Reflexos e reflexões sobre a massificação das licitações públicas
10 de abril de 2025, 10h21
As notícias veiculadas pela imprensa acerca do uso desenfreado da figura do carona (ou da adesão) nas Atas do Sistema de Registro de Preços (SRP) reacendem debates que existiam bem antes da entrada em vigor da Lei 14.133/21. Expõem vísceras do sistema de licitação brasileiro, embora não discutam reflexos sobre o fenômeno econômico subjacente, que deriva da estratégia de massificação das aquisições públicas.
Historicamente, o caráter incompleto da regra legal do artigo 15 da revogada Lei 8.666/1993 deu azo a que previsões regulamentares transformassem o Sistema de Registro de Preços numa espécie de albergue, tendo havido certa dose de complacência em admitir as práticas introduzidas no sistema de contratações administrativas.
O TCU, por exemplo, no Acórdão nº 1.487/2007, determinou ao então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) que procedesse à reavaliação do Decreto nº 3.931/2001 e estipulasse limites à adesão dos caronas nas Atas de Registro de Preços. No julgamento do pedido de reexame aviado pelo MPOG, cinco anos depois, o TCU fixou o prazo até 31 de dezembro de 2012 para que referido limite fosse estabelecido em âmbito federal [1].
Sobreveio o Decreto nº 7.892/2013 (23 de janeiro), e suas posteriores complementações (v.g., Decreto 9.488/2018), cumprindo a determinação do TCU, e normatizando limites para a adesão às Atas de Registro de Preços.
Com a edição da Lei 14.133/2021, a previsão legal do sistema de adesões parecia resolver definitivamente o problema. Afinal, a limitação às aquisições dos “caronas” — que não poderão exceder, por órgão ou entidade, a 50% dos quantitativos dos itens do edital, bem como na totalidade, ao dobro do quantitativo de cada item, independentemente do número de órgãos adesões –, por ser norma geral, vincula a todos os entes federativos.
Entretanto, em texto publicado aqui nesta ConJur — e cuja leitura se recomenda — Bertaiolli e Koller [2] apontaram questões de fundo em torno da figura do carona no SRP. Uma delas está na definição do respectivo objeto vis-à-vis às reais necessidades dos órgãos ou entidades públicas do Oiapoque (AP) ao Chuí (RS):
“não é crível que uma mesma aquisição, por exemplo, de livros, tenha absoluta identidade de condições apresentadas a um município no extremo sul do Brasil e de outro estado da federação”.
Esse ponto se relaciona a deficiências no planejamento das contratações, às quais fez-se menção em comunicação proferida no plenário do TCU no dia 2 de abril pelo ministro Benjamin Zymler, cujo foco foi justamente a revelação pela mídia de como intermediários vêm burlando contratações por meio de atas de registro de preços firmadas por prefeituras: “os itens a serem licitados, com suas respectivas especificações, são incluídos sem respaldo técnico adequado, carecendo de Estudo Técnico Preliminar (ETP) que fundamente a necessidade da contratação ou que justifique, com base em critérios objetivos, os quantitativos previstos e as soluções ou especificações adotadas”.
Na mesma comunicação, Zymler citou a impressionante cifra que atingem as contratações processadas mediante Sistema de Registro de Preços: R$ 531 bilhões em 2024, o que representou 32% do volume total de contratações públicas no período.
‘Barrigas de aluguel’ e asfixia
Se é inegável que o SRP representa avanço em matéria de contratações públicas, pois permite o melhor aproveitamento da economia de escala e a racionalização de custos com certames licitatórios, deve-se, por outro lado, zelar pelo seu contínuo aperfeiçoamento, bem como refletir em que medida o instrumento tem contribuído com atingimento dos objetivos legais.

A comunicação do TCU mencionada faz referência ao problema dos “corretores de atas”, correlacionado às chamadas “barrigas de aluguel”. Essa prática remete à estipulação, por órgãos gerenciadores e participantes no SRP, de quantidades superestimadas nas atas, sem correspondência com a real demanda, com o objetivo de favorecer determinados fornecedores, que buscam “comercializar” os itens registrados junto a outros entes públicos por meio das adesões dos “caronas”. Foi proposta por Zymler, e acatada pelo plenário da Corte de Contas, ação de controle específica sobre a questão.
No entanto, há outro problema na proliferação das adesões a atas. A economia dos entes subnacionais menores depende, em grande medida, da interação dos agentes privados com o poder público. Certames municipais, nos quais a participação de empresas locais resta facilitada, são vitais para a sobrevivência e crescimento de negócios circunscritos àquela região.
Adesões a atas, especialmente por parte de municípios menores, que buscam “carona” em procedimentos conduzidos por entes maiores, em um movimento de massificação das contratações públicas, podem asfixiar iniciativas locais. Isso porque esses certames tendem a ser vencidos por empresas mais bem estruturadas, com atuação capilarizada.
Aí está uma realidade que merece reflexão. A Constituição brasileira arrola entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil o de garantir o desenvolvimento nacional e o de reduzir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, II e III da Constituição).
A par dos abusos noticiados pela TV no sistema de registro de preços, bem como de possível cerceamento de iniciativas econômicas locais, altamente dependentes de contratações com o poder público, até que ponto a estratégia de massificação das aquisições públicas é capaz de homenagear ditos objetivos?
[1] CARVALHAES, Rafaela de Oliveira. Limites à Adesão indiscriminada à ata de registro de prelos: estudo sob o enfoque do acórdão nº 1.233/2012 do Tribunal de Contas da União e da nova regulamentação introduzida pelo Decreto Federal nº 7.892/2013. Disponível aqui. Acesso em 09.04.2025.
[2] BERTAIOLLI, Marco Aurélio. KOLLER, Robert Werner. Ata de registro de preços: até onde vai a ‘carona’ permitida pela legislação? Disponível aqui. Acesso em 09.04.2025.
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