Consumo de ativismo já! (Mas só para quem pode)
9 de abril de 2025, 8h00
Torna-se cada vez mais corriqueira a afirmação no sentido de que todas as pessoas são consumidoras e, consequentemente, responsáveis por aquilo que consomem — cada produto, cada serviço. Na busca por exercer cada vez mais o mandamento bíblico de ter ouvidos de ouvir e olhos de ver [1], e igualmente o verso poético de Leão de Formosa que orienta a aperfeiçoarmo-nos na arte de escutar, pois só quem ouviu o rio saberá distinguir quando ouvir o barulho do mar, tem-se aproveitado ao máximo participações em eventos para fins de ouvir: ouvir mais, ouvir melhor. Nestas auscultações em eventos jurídicos escutou-se a seguinte sentença (não importa a pessoa; interessa somente a reflexão): “somos consumidores e todos responsáveis por tudo que consumimos, cada produto, cada serviço”.
Será?
Este texto tenta tecer alguns comentários críticos sobre a citada responsabilidade de todos e todas por aquilo que se consume, seja produto ou serviço. Para isso, imagine-se o seguinte diálogo:
Vendedor: — Bom dia! Qual causa o senhor vai levar hoje?
Consumidor: — Deixe-me ver… O que vocês servem, ativistamente falando?
Vendedor: — Para o café da manhã temos café feminista [2], leite de vaca da fazenda Meio Ambiente [3], biscoitinhos feitos de milho orgânico [4]… ah! E entregamos tudo em sacolas ecológicas (ecobags) adesivadas com frases empoderadoras [5] do tipo power to my people, black live matters ou ainda my body, my rules. Que tal?
Consumidor: — Um momento, estou pensando em uma combinação legal de consumo de ativismo para tirar foto e publicar em meu perfil no Instagram.
A bem da verdade, não é novidade que a cena acima reproduzida, embora porventura com certo exagero nas falas (puffing, diriam os publicitários ou estudiosos do Direito do Consumidor), corresponde à atual realidade de consumidores e consumidoras no mercado de consumo. Corrobora com essa afirmação a recente pesquisa realizada pela Nexus, empresa de pesquisa e inteligência de dados da FSB Holding, intitulada “Reputação das marcas: o que move o comportamento dos brasileiros” [6], conduzida entre os dias 23 e 30 de setembro de 2024, em que foram entrevistadas 2.006 pessoas, de todas as unidades da Federação e de idades variadas a partir dos 16 anos.
De acordo com a pesquisa, seis em cada dez brasileiros deixaram de adquirir produtos nos últimos dois anos em virtude de pelo menos um dos seguintes motivos: desrespeito ou discriminação (47%); corrupção ou fraude (42%); impacto ambiental negativo (32%); politização (26%) e xenofobia (21%). Essas cinco categorias englobam dez motivos pelos quais os consumidores brasileiros boicotam marcas, a saber: marca acusada de não respeitar seus funcionários (35%); marca acusada de fraudes nos seus produtos (33%); marca acusada de racismo (32%); marca teve envolvimento com caso de corrupção ou fraude (32%); marca foi acusada de agredir o meio ambiente (32%); marca fez campanhas ou publicidades consideradas preconceituosas pelo consumidor (31%); marca foi acusada de homofobia (29%); marca foi acusada de não promover a igualdade entre homens e mulheres (28%); marca possui donos ou executivos que defenderam posições políticas distintas da posição do consumidor (26%); marca é de um pais ou nacionalidade diferente do Brasil (21%) [7].

O título da notícia publicada no jornal Folha de S.Paulo, que divulga os resultados da referida pesquisa, sintetiza a sua principal constatação: mais da metade dos consumidores boicota marcas envolvidas em escândalos [8]. Por esta história única [9], chega-se à conclusão de que se tem um Brasil já bastante amadurecido quanto ao consumo de ativismo, certo? Sim, desde que considerados apenas os consumidores e consumidoras que podem praticá-lo, sob pena de incorrer-se no que Machado de Assis chamou de Ideias de Canário (1889), conto em que um pássaro só compreendia como sendo o mundo inteiro aquilo que ele conseguia ver imediatamente – e o resto seria só ilusão e mentira.
Efetivamente, todos somos consumidores em potencial ou ativos, mas nem todos os consumidores e consumidoras têm a plena liberdade de escolher os produtos e os serviços que necessitam adquirir, de sorte que a corriqueira mencionada responsabilidade pelo bem ou serviço consumido deve ser analisada com cautela e cuidado.
Tal fenômeno de boicote a marcas corresponde ao que estudiosos de marketing do mercado denominam de consumo de ativismo, o qual não se confunde com consumo ativista [10], posto que guardem semelhanças terminológicas.
