Opinião

O professor José Afonso da Silva completa 100 anos

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12 de abril de 2025, 6h05

Nascido no interior de Minas Gerais, em Buritizal, filho de pais humildes, a mãe do lar, o pai lavrador, tendo mais tarde residido em Queima Fogo, onde o pai montou uma casa comercial, numa região sob domínio político de Francisco Campos, o homem que elaborou a Carta de 1937 para a ditadura Vargas, foi agricultor, padeiro e garimpeiro.

Professor José Afonso da Silva

Veio para São Paulo aos 22 anos, onde exerceu a faina de alfaiate, concluiu o ginásio frequentando o Madureza, completou o curso Clássico para, então, ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e conquistar, adiante, por três vezes, o título de livre docente. Autor consagrado, professor titular e jurista mais citado no Supremo Tribunal Federal, o maior constitucionalista brasileiro da atualidade, o maior entre os maiores, completará, no dia 30 de abril, um século de produtiva existência.

Trata-se de uma personalidade admirável, de um self made man que cresceu continuamente, transformando-se num gigante, a partir de condições desfavoráveis, muita determinação e força de vontade. É um exemplo edificante. Como deixar de falar do pai presente que, com Helena, de saudosa memória, companheira de todas as horas, formou uma família de gente livre, criativa e preparada? Ou do profissional do direito, membro honorário vitalício da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogado do Brasil, do Procurador do Estado, do Secretário da Segurança Pública de São Paulo, do membro da Comissão Arinos ou do consultor diligente e requisitado da Constituinte de 1987/88 que legou contribuições inestimáveis para a Constituição que nos governa há quase quarenta anos? E da medalha Rui Barbosa que recebeu, como muitos poucos, da Ordem dos Advogados do Brasil, do doutor Honoris Causa de tantas Universidades que é difícil contar ou do fundador da Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas (ABCD)?

E tudo isso, desenhando uma trajetória onde só os eleitos transitam, vem acompanhado de sua adesão explícita aos valores do humanismo, do pensamento igualitário, da justiça social, do compromisso irrenunciável com a concretização dos direitos fundamentais e da democracia. Em uma palavra, o professor José Afonso, como republicano autêntico e democrata verdadeiro, acredita e pratica, no plano mais generoso e exigente, a moralidade pública tributária da ideia de dignidade da pessoa humana.

São muitas as facetas do notável constitucionalista a desafiar exploração neste momento. Cuidarei de três delas.

O jurista

Escreveu quase duas dezenas de livros, obras que marcaram de modo indelével a cultura jurídica nacional. Cumpre lembrar três deles. O Aplicabilidade das normas constitucionais marcou a minha geração e foi decisivo para a construção do que a doutrina vem chamando de dogmática constitucional da efetividade, uma dogmática hoje majoritária nas escolas de direito.

O Curso de Direito Constitucional Positivo, com mais de 40 edições, faz parte da formação de milhares de estudantes universitários de várias gerações que aprenderam, com esta obra notável, a conhecer as delícias e dificuldades deste nobre ramo do direito. Lembro, por fim, o Comentário Contextual à Constituição, publicação eloquente na demonstração do fôlego do professor ao redigir volume tão expressivo, com comentários pertinentes e corajosos a cada um dos dispositivos constitucionais.

Escreveu também livros abordando o Direito Constitucional Comparado, O clássico Processo Constitucional da Formação das leis, o Direito Urbanístico Brasileiro, o Direito Ambiental Constitucional, a Ordenação Constitucional da Cultura, O Constitucionalismo Brasileiro e a Ação Popular Constitucional. Preocupou-se, igualmente, como jurista e cidadão, com a formação dos nossos políticos da base, escrevendo o Manual do Vereador.

Em síntese, o professor oferece ao mundo jurídico uma produção vastíssima e altamente sofisticada. Não há, hoje, como estudar a Lei Fundamental do país sem consultar a indispensável contribuição do professor José Afonso.

O professor

Admirado por coerência e pela intransigência diante dos valores que professa, dedicou a vida à Faculdade de Direito das Arcadas. Assumiu várias cadeiras, pesquisou temas de fronteira, condensou o pensamento consagrado para facilitar a vida dos alunos e combateu o bom combate em defesa de suas posições sempre comprometidas com a justiça social.

Deixou, ao se aposentar, um livro interessantíssimo resgatando, para a preservação da memória da instituição, a vida e obra dos professores que emprestaram seus nomes às salas de aula das Arcadas: A faculdade e meu itinerário constitucional.

