Opinião

Problemática do tratamento concedido às micro e pequenas empresas

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11 de abril de 2025, 20h44

A licitação pública é um procedimento administrativo complexo, que tem por objetivo a aquisição e contratação de bens e serviços pela administração pública. Para tanto, tem como pilar os princípios expressos no artigo 5º da Lei nº 14.133/2021, dos quais o princípio da isonomia funciona como um contrapeso, que busca equilibrar as regras do jogo garantindo que todos os concorrentes tenham as mesmas condições para a disputa.

Nas palavras do professor Celso Antônio, a isonomia “consiste em assegurar regramento uniforme às pessoas que não sejam entre si diferenciáveis por razões lógicas e substancialmente (isto é, em face da Constituição) afinadas com eventual disparidade de tratamento)”.

Por outro lado, alerta o doutrinador Marçal Justen Filho que o tratamento isonômico concedido as partes devem considerar critérios de diferenciação compatíveis com a ordem jurídica, ou seja, essa espécie de discriminação (positiva) deve seguir parâmetros coerentes e válidos para o fim almejado. Destaque-se:

No mundo real, existem muitas diferenças entre as situações. A questão reside no critério de diferenciação escolhido. […] Somente podem ser adotados critérios de diferenciação compatíveis com a ordem jurídica. Alguns critérios são juridicamente proscritos ou a sua adoção somente pode ser admitida em vista de certas circunstâncias. […] Em terceiro lugar, a finalidade da discriminação determina e condiciona os critérios a serem adotados. Deve existir uma relação de adequação entre o fim e o meio. Não é válida a discriminação quando se adota um critério apto a identificar um atributo irrelevante ou impertinente. […] (MARÇAL, p. 68/69)

E assim conclui na sequência:

Em quarto lugar o tratamento discriminatório deve ser adequado e necessário em vista dos valores jurídicos. Isso significa que a diferenciação deve ser instrumento para realização dos valores jurídicos e qualquer tratamento mais benéfico ou mais restritivo deve ser o mínimo necessário para assegurar a realização dos ditos valores. (op.cit, p. 69)

Portanto, a isonomia incorpora no certame licitatório como uma ferramenta que assegura aos candidatos do certame o indistinto tratamento, que suas igualdades e desigualdades serão devidamente balizadas. Em outras palavras, não será eliminada exigência que sabidamente o concorrente pode cumprir, tampouco será imposto ônus àquele que não possa suportar.

Estatuto das Micro e Pequenas Empresas

Nesse contexto, a Lei Complementar Federal nº 123, de 14 de dezembro de 2006, instituiu o Estatuto Nacional das Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP), estabelecendo, a partir do Capítulo V, as diretrizes para o tratamento diferenciado e favorecido a ser conferido a essas empresas.

A justificativa para esta discriminação positiva está esculpida no artigo 47, a qual enfatiza que as contratações públicas devem assegurar tratamento favorecido às micro e pequenas empresas para fomentar o desenvolvimento local e regional:

Art. 47.  Nas contratações públicas da administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal, deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) (Vide Lei nº 14.133, de 2021)

Para consecução desses objetivos a legislação estabelece no artigo 48, incisos I a III, as medidas a serem implementadas pela administração pública em seus editais:

Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública: (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)  (Vide Lei nº 14.133, de 2021)

I – deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)

II – poderá, em relação aos processos licitatórios destinados à aquisição de obras e serviços, exigir dos licitantes a subcontratação de microempresa ou empresa de pequeno porte; (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)

III – deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)

Para o presente estudo, parte-se da análise do inciso II, que, diferentemente dos demais, confere uma faculdade à administração pública ao dispor que o edital poderá prever, nas contratações de obras e serviços, a obrigatoriedade de subcontratação de micro ou pequena empresa.

Contudo, o inciso I e III impõe uma obrigação, portanto a Administração deve cumprir o que está prescrito na lei, sob pena de nulidade do procedimento.

Reserva para licitação

No primeiro caso (inciso I), obriga-se a administração pública a reservar a licitação para ME e EPP se o valor dos itens da contratação não superar o seu limite de faturamento anual (atualmente fixado em R$ 360 mil para ME e R$ 4,8 milhões para EPP). O inciso III, por sua vez, determina a reserva de cota de 25% para MEs e EPPs em licitações cujo objeto seja divisível. Dessa forma, realizada uma licitação pública para aquisição de bens de natureza divisível, um quarto do montante do objeto licitado deverá ser reservado para micro e pequenas empresas.

Spacca

Dessa forma, há dois tipos de tratamentos dispendidos às micro e pequenas empresas que, sobretudo, garantem a reserva de uma quantidade dos itens licitados.

Ocorre que a contenda se instala no momento em que a licitação se divide em cotas de ampla concorrência e cota reservada. Nesse cenário às ME e EPP é concedido o privilégio de reserva de um número de itens, nos quais elas disputarão entre si, sendo certo que, nesses itens, ao menos uma microempresa ou empresa de pequeno porte será a vencedora, já que a disputa está restrita exclusivamente a esse segmento.

No entanto, ainda poderão disputar a cota destinada à ampla concorrência e, embora não haja objeção a essa participação, o tratamento a elas conferido será continua sendo diferenciado. A problemática surge justamente porque, mesmo após já terem assegurada uma cota exclusiva, essas empresas ainda participam da ampla concorrência com os mesmos privilégios legais, o que parece resultar em desequilíbrio competitivo, se distanciando do conceito de isonomia entre os licitantes.

Violação ao princípio da isonomia

A título de exemplo, tem-se o artigo 44, §1º e §2º da LC 123, que estabelece que as ME e EPP estarão empatadas com propostas, cujo valor seja igual ou até 5% superior a mais bem classificada, no caso de pregão, e igual ou até 10% superior a mais bem classificada nas demais licitações.

Conforme se discorreu nas linhas anteriores, o tratamento discriminatório deve ser adequado e necessário. Ou seja, a diferenciação deve atender a uma finalidade legítima e proporcional, revelando-se como um mecanismo eficaz para promoção dos valores jurídicos tutelados, sem, contudo, extrapolar os limites do que é estritamente necessário para alcançá-los.

Na medida em que se reserva uma cota de itens para micro e pequenas empresas e, ao mesmo tempo, permite sua participação na cota destinada a ampla concorrência, e neste último se preservam todos os privilégios dessas empresas, há aparente sobreposição de vantagens, o que pode resultar em violação ao princípio da isonomia entre os licitantes.

Essa estrutura normativa, embora bem-intencionada, pode produzir um desequilíbrio indesejado, pois se acumulam benefício da cota reserva e da ampla concorrência (neste último, por exemplo, o direito de regularização fiscal tardia e o empate ficto). Cria-se um cenário que tais empresas competem em condições significativamente mais vantajosa, não apenas porque já ingressam no certame com um número de itens previamente reservados, mas também porque, disputam a cota de ampla concorrência com privilégios adicionais.

Dessa forma, deve-se observar se nas licitações que contenham cotas exclusivas e ampla concorrência, se a manutenção dos benefícios concedidos às micro e pequenas empresas, na segunda hipótese não representa uma violação ao princípio da isonomia; pois conforme exposto essa discriminação deve buscar corrigir desigualdades de forma razoável e proporcional, não podendo resultar em vantagens excessivas que, em vez de promover a igualdade, acentuem ainda mais as disparidades entre os concorrentes.

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Referências

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Princípio da Isonomia: Desequiparações Proibidas e Desequiparações Permitidas, em Revista Trimestral de Direito Público, 1993.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista, atualizada e ampliada. Revista dos Tribunais. 16ª Edição: 2014.

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