Era uma vez um José: a história hollywoodiana de um juiz paulista
13 de abril de 2025, 15h22

A história hollywoodiana do magistrado paulista (Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield) que exerceu, ao que tudo indica, a jurisdição por décadas sob identidade falsa suscita importantes reflexões no âmbito do processo civil. Especialmente, mas não exclusivamente, o enredo exige ressaltar, desde já, que “pela escada Ponteana, os vícios se apresentam em três dimensões: existência, validade e eficácia” [1].
Aí, de saída, uma dúvida: como ficam a existência, a validade e a eficácia dos atos jurisdicionais que o pseudolorde praticou?
A trama, revelada apenas em 2024 após o confronto de dados biométricos, suscita, insista-se, dentre muitos questionamentos de profunda complexidade, naturais dúvidas quanto aos atos jurisdicionais praticados durante quase quatro décadas de atuação no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Apressa-se para lembrar os pensamentos de Pontes de Miranda, pois segundo sua obra o “ato processual, ele mesmo, tem forma e substância e outro princípio que se encontra é o princípio de que só se sana a nulidade concernente à forma do ato processual” [2].
Ora, “sob a perspectiva do processo, o vício de existência do processo é aquele que atinge os elementos necessários para que a relação jurídica processual possa ser instaurada” [3].
Esses, aliás, “são defeitos graves, de caráter transrescisório, eis que não se sujeitam à preclusão, mesmo quando ultrapassado o prazo para o manejo da ação rescisória” [4].
O egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo citando Nelson Ney Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery explica que “são pressupostos processuais de existência da relação processual: a) jurisdição; b) citação; c) capacidade postulatória (CPC 37 par. ún.), apenas quanto ao autor; d) petição inicial” [5].
Tantas são as nuances envolvendo o contexto fático-jurídico que sua integral descrição escassearia as tintas do jornal, mas é suficiente destacar que é um caso sem par e, de fato, pode ser caracterizado como sui generis. Sua singularidade transcende as hipóteses normativas convencionais.
Dada a ilogicidade da situação muitas dúvidas pairam, pois existiriam instrumentos processuais capazes de, em tese, impugnar decisões jurisdicionais proferidas em tais circunstâncias? Aliás, seria possível impugnar?

Ainda há muito para se esclarecer, mas do que já se noticiou, percebe-se, já de largada, a superação de todos os exemplos da literatura a exigir, insista-se, o seu exame sob os planos da existência, validade e eficácia, bem como o contraponto que os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima exercem no sistema.
O caso
O juiz Edward é, ao que parece, José Eduardo Franco dos Reis. A história principia quando José abandona a identidade simples para, em um passe de mágicas, incorporar um personagem fictício por ele criado e oriundo da aristocracia britânica.
Relatos dão conta de que ele, inclusive, mantinha costumes ingleses a citar, por exemplo, o costumeiro chá das cinco, mas (e nesse caso há muitos mas!) de nobre realmente só sobrenome dos Reis.
José, se passando por Edward, após ser aprovado e cursar a graduação numa das universidades mais concorridas do país (USP – Largo do São Francisco), prestou concurso para juiz de Direito do estado de São Paulo.
Logo, quem foi investido para exercer o poder político foi o personagem Edward e, assim, a ficção assumiu o protagonismo da vida, consequentemente, ao longo dos anos as sentenças eram assinadas por Edward, não por José.
Da investidura para cá…
Além de sanidade mental plena, o exercício da jurisdição pressupõe investidura regular e legítima no cargo público. Talvez seja possível dizer, sob a égide da teoria dos atos administrativos, que a mera irregularidade formal na identificação nominal do magistrado (se é José ou se é Edward) configura mero detalhe incapaz de comprometer a essência dos atos praticados por ele.
Isso porque o elemento nuclear advém da certeza de que o indivíduo foi, nos termos da Constituição da República, aprovado em concurso público de provas e títulos. Desta forma, a formalidade na identificação nominal do magistrado se mostra incapaz de contaminar os atos jurisdicionais por ele praticados.
Até porque, em suma, pela letra da lei o núcleo do tipo penal da falsidade ideológica exige a alteração da “verdade sobre fato juridicamente relevante”, ex vi do artigo 288 do Código Penal. Portanto, questiona-se: qual relevância jurídica substancial o nome teria no caso em apreço?
A resposta se mostra intuitiva: nenhum! Exceto, é claro, se houvesse algum impeditivo jurídico capaz de ter obstado José de prestar vestibular e o concurso da magistratura.
Ocorre, contudo, que se as acusações forem verdadeiras, o caso concreto permitiria o exame sob perspectiva diversa, afinal se a fábula tivesse sido descoberta em qualquer fase do concurso público, concluir-se-ia, inevitavelmente, o desligamento imediato de José Eduardo do certame. Se estivesse em estágio probatório, considerando a gravidade da situação, é muito provável que ele não alcançaria a vitaliciedade.