O homem de cultura

Todo professor consagrado é, também, um permanente aprendiz. Não se deixa aprisionar na segurança do sucesso. Procura, ao contrário, explorar novas latitudes. E assim é o professor José Afonso da Silva. Aprendendo e experimentando, mergulhou na literatura, escrevendo os romances Buritizal: A história de Miguelão Capaégua e Dondé.

Aprendeu a tocar a viola de doze cordas, a legítima brasileira, e maneja tão bem o instrumento a ponto de ser convidado a integrar famosa orquestra de violeiros, com dezenas de apresentações pelos rincões desta terra tropical e mais de uma gravação em CD. Mas não ficou nisso; formou com os seus filhos um conjunto musical no qual faz solo com a sua viola afinada. Curioso e incontível, foi muito além, incursionando no terreno da crítica literária e publicando interessante obra sobre o Romance em Primeira Pessoa.

O professor José Afonso da Silva impressiona pela sua vitalidade, pelo seu comovente gosto pela vida e pela generosa disposição de compartilhar a sua erudição. Ou melhor, não impressiona, exceto os que não conhecem os seus múltiplos interesses e as suas invulgares capacidades de concentração e de trabalho.

Concluindo

O mestre José Afonso é um homem gentil, acolhedor, amigo dos amigos e das causas justas, incentivador dos novos talentos, dos docentes iniciantes, tendo sempre uma palavra de estímulo, de encorajamento, de aprovação. Foram muitas as ocasiões nas quais eu, quando jovem professor, fui alvo de sua delicada atenção e infinita generosidade.

Três situações especiais me vêm à mente neste momento. A primeira quando, a pedido do então advogado Luis Roberto Barroso, que defendia, pro bono, importante causa no Supremo Tribunal Federal envolvendo a grave questão dos fetos anencéfalos, escrevemos, a quatro mãos, parecer para reforçar, com mais um tijolinho, a tese construída com brilhantismo pelo hoje ministro do Corte Suprema. O professor José Afonso não se incomodou em subscrever uma peça jurídica ao lado de um advogado que estava longe de alcançar a sua altura.

A segunda, quando, a seu pedido, prestei auxílio na realização, em Curitiba, do Congresso da Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas (ABCD), então por ele presidida. Na ocasião pude ver o quanto ele é respeitado também fora do Brasil. Foram vários os juristas provenientes dos mais variados países que aceitaram participar daquele evento grandioso, bastando para isso referir o nome do professor. É claro que o exitoso evento foi concluído com uma belíssima apresentação da Orquestra de Cordas que veio especialmente de São Paulo para aquele momento especial.

A terceira situação marcante também ocorreu em Curitiba, quando a Faculdade de Direito do UniBrasil Centro Universitário lhe concedeu, com absoluta justiça, o título de doutor honoris causa e inaugurou sala de aula com o seu nome. Para a ocasião, entre outros juristas notáveis, compareceu a ministra Carmen Lúcia, vindo de Brasília especialmente para a solenidade de entrega, grande admiradora que é do professor. Pudemos, eu e minha mulher, aproveitar por mais de um dia a agradabilíssima companhia do professor e da saudosa Dona Helena.

Fomos, há uma dezena de anos, eu e Marcela, a São Paulo na comemoração, com grande festa, do seu nonagésimo aniversário. Ali, para nenhuma surpresa, o mestre de todos os constitucionalistas brasileiros subiu ao palco para convidar a todos para a celebração do seu centenário. Pois bem, esse dia chegou. Brindemos mais uma vez. E, desta feita, ainda mais intensamente.

Nos festejos do seu nonagésimo aniversário, o privilégio de estar com ele e Helena era todo nosso. Mas, dias depois, chegava um amável cartão escrito, com a sua letra inconfundível, pelo amável professor:

“Prezados Marcela e Clèmerson. Senti-me muito lisonjeado, juntamente com a Lenita, com a presença de vocês na festa de meu aniversário de 90 anos. A vida tem me prodigalizado instantes muito felizes, instantes que transcorreram até esta idade provecta e espero que ainda me levem longe em companhia de grandes e generosos amigos como vocês. Forte abraço e gratíssimo.”

O cartão ilustra e sintetiza a elevada qualidade do ser humano e ensina como age, mais do que um jurista consagrado, o maior entre os maiores constitucionalistas brasileiros, um homem bom, sensível e dadivoso. Um dos meus heróis, desejo ao professor José Afonso da Silva mais cem anos pela frente com muita saúde, afeto e bem-aventurança.

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