Consumo de ativismo é adesão a discurso ativista como valor simbólico de interação social que não implica em prática de ação ativista, mas que também não a exclui [11]. Novamente de acordo com especialistas do campo do marketing de mercado, consumo de ativismo possui conceito relacional e dois aspectos principais se sobressaem:
1. Por parte das empresas: a capacidade de perceber no zeitgeist [12] contestatório a oportunidade para aproveitar a predisposição do público para o consumo de bens materiais e/ou simbólicos que vêm ao encontro desse espírito do tempo;
2. Por parte dos consumidores-cidadãos: a busca de pessoas dos mais variados gêneros, idades, localidades, gostos, raças e credos por aderirem ao consumo de produtos e serviços que sejam capazes de comunicar sua visão político-ideológica acerca do sistema-mundo atual e dos numerosos embates inerentes à complexidade da sociedade de consumo no contemporâneo [13].
Novo perfil
Trazendo ao mundo real (fora da gaiola do canário), isto é, pinçando-se dois exemplos de consumo de ativismo noticiados à exaustão pelo Brasil afora a fim de contextualizar a importância de se aderir a tais atitudes, típicas do que se tem denominado de sociedade de hiperconsumo (que difere da sociedade de consumo pois que esta consome bens e produtos e aquela busca consumir cultura e política): (1) estudante de educação física, então com 21 anos, deixou de praticar crossfit depois de tomar conhecimento de que o americano fundador, Greg Glassman, fundador da CrossFit Inc., fez uma ironia no Twitter (hoje X) após o assassinato de George Floyd em maio de 2020 [14]; (2) Também em 2020, Enzo Rodrigues, então com 23 anos, especialista em marketing digital, reduziu drasticamente o consumo de carne e laticínios, priorizando leite vegetal e marcas que tenham uma produção mais consciente, com menos impacto ao ecossistema. Entre as suas marcas preferidas está a Linus, uma sandália de plástico 100% reciclável, que exibe selos como o Peta-Approved Vegan (que garante que o produto é vegano) e Carbonext (certificação de carbono negativo, que significa compensar o dobro das emissões de carbono vinculadas à operação). “Também gosto da Not Milk, uma marca de leite vegetal, pela proposta de substituir produtos de origem animal como resposta ao impacto ambiental gerado pela indústria pecuária“ [15].
Portanto, o que se verifica é que, por uma banda, empresas que buscam o encantamento do consumidor [16] têm percebido a necessidade de se adaptarem a este novo perfil de consumidor, qual seja: o exigente, o consumidor-cidadão, o consumidor da sociedade de hiperconsumo, enfim, que adere ao consumo de ativismo por meio de sua visão de mundo. A rigor, ganham todos que participam do mercado quando essa preocupação ativista é regida pela harmonização das relações de consumo, o que, a propósito, é princípio jurídico que constitui objetivo fundamental da Política Nacional das Relações de Consumo (caput do artigo 4.º do Código de Defesa do Consumidor [17]).
De outro lado, contudo, abrindo-se os dados da pesquisa referida amiúde neste texto, observa-se que: quem ganha mais de dez salários mínimos (R$ 14,1 mil) são os mais propensos a aderirem a boicotes. Neste grupo, 82% já deixaram de consumir produtos em pelo menos um caso de escândalo cometido pela empresa ou por seus executivos.
Eis a razão de nossa crítica e o requerimento para que não nos esqueçamos que, enquanto há pessoas que têm escolhido não permitir ou reduzir o consumo de carne em sua casa (caso acima relatado), 72% dos brasileiros das classes ABC deixaram de consumir carne nos últimos meses, em razão, prioritariamente (diz a pesquisa), da alta dos preços [18].
Como já foi possível registrar igualmente em eventos, e se trata de escrevivência (escrevemos sobre a vida vivida), para finalizar: (i) nas favelas ou se compra no supermercado mais próximo de casa ou se gasta o dinheiro das compras com transporte público para tentar fazer consumo de ativismo e a conclusão disto é (seria) a perpetuação da fome — não se discute na vida real sobre tal possibilidade; (ii) em escolas públicas de comunidades carentes não há discussão sobre consumo de ativismo para evitar alimentos ultraprocessados quando o assunto é se alimentar após horas de fome. Se há interesse em alimentação saudável, discutam os programas que fazem com que alimentos ultraprocessados não cheguem às escolas; chega a ser ingênuo (ou maldoso) falar em qualidade de alimento para quem, não raras vezes, encontra-se durante a refeição da escola fazendo a sua primeira e única alimentação do dia.
Metaforicamente falando, e em arremate: democracia é um evento em que as pessoas que estão no palco, com o poder de fala, portanto, convidam os que estão na plateia (a sociedade, sem excluir copeiros, zeladores etc., como de costume) para o palco e perguntam de forma personalizada, individualmente, o que elas têm a dizer. Afinal, aprende-se com Peter Haberle que todo aquele que vive sob a égide de uma Constituição é seu intérprete e deve ser ouvido [19].
