Controvérsias Jurídicas

Portaria do TSE pode prejudicar ação da PRF contra transporte ilegal de eleitores

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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30 de setembro de 2024, 10h13

A Portaria Conjunta nº 1 do Tribunal Superior Eleitoral e Ministério da Justiça e Segurança Púbica, publicada em 20 de setembro de 2024 [1], na contramão da jurisprudência eleitoral, da Lei nº 6.091/1974 e da tradição do próprio TSE de agir com o máximo rigor contra o transporte ilegal de eleitores, sempre punindo com a cassação de mandatos vereadores e prefeitos, alguns deles mais de uma vez, resolveu restringir a fiscalização da Polícia Rodoviária Federal nos dias 6 e 27 de outubro de 2024, sob o argumento de facilitar a circulação dos eleitores pelas estradas federais nos dias de votação nas eleições de 2024.

Spacca

O ato normativo proibiu “a realização de bloqueios de rodovias federais para fins meramente administrativos ou para apuração de descumprimento de obrigação veicular”. De acordo com o documento, tais ações rotineiras de fiscalização, dentro da atribuição legal e constitucional da Polícia Rodoviária Federal, atrapalhariam, em tese, a movimentação dos eleitores nos dias de eleição e, portanto, devem ser proibidas.

A abordagem de veículos somente será permitida quando tiver por finalidade fiscalizar condutas que violem as regras de trânsito e coloquem em risco a incolumidade pública. Eventuais bloqueios nas rodovias federais deverão ser comunicados à presidência do Tribunal Regional Eleitoral do respectivo Estado ou do Distrito Federal.

A justificativa para a proibição foi inibir a repetição de ações que teriam ocorrido nas eleições de 2022, quando a PRF realizou operações de fiscalização em rodovias na região Nordeste do país, o que teria dificultado o acesso dos eleitores aos locais de votação.

Embora sejam nobres os fins que a motivaram, a portaria irá inibir ações de policiamento preventivo e a fiscalização de fraudes nos dias de votação, justamente em um momento no qual as organizações criminosas estão investindo pesado na compra de votos para controlar a política municipal em todo o país.

Manietar as forças policiais federais no dia da eleição pode afetar negativamente a regularidade dos pleitos eleitorais, na medida em que prejudica a fiscalização do transporte ilegal de eleitores. A já noticiada ausência de bloqueios e comandos nas rodovias federais no dia da eleição, vai incentivar a compra de votos, sobretudo nas regiões mais afastadas, menos estruturadas socialmente e de população mais vulnerável.

Compra de votos

A manipulação de eleições por meio de compra, extorsão, coação ou adulteração de votos sempre ocorreu em nosso país. Conta-se que na Velha República, os coronéis proprietários de latifúndios rurais escreviam nas cédulas de votação o nome do candidato em que seus empregados deveriam votar e a inseriam em um envelope. Em seguida, entregavam o envelope lacrado, já com o voto no candidato do coronel, a fim de que o empregado o depositasse na urna sem saber em quem estava votando.

Certo dia, um deles, tomado de súbita coragem, ousou perguntar qual era o nome do candidato no qual iria votar, uma vez sua cédula de votação, com o voto feito por seu patrão, já estava guardada no envelope fechado.

Argumentava ser seu direito saber para quem seu voto seria endereçado. Foi então que o coronel, surpreso com a inusitada curiosidade, disse ao empregado que ele não precisava saber em quem votava porque o voto era secreto. De fato, era tão secreto que nem o próprio eleitor sabia em quem estava votando. Anedota ou não, isso realmente ocorria com incrível regularidade durante a chamada República Velha.

A prática de manipulação descarada de votos pelo poder das elites agrárias do país só foi substituída pela extinção explícita do direito de voto durante a ditadura Vargas. A partir de então, não era mais questão de simples manipulação do voto: o próprio direito de voto havia sido abolido. Antes da instalação do regime ditatorial, porém, a Revolução de 1930 bem que tentou moralizar o sistema eleitoral e elaborou o primeiro Código Eleitoral do Brasil em 1932, com a criação do voto feminino.

O sonho de uma democracia efetiva, no entanto, durou pouco. Em 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas rompia com suas promessas e anunciava a implantação de uma nova ordem, substituindo a CF democrática de 1934, pela Carta autoritária outorgada em 1937.

