Opinião

Presunção de inocência também vale para acusações de cunho sexual

Autor

  • Maria Lucia Karam

    é juíza-auditora na Justiça Militar Federal e defensora pública no Rio de Janeiro. Foi juíza de direito no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).

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30 de setembro de 2024, 13h18

A atribuição ao ex-ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos), logo exonerado, de condutas de importunação e assédio sexual sugere uma advertência.

Não é possível se prosseguir corroendo a garantia da presunção de inocência em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade.

Sustenta-se que sua palavra seria inquestionável, sempre verdadeira e suficiente até mesmo quando sob anonimato. Assim advogam-se condenações sem processo, simplesmente desprezando o princípio “nulla poena sine judicio” (“nenhuma pena sem lei”). O processo se tornaria uma farsa, pois, antes mesmo de seu início, já se teria estabelecido a verdade, a ser veiculada por uma acusação incontestável.

Já nas primeiras eras de elaboração do direito questionava-se não apenas a solitária palavra de autoproclamadas vítimas, mas a própria palavra de uma só testemunha. É lição do direito romano: “testis unus, testis nullus” (“testemunha única, testemunha nula”). Mas, há lição mais recente, consagrada com os direitos humanos fundamentais: dispõe a garantia da presunção de inocência que a acusação não passa de hipótese a ser ou não comprovada.

Rosinei Coutinho/STF

Como os demais elementos trazidos pela acusação, a palavra da apontada vítima nada mais é do que uma versão do alegado fato, sujeitando-se a questionamentos e dúvidas que, submetidos ao contraditório, serão ou não desfeitos.

‘A verdade’

Antes e no curso do processo não há verdade, toda palavra de qualquer apontada vítima sempre sendo questionável. Verdade sobre a alegada prática de um crime só é algo possível de ser reconhecido se e quando acontecer condenação definitiva ao final de processo regularmente desenvolvido.

O discurso que não se acanha em violentar a presunção de inocência, pretendendo tornar inquestionável a palavra de mulheres vítimas, apela para uma suposta posição de fragilidade e opressão em que estariam. Mas, no processo penal, vítimas não são frágeis ou oprimidas.

Estão sim alinhadas com o Estado, com o Ministério Público, com a acusação; isto é, com o lado forte da relação ali estabelecida, visando impor o poder punitivo — poder dado ao Estado de, através da imposição da pena, deliberadamente infligir sofrimento a autores de condutas criminalizadas.

Pena significa sofrimento. No processo penal, quem é frágil é o réu, ameaçado de sofrer o peso desse poder. Esclarece o jurista italiano Luigi Ferrajoli: “O direito penal, em seu modelo garantista, equivale à lei do mais fraco que, se no momento do crime é a vítima, no momento do processo é sempre o réu, cujos direitos e garantias são —essas sim— leis do mais fraco”.

Constrangimentos ao livre exercício da sexualidade, desigualdade entre os gêneros ou quaisquer outras relações hierarquizadas e discriminatórias jamais poderão ser superados com o sacrifício de direitos fundamentais. Ao contrário. Direitos fundamentais, como a garantia da presunção de inocência, pilar do Estado democrático de Direito, hão de ser sempre reafirmados. Só assim poderemos ter sociedades mais iguais e mais justas.

*artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

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  • é juíza-auditora na Justiça Militar Federal e defensora pública no Rio de Janeiro. Foi juíza de direito no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).

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