Consumo de ativismo já — para quem pode!
[1] Provérbios 20:12 e em Mateus 13:15.
[2] The feminist tea: o primeiro café feminista do mundo! Disponível em: https://www.thefeministtea.com/products/the-feminist-coffee-o-primeiro-cafe-feminista-do-mundo?srsltid=AfmBOorpItCV2vQhdb7oqh9nRJLju3–PF5QeejSt3Prao8dr9EHAmyB. Acesso em 5 nov. 2024.
[3] Starbucks deixa de cobrar por taxa extra na venda de leites vegetais. Disponível em: https://forbes.com.br/forbesagro/2024/10/starbucks-deixa-de-cobrar-por-taxa-extra-na-venda-de-leites-vegetais/. Acesso: 5 nov. 2024.
[4] Deliciosos biscoitos orgânicos gostosos e saudáveis para comer sem culpa. Disponível em: https://mercadoorganico.com/129-biscoito-organico. Acesso: 5 nov. 2024.
[5] Ecobag lute como uma garota. Disponível em: https://peita.me/products/ecobag-lute-como-uma-garota?srsltid=AfmBOoqAKQmrofc8MdPVKbp4mbAMLYe1WjkbsV48MQYFR3YL6UA2-XUD. Acesso em: 5 nov. 2024.
[6] E-COMMERCE BRASIL. Consumidores consideram qualidade e impacto na economia para decidir comprar algumas marcas. Disponível em: https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/consumidores-consideram-qualidade-e-impacto-na-economia-para-decidir-comprar-algumas-marcas. Acesso em 5 nov. 2024.
[7] PIO, Juliana. Por que os brasileiros estão boicotando e cancelando marcas nas redes sociais? Exame, São Paulo, 9 nov. 2024. Disponível em: https://exame.com/marketing/por-que-os-brasileiros-estao-boicotando-e-cancelando-marcas-nas-redes-sociais/. Acesso em 18 nov. 2024.
[8] WIZIAK, Julio. Mais da metade dos consumidores boicota marcas envolvidas em escândalos. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 out. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2024/10/mais-da-metade-dos-consumidores-boicota-marcas-envolvidas-em-escandalos.shtml. Acesso em 5 nov. 2024.
[9] O perigo de uma história única é não trazer à baila contextos necessários, ensina Chimamanda Ngozi Adichie (O perigo de uma história única. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.)
[10] “Nem todo consumidor de ativismo é um consumidor ativista. O consumidor ativista procura o discurso e a ação ativistas, enquanto o consumidor de ativismo parece apenas consumir o discurso que está em moda. (…) o consumidor ativista se considera responsável por si e essa responsabilidade tem que refletir a responsabilidade com o outro.” (MIRANDA, Ana Paula; DOMINGUES, Izabela. Consumo de ativismo. Barueri, São Paulo, 2018. p. 82.)
[11] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[12] O termo é traduzido como “espírito da época” e está relacionado ao conjunto de ideias e crenças que caracterizam determinada época.
[13] MIRANDA, Ana Paula; DOMINGUES, Izabela. Consumo de ativismo. Barueri, São Paulo, 2018. p. 83.
[14] MADUREIRA, Daniele. Geração Z adota consumo ativista e rastreia racismo, poluição e trabalho escravo. Folha de S. Paulo, 13 out. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/geracao-z-adota-consumo-ativista-e-rastreia-racismo-poluicao-e-trabalho-escravo.shtml. Acesso em: 5 nov. 2024.
[15] MADUREIRA, Daniele. Geração Z adota consumo ativista e rastreia racismo, poluição e trabalho escravo. Folha de S. Paulo, 13 out. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/geracao-z-adota-consumo-ativista-e-rastreia-racismo-poluicao-e-trabalho-escravo.shtml. Acesso em: 5 nov. 2024.
[16] Sobre o tema: SALES, Jonas. Filosofia do encantamento não se sustenta em cenário de desrespeito ao Código de Defesa do Consumidor. Migalhas, 24 nov. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/377381/cenario-de-desrespeito-ao-codigo-de-defesa-do-consumidor. Acesso em: 6 nov. 2024.
[17] CDC. Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios (…).
[18] Inflação obrigou 7 em cada 10 brasileiros a cortarem itens de compra no mercado. Época Negócios, 27 jul. 2022. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2022/07/epoca-negocios-inflacao-obrigou-7-em-cada-10-brasileiros-a-cortarem-itens-de-compra-no-mercado.html. Acesso em: 01 mar. 2025.
[19] HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Mendes. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Sergio Antonio Fabris Editora, 2022, p. 9.
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