A nova Constituição era de inspiração fascista e, por ter se baseado na Constituição polonesa de 1935, acabou apelidada de Constituição Polaca. A ditadura acabava de ser implantada no país, extinguindo a Justiça Eleitoral, abolindo os partidos políticos e suspendendo as eleições. Foi o chamado Estado Novo, que durou até 1945, quando houve um golpe militar que destituiu Getúlio.

Após um brevíssimo período de iniciação democrática, em 31 de março de 1964, sobreveio novamente um regime autoritário, com a tomada do poder pelos militares e a implantação do Ato Institucional nº 2 em 1965, cujo artigo 18 dizia expressamente: “Ficam extintos os atuais partidos políticos e cancelados os respectivos registros”.

Foi proibido o voto direto para presidente, governador, prefeito e senador, e permitido apenas para eleições proporcionais, quais sejam, as de deputados e vereadores. Em 1985, Tancredo Neves é eleito pelo voto indireto do Congresso Nacional como o primeiro presidente civil após o golpe de 1964 e, em 1989, quatro anos depois, ocorreu a primeira eleição direta para presidente, já sob o jugo da CF de 5 de outubro de 1988.

Soberania tolhida

Como se nota nesse rápido escorço histórico, a soberania popular em nosso país, exercida pelo sufrágio universal, voto direto e secreto, com valor igual para todos (CF, artigo 14), sempre foi tolhida, seja nos momentos de submissão do país à ditadura, seja durante as falsas democracias, construídas sob o pálio de narrativas ideológicas e dominadas pelo poder econômico e político das elites burocráticas, enfronhadas na administração pública.

A manipulação das massas pelas elites se dá por força de sua vulnerabilidade, na medida em que a preocupação precípua dos menos privilegiados não é com o voto livre, mas com a própria sobrevivência.

Sua urgência em suprir necessidades básicas e sua fragilidade em resistir à pressão exercida pelos grupos dominantes de poder, torna os desprovidos de capacidade econômica alvos fáceis para compra de votos e fraude eleitoral. Valores imateriais como voto consciente e moralização da política ficam mais distantes diante de um cotidiano de carência por demandas mais concretas e imediatas.

Nessas regiões mais fragilizadas socialmente e distantes da privilegiada bolha social das narrativas ideológicas e das discussões teóricas, se não houver a presença de uma força de segurança motivada, organizada e estruturada, será muito difícil garantir o voto livre pretendido pela Portaria do TSE e do Ministério da Justiça e Segurança.

Crime organizado

O crime organizado sempre fica à espreita, aguardando falta de sintonia entre os órgãos de controle, principalmente em um momento em que demonstra enorme apetite em eleger vereadores e prefeitos por todo o país. De acordo com um levantamento feito pelo Observatório da Violência Política e Eleitoral, realizado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), entre abril e junho de 2024, foram registrados 128 casos de violência contra lideranças partidárias no Brasil.

No início de setembro, o TRE carioca anunciou a alteração de 53 locais de votação em dez municípios, por questões de segurança, afetando mais de 170 mil leitores. O Ministério da Justiça e Segurança Nacional resolveu estender o prazo de permanência da Força Nacional de Segurança por mais 90 dias no Rio, até o fim do período eleitoral. [2]

O chefe do Centro de Inteligência da Polícia Militar de São Paulo, coronel Pedro Luís Souza Lopes, afirmou que o crime organizado busca uma nova maneira de lavar dinheiro, infiltrando-se nas campanhas para “abocanhar” contratos públicos.

Segundo ele, a participação “é bem maior do que se imaginava. Não dá para falar se são 100, 200 municípios, mas tem vários com indícios palpáveis de alguma movimentação importante do tráfico para participar como financiador de campanha eleitoral”.

Segundo seu relato, o PCC ampliou sua atuação no tráfico internacional de drogas e agora está buscando novas modalidades para lavagem de dinheiro. O financiamento de campanhas e a participação em contratos públicos são algumas das possibilidades.

