[8] Embora não se desconheça a parcela da doutrina que admite a EE com fins probatórios, reputa-se-lhe equivocada não só, mas sobretudo por sua leitura contra legem, destacando-se, em termos exemplificativos, cfr.: Digiácomo/Digiácomo. Comentários à Lei n. 13.431/2017, 2018, p. 35, 36 e 37; Avena, Norberto. Processo Penal. 15.ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 1091 e 1091-2.

[9] “O parágrafo 4º do artigo 19 traz importante regra a ser observada por todos os profissionais que integram o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (…)”, Brasil/CNMP. Guia prático…, p. 28, destaque nosso.

[10] STJ, Rcl n. 36.734/SP, Terceira Seção, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 10/02/2021, DJe 22/2/2021.

[11] La Bradbury, Leonardo Cacau Santos. Princípio da moralidade administrativa ou tríplice dimensão da legalidade: conceito, aplicação e abrangência. Revista de Doutrina da 4.ª Região, Porto Alegre, n. 24, jun. 2008, p. 6, com destaque para a doutrina e as decisões do STF abaixo citadas. Disponível em: <https://bdjur.stj.jus.br/items/b3a364ec-94e2-48f5-b91e-b8115ea85f37/full>.

[12] STF, ADI 2.661-5/MA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 05.06.2002, votação unânime. Cfr. também: STF, RTJ 182/525-526, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello; La Bradbury, Revista de Doutrina da 4.ª Região, p. 6; Oliveira, Boletim do IBCCrim 281 (2006).

[13] Oliveira, Boletim do IBCCrim 281 (2006).

[14] Neste sentido, cfr.: Brasil/CNMP. Guia prático…, p. 24; Leal/Souza/Sabino. Comentários à Lei de Escuta Protegida, 2018, p. 121; Botega/Togni, Atuação 32 (2020), p. 121, 106 e 111.

[15] Portanto, admitir como satisfatório a possibilidade de uso da EE “para fundamentação do juiz” na fase pré-judicial, desde que, “sob o rito do contraditório, durante a fase processual, realizando-se a oitiva […] dos profissionais que realizaram a escuta especializada como testemunhas” (Botega/Togni, Atuação 32 (2020), p. 105), é deveras fantasioso. Se eles podem ser contraditados como testemunhas, seriam presenciais ou indiretas? Próprias ou impróprias?

[16] Considerando-se a possibilidade de uma denúncia embasada exclusivamente no relato feito em EE ou nesta combinada com testemunha(s) de “ouvi dizer”, é simplesmente assustador a admissão de que, “como na escuta especializada a gravação não é obrigatória, fica a critério de cada profissional a decisão acerca da conveniência ou não de sua realização e, mesmo se for aquela efetuada, também não haverá aqui necessidade de que a mídia respectiva seja integralmente anexada ao “relatório” ou “laudo” que será ao final apresentado (sem prejuízo de, como dito, serem extraídos fragmentos do áudio ou vídeo para melhor ilustrar as conclusões do perito)”, Digiácomo/Digiácomo. Comentários à Lei n. 13.431/2017, 2018, p. 39-40.

[17] “Uma vez que o julgador entende que aquela prova é apta para embasar a condenação criminal, confere-lhe caráter absoluto. Diante deste panorama, não há defesa capaz de livrar o réu das amarguras do cárcere, por mais que tente provar sua inocência”, Amaral/Ávila, Revista Jurídica Cesumar, v. 22, n. 1, jan./abr. 2022, p. 23.

[18] Ver O respeito ao tempo na antecipação do depoimento na lei 13.431/17 – Migalhas. Acesso em 13 mar 2025.

[19] Cf.: art. 11, caput, in fine, da Lei n. 13.431/2017; Brasil/CNMP. Guia prático…, p. 21 e 24; Amaral/Ávila, Revista Jurídica Cesumar 22 (2022), p. 22; Botega/Togni, Atuação 32 (2020), p. 121 e 111.

[20] Compreende-se por esvaziada, quando, apesar do esforço dos órgãos de persecução penal, fatores externos impedem a coleta de provas; e malfeita, quando essa ausência decorre de negligência, desinteresse ou despreparo desses órgãos.

[21] Leal/Souza/Sabino. Comentários à Lei de Escuta Protegida, p. 109; “trata-se de restrição ao disposto no artigo 202 do CPP, (…) e ampliação das testemunhas dispensadas previstas no artigo 206 […]”, Dezem, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 6 ed. São Paulo: RT, 2020, p. 746; criança ou adolescente “possui o direito (e não o dever) de participação nos processos em que são parte ou testemunhas”. Isso “resulta na efetivação de seus direitos fundamentais e da personalidade, que são de responsabilidade da família, da sociedade e do Estado”

Autores

  • é advogado criminalista, presidente da Abracrim-MA e LLM em Direito Penal Econômico pelo IDP.

  • é advogado criminalista, doutorando em Ciências Jurídico-Criminais na FDUC, mestre em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC, especialista em Ciências Penais pela Unisul, aperfeiçoamento em Direito Penal Económico e Europeu pelo IDPEE/FDUC.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!