Óbvio, portanto, que o exercício da jurisdição por José Eduardo (sob a identidade de Edward Wickfield) extrapola (e muito!) a mera irregularidade formal.
Aliás, ao analisar o caso sob a luz da obra de Pontes de Miranda perceber-se-á que a realidade superou a teoria, pois um dos exemplos fictícios de Pontes para sentenças inexistentes é, exatamente, a hipótese de a sentença ser prolatada por quem não é juiz.
Neste caso, no entanto, o que temos é, em tese, um Juiz interpretando um papel digno das obras ficcionais de Sir Arthur Conan Doyle (afinal, falamos de um personagem inglês!).
“Sentença é ato estatal” [6] e para Pontes de Miranda “distinguem-se: a) as sentenças inexistentes; b) as nulas; c) as reformáveis e d) as rescindíveis” [7] além do mais “dizer que o legislador pode destruir a separação entre inexistência e nulidade é o mesmo que supô-lo apto a, por exemplo, (…) abrir audiência na lua” [8].
Ora, se para o Superior Tribunal de Justiça “a ausência de capacidade de ser parte inviabiliza a formação da lide, razão pela qual tal irregularidade macula todo o processo” [9] o que dirá então a dúvida sobre a regularidade da investidura.
Agora, se as sentenças de um impostor são juridicamente inexistentes (ou mesmo nulas para argumentar), como proceder quanto aos efeitos concretos já produzidos no mundo fenomênico? Considerando que a aposentadoria dele deu-se há mais de dois anos (2018), verifica-se que nenhuma de suas decisões estaria, a priori, sujeita à ação rescisória —se é que sentenças desta natureza seriam passíveis de rescisão — cujo prazo decadencial de dois anos já se encontra inequivocamente esgotado.
A problemática, como se vê, assenta-se no ato da investidura que, considerada sua notável relevância no ordenamento, pressupõe solene formalidade a evidenciar, como decorrência lógica, intrínseca conexão entre o plano administrativo e os fundamentos da teoria da inexistência jurídica.
Pois bem, se tratada a situação como esvaimento do espírito da investidura, em tese, afetado estaria um dos pressupostos de existência processual a justificar o emprego de querela nullitatis.
Isso porque o Superior Tribunal de Justiça há muito já disse que “o objeto da ação declaratória de nulidade, também denominada querela nullitatis, é declarar a inexistência de uma sentença proferida em processo no qual não estejam presentes os pressupostos processuais de existência” [10].
Quanto à trama, o quebra-cabeça ainda se apresenta incompleto. Remanescem, certamente, diversas peças para serem encontradas e compreendidas.
A despeito da solução completa do enigma estar distante, algo já nos parece certo: difícil acreditar que José tenha, a essa altura, criado acidentalmente as condições para a descoberta de sua trama.
Afinal, presume-se que o exercício da judicatura tenha proporcionado a José o conhecimento sobre os modernos métodos de cruzamento de dados biométricos e, por isso mesmo, soa mais razoável ter sido impossível para ele conter o impulso de revelar ao mundo sua obra até porque “não é o touro que mata o toureiro, o toureiro é que se deixa matar” [11].
[1] Brasil. TJ-SP. Apelação Cível nº 1012108-35.2018.8.26.0577. 7ª Câmara de Direito Privado. Relator Desembargador Luiz Antonio Costa. Julg. 04/10/2024. Pub. 04/10/2024
[2] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo III. Rio de Janeiro: Forense. 1974. p. 323.
[3]Brasil. TJ-SP. Apelação Cível nº 1012108-35.2018.8.26.0577. 7ª Câmara de Direito Privado. Relator Desembargador Luiz Antonio Costa. Julg. 04/10/2024. Pub. 04/10/2024.
[4]Brasil. TJ-SP. Apelação Cível nº 1012108-35.2018.8.26.0577. 7ª Câmara de Direito Privado. Relator Desembargador Luiz Antonio Costa. Julg. 04/10/2024. Pub. 04/10/2024.
[5] Apud. Brasil. TJ-SP. Apelação com Revisão nº 0053591-38.2004.8.26.0000. 8ª Câmara de Direito Público. Relator Desembargador Rubens Rihl. Julg. 27/05/2009.
[6] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo V. Rio de Janeiro: Forense. 1974. p. 89.
[7] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VI. Rio de Janeiro: Forense. 1974. p. 255.
[8] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo III. Rio de Janeiro: Forense. 1974. p. 21
[9] BRASIL. STJ. AgInt no REsp 1.751.228 / RJ. Segunda Turma. Rel Ministro Francisco Falcão. Julg. 13/06/2023. Pub. DJe 16/06/2023.
[10] BRASIL STJ. REsp 1.677.930 / DF. Terceira Turma. Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julg. 10/10/2017. Pub. DJe 24/10/2017.
[11] Vips. Disponível em: <https://x.com/vips_ofilme/status/22386415404843008> Acessado em 05.02.2025.
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