Um dos casos citados como exemplo, foi a ‘operação decurio’, quando mensagens de Whatsapp trocadas entre membros do PCC, foram interceptadas, e nelas, os integrantes dessa organização criminosa combinavam como eleger vereadores nos municípios de Ubatuba, Mogi das Cruzes e Santo André. Ao tratarem do tipo de ajuda que seria dada ao eleitor, um deles esclareceu: “vamos fechar com as famílias em quem deverão votar e dinheiro a gente vê mais para a frente”. [3]

O atual momento pelo qual passamos, embora não seja o de uma ditadura explícita, como os períodos de 1937/1945 e 1964/1985, nem de democracia relativa, como o período da República Velha, poderá ser conhecido como aquele em que o crime organizado começou a tomar conta da política no país.

1982 ficou marcado no Rio como o ano que marcou o início da dominação dos morros cariocas pelo Comando Vermelho e outras organizações criminosas. 1993, em São Paulo, o do ponto de partida do crescimento da maior organização criminosa do país, o Primeiro Comando da Capital.

Por essa razão, o momento é de união entre todas as forças policiais, Ministério Público e Poder Judiciário, e não de mútua desconfiança institucional. A preocupação precípua deve ser a de prevenir a penetração do crime organizado na política. Precisamos manter a credibilidade nas instituições policiais e prestigiar as forças de segurança de nosso país, a fim de não nos desviarmos do foco principal que é inibir o crescimento e o poder econômico das organizações criminosas.

O Brasil faz parte de uma lista preocupante dos 20 países mais violentos do mundo, elaborada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). Um estudo do grupo Esfera Brasil, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) desenvolveu um trabalho que apontou a existência de pelo menos 72 facções criminosas vinculadas ao narcotráfico (devem ser muito mais), com destaque ao PCC.

O pior é que esta é apenas a ponta de um iceberg. “Com receita bruta na ordem dos bilhões as facções criminosas se tornaram negócios muito lucrativos aos que nelas se envolvem. Prova disso é o potencial faturamento de R$ 331 bilhões em caso de venda para a Europa, de toda a cocaína que passa pelo território brasileiro anualmente”. [4]

De acordo com nossa CF, a segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através da, dentre outros órgãos, polícia rodoviária federal (CF artigo 144, II).

A principal competência da PRF é o policiamento das estradas, atuando na fiscalização e combate ao transporte de drogas, furto e roubo de veículos, prevenção de acidentes com fiscalização de condutas perigosas, além de planejamento de operações em períodos especiais, como Carnaval, Natal, ano novo e eleições.

A Lei Etelvino Lins, Lei 6.091, de 15 de agosto de 1974, em seu artigo 5º, dispõe que nenhum veículo poderá fazer transporte de eleitores desde o dia anterior até o seguinte à eleição, ressalvados os que estiverem a serviço da Justiça Eleitoral, coletivos não fretados, serviços de uso individual do proprietário e transporte eventual sem o dolo específico de obtenção do voto.

Define ainda, como crime eleitoral, punido com detenção de 15 dias e 06 meses, mais multa, o descumprimento a esta determinação (art. 11, III). É certo que a Portaria não proíbe esse tipo de fiscalização, mas restringe o exercício de parte da função constitucional e legal típica da PRF e a coloca sob suspeição.

O perigo não reside nos órgãos de prevenção e combate à criminalidade, mas no crime organizado. Pesem os bons propósitos da portaria, ela tem potencial para inibir a fiscalização e combate ao transporte ilegal de eleitores, justamente quando o crime organizado busca a todo custo nesta eleição, penetrar nas estruturas do poder público por meio da compra de votos para eleger vereadores e influenciar no direcionamento de contratos e obras públicas.

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[1] DJE-TSE, nº 167, p. 219-220.

[2] Infiltração do crime organizado na política é ameaça para eleições. Fonte: agênciabrasil.ebc.com.br. Publicado dia 23/09/2024

[3] PCC na eleição: “É bem maior do que eu imaginava”, afirma chefe da inteligência da PM. Fonte: o globo.globo.com/política/eleições 2024. Publicada em 15 de agosto de 2024. Por Aline RIbeiro

[4] Estudo inédito reúne dados sobre reflexos do crime organizado. Fonte: esferabrasil.com.br/artigos. Publicado em 22 de julho de 2024.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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