Opinião

Contra o veto presidencial: Javier Milei e a destruição dos direitos dos aposentados

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30 de setembro de 2024, 11h15

A autoridade a cargo do Poder Executivo assumiu há quase dez meses sua função. Desde então, suas políticas voltaram-se a reduzir, congelar ou desvalorizar o patrimônio dos que menos têm e a aumentar a riqueza dos afortunados. A queda monumental no poder aquisitivo dos salários dos trabalhadores é um instrumento dessa política. Paralelamente, a violação e a deterioração dos proventos dos aposentados e pensionistas é a ferramenta das ferramentas.

A escolha popular de uma autoridade executiva, em eleições autênticas, não confere qualquer competência nem estabelece faculdades para buscar a destruição da Constituição argentina. Esta prevê, desde 1957, a “correção das aposentadorias e pensões”; e, desde 1994, a necessidade de proporcionar o desenvolvimento humano e o progresso econômico com “justiça social”.

A tais normas de raiz constitucional soma-se outra, a “Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos”, que desde 2022 possui hierarquia constitucional; assim, toda pessoa com mais de 60 anos de idade tem direito a uma seguridade social que a proteja para levar uma “vida digna”. Esses são compromissos inalteráveis da República Argentina.

A fim de atenuar a destruição promovida e executada pelo mandatário do Poder Executivo, o Congresso da Nação Argentina aprovou uma lei que estabelece um índice de reajuste, um aumento adicional, um aumento compensatório, uma garantia de patrimônio mínimo e um sistema de atualização das aposentadorias e pensões.

Todos esses benefícios foram devastados pela autoridade executiva em apenas alguns meses de gestão, razão pela qual a maioria dos congressistas reagiu e determinou o respeito às normas de assento constitucional e de hierarquia constitucional mencionadas no parágrafo anterior.

Uma vez aprovada a lei pelo Congresso, o Executivo a vetou (Decreto 782, de 30/8/2024).

Todas as funções constitucionais devem ser exercidas por órgãos públicos. A autoridade executiva é um servidor público no mundo do Direito que emana da Constituição. Não fora dela.

Raúl Gustavo Ferreyra, catedrático da Universidade de Buenos Aires

O processo de poder e o controle que lhe é inerente (no âmbito do qual intervêm diversos órgãos unipessoais ou colegiados) devem se realizar com responsabilidade, dedicação, idoneidade e razoabilidade.

Pura autocracia

O veto, essa atribuição do Poder Executivo de existência muito discutível e de ranços absolutistas, deve ser exercido de acordo com os padrões estabelecidos. Nunca de forma onisciente, porque tal prerrogativa não existe, afinal não há Constituição no mundo que consinta com sua demolição por parte das autoridades públicas encarregadas de seu fiel cumprimento. Tampouco o presidente há de ser onipotente; em uma república democrática, o único poder soberano radica em cada cidadão que faz parte do povo, e sempre com absoluto respeito ao núcleo indestrutível dos direitos humanos.

O veto exercido sobre a política estabelecida pelo Congresso Nacional e sua decisão legislativa sobre os proventos de aposentadoria e pensão é inidôneo e irresponsável; inequivocamente abre, plenamente, a via do controle jurisdicional, de forma ampla e suficiente para pôr fim à injustiça e irracionalidade daquele. Não há o que justifique o expediente subjacente ao veto criticado; ele implica em notável “mau desempenho” [1], porquanto avilta, ainda mais, quem está em inevitável e inadiável processo vital de maturidade crescente.

O veto é inconstitucional; ele pressupõe uma concentração de poderes públicos [2] (e, portanto, a usurpação de vários deles) ao punir impiedosamente os aposentados e pensionistas. Nenhuma eleição popular pode autorizar tamanho dano irreparável. Não há resultado eleitoral capaz de endossar a destruição de direitos fundamentais; se isso ocorresse, não haveria Estado de Direito nem Constituição que sustentasse sua ordenação.

O veto do presidente é pura autocracia, exercida em um flagrante abuso de poder em desacordo com a Constituição. O despotismo presidencial, tal como se está a assistir, fere as bases da democracia constitucional.

* tradução de Gilmar Mendes (ministro do Supremo Tribunal Federal, doutor em Direito pela Universidade de Münster, doutor honoris causa da Universidade de Buenos Aires), que agradece à Carolina Cyrillo e ao Paulo Sávio N. Peixoto Maia pela revisão atenta. Originalmente publicado no periódico argentino Página 12, em 26 de setembro de 2024.

 


[1] N.T.: O artigo 53 da Constituição Argentina prevê o “mal desempeño” como uma das hipóteses de responsabilização política.

[2] N.T.: No original, “supone el ejercicio de una suma del poder público”. O autor refere-se, seguramente, ao artigo 29 da Constituição Argentina, vigente desde 1853, que dispõe: “El Congreso no puede conceder al Ejecutivo nacional, ni las Legislaturas provinciales a los gobernadores de provincia, facultades extraordinarias, ni la suma del poder público, ni otorgarles sumisiones o supremacías por las que la vida, el honor o las fortunas de los argentinos queden a merced de gobiernos o persona alguna (…)”. Pela cláusula proibitiva da concessão da “suma del poder público”, a Argentina proveu uma das mais felizes sínteses, em linguagem articulada, da doutrina da supremacia constitucional. Embora tal cláusula não encontre no português uma expressão que lhe sirva de correspondente perfeito – daí a opção pela perífrase na tradução –, seguramente se afirma que a ideia não é estranha ao direito constitucional brasileiro, cuja noção de rigidez constitucional exige competências indisponíveis e improrrogáveis.

Autores

  • é titular catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires e membro do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional (IDP).

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