Sigilo fiscal não é ficção
11 de abril de 2025, 14h00
Embora toda decisão esteja sujeita a contingências, o processo penal não é um jogo de resultados aleatórios, ele possui regras bem definidas, que conferem normatividade à atuação dos jogadores (partes) e do próprio julgador, ancoradas nos princípios do devido processo legal e do fair play processual.

O advogado Fernando José da Costa
Nesse aspecto, o recentíssimo entendimento da 5ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) no julgamento do agravo regimental em recurso em Habeas Corpus nº 207.195/SP, o qual, foi, inclusive, interposto pelo escritório Fernando José da Costa – Advogados reforça a necessidade de observância estrita das garantias constitucionais na obtenção de provas em procedimentos criminais.
Nesse precedente, no âmbito da amplamente divulgada operação thunder, o STJ reconheceu a ilicitude da requisição direta de informações fiscais do Grupo Tatuzinho pelo Ministério Público do Estado de São Paulo à Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo sem a devida autorização judicial e sem a existência de um procedimento formal instaurado, determinando o desentranhamento das provas obtidas ilicitamente, bem como de todas aquelas delas derivadas, isso, pois, toda prova que nasce de uma fonte contaminada carrega em si a mesma mácula.
O cerne dessa questão reside no sigilo fiscal e bancário, que se constitui como extensão ao direito à privacidade, assegurado pelo artigo 5º da Constituição de 1988. A violação desse sigilo, admitida tão somente em hipóteses excepcionais, quando realizada à margem de todas as regras constitucionais e processuais penais, compromete o equilíbrio entre o poder estatal e as garantias individuais.
Liberdades individuais
Vale lembrar que a importância do sigilo fiscal e bancário remonta a concepções clássicas sobre as liberdades individuais. John Locke, no século 17, já alertava para os perigos de um Estado que, sem freios e contrapesos, pudesse invadir indiscriminadamente a esfera privada dos cidadãos. No contexto moderno, essa preocupação se reflete na necessidade de limitar o alcance da atuação estatal sobre dados sigilosos e imprescindíveis à privacidade do cidadão, impedindo, inclusive, que investigações criminais sejam conduzidas com desprezo às garantias processuais.
Justamente por essa razão, a legislação brasileira estabelece que, em regra, o acesso a esses dados deve ser precedido de decisão judicial fundamentada, visando impedir que investigações sejam conduzidas sem o necessário controle jurisdicional. Se assim não fosse, permitir que órgãos de persecução penal requisitem diretamente tais informações conferiria ao Estado um poder excessivo, incompatível com os princípios do devido processo legal e da legalidade.
Em que pese esse cenário que reforça a importância do sigilo de dados, em uma certa flexibilidade a essa garantia, instituiu-se o Tema 990 perante o Supremo Tribunal Federal, fixando, ainda no ano de 2019, a tese de que é constitucional o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira e de procedimentos fiscalizatórios da Receita Federal com órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a necessidade de prévia autorização judicial. Ainda assim, para isso, exige-se a observância de determinados requisitos, como a preservação do sigilo das informações e a existência de procedimentos formalmente instaurados sujeitos a controle jurisdicional posterior.
Desde então, a aplicação prática do Tema 990 tem gerado debates, suscitando questionamentos sobre os limites do poder investigativo e a necessidade de salvaguardas contra possíveis abusos. Isso porque não é incomum a ampliação do precedente fixado pela nossa Corte Suprema para abarcar outras hipóteses – algumas até mesmo recepcionadas pela jurisprudência -, além de excessos dentro das permissões excepcionais de violação do sigilo.
O STF, ao julgar o Tema 990, autorizou o compartilhamento de dados fiscais com o Ministério Público, desde que previamente obtidos por órgãos de controle, como a Receita, no exercício regular de sua função fiscalizatória e após o término de um procedimento administrativo fiscal, no caso de uma Representação Fiscal Para Fins Penais. O que se discutiu no presente caso foi algo distinto: não houve compartilhamento, mas sim requisição direta de documentos pelo Ministério Público, sem autorização judicial e sem a instauração de qualquer procedimento formal. Essa distinção é fundamental. Essa requisição, sem autorização judicial e fora de um procedimento instaurado, afronta o devido processo legal e viola garantias constitucionais básicas dos investigados.
No caso em questão, que se traduziu enquanto claro excesso, envolvendo uma das maiores e mais tradicionais indústrias brasileiras de bebidas quentes, submetido ao mencionado julgamento pelo STJ, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo forneceu informações fiscais ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) antes mesmo da formalização de um procedimento investigatório regular e mais grave ainda, a justificativa dessa requisição ocorreu por uma mera denúncia anônima.
Essa prática subverte a lógica processual penal, pois permite que o Ministério Público acesse dados sigilosos sem a devida supervisão judicial — iniciando uma verdadeira pescaria probatória, vale dizer.
Assim, o necessário reconhecimento da ilegalidade dessa conduta não é meramente formal, trata-se de uma salvaguarda essencial contra possíveis abusos. Se autoridades pudessem requisitar livremente dados acobertados por sigilo, investigações poderiam ser iniciadas sem qualquer controle jurisdicional, permitindo devassas patrimoniais sem justa causa, justamente o que aconteceu no caso em questão, em que informações obtidas ilicitamente justificaram o bloqueio de bens de diversas pessoas físicas e jurídicas no valor astronômico de R$ 303 milhões.
Na prática, ações como essas se revelam de tamanha gravidade, na medida em que podem representar, em muitos casos, a sentença de morte para diversas empresas, causando prejuízos irreparáveis à vida daqueles que são, meramente, investigados.
Por essa razão, precedentes importantes como este impõem limites ao poder desmedido das investigações e garantem a tutela à legalidade pelo respeito ao sistema de garantias constitucionalmente instituído. Como na dinâmica estratégica descrita pela Teoria dos Jogos, em que o equilíbrio entre os participantes depende da observância de regras previamente definidas, o processo penal exige que a persecução estatal não ultrapasse os limites impostos pelas garantias fundamentais, pois, quando as regras são desconsideradas, o sistema se desestabiliza.
Esse julgamento do STJ reafirma que não há espaço para flexibilizações quando se trata de garantias fundamentais. Conduzir a persecução penal sem observar as regras processuais pode esvaziar direitos constitucionais, permitindo que o fim — a punição estatal — justifique meios arbitrários, o que nunca se pode admitir em um Estado democrático de Direito.
Não por outro motivo, logo quando cientificado sobre o teor do julgamento, o juiz da 3ª Vara Criminal do Foro de Rio Claro (SP) reconheceu a ilicitude de toda a investigação, desde o seu início, dada à mácula irreparável de sua origem. Por consequência lógica, o magistrado também revogou a medida cautelar de sequestro de bens que recaia no montante multimilionário em face de quase 20 pessoas físicas e jurídicas.
Afinal, o sigilo fiscal não é ficção, mas uma garantia constitucional que não pode ser ignorada em nome da conveniência investigativa.
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