Segunda Leitura

O famoso juiz Caprio e os limites do humanismo na Justiça

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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29 de setembro de 2024, 8h00

Francesco Caprio, juiz municipal, presidente do Tribunal de Providence, em Rhode Island, capital do estado com o mesmo nome, nos Estados Unidos, tornou-se famoso por seus julgamentos inusitados e que, com o passar dos anos, passaram a ser exibidos nas redes sociais e viralizaram na internet, alcançando um número gigantesco de admiradores nos EUA e em outros países, inclusive no Brasil [1],

O juiz Caprio nasceu em 24 de novembro de 1936. Seu pai, imigrante italiano, vendia frutas e leite. Estudou em escolas públicas e trabalhou como engraxate. Dava aulas de história e, com elas, pagou o seu curso de Direito na Providence College, uma universidade privada católica, não sendo demais lembrar que nos EUA as universidades são pagas e o ensino básico é público. Advogou por certo tempo e, no ano de 1985, ingressou como juiz no tribunal municipal de Providence, RI. Rapidamente tornou-se conhecido por sua bondade, compaixão pelas pessoas e por ouvir os problemas dos jurisdicionados, tudo isso somado a um bom humor permanente.

Face à inusitada repercussão de seus julgamentos, seu irmão começou a filmar as sessões no tribunal, transmitidas no programa Caught in Providence, pela televisão de Rhode Island e, posteriormente, por organizações mundiais, como a NBC News. Clipes desses programas começaram a ser publicados no Facebook, tornando-se virais, com mais de 500 milhões de visualizações em 2022 e 43,6 milhões de visualizações no You Tube. Para que se tenha uma ideia do alcance de suas decisões, apenas uma delas, intitulada Party Girl, alcançou 2.648.599 pessoas [2].

Caprio afirmava ter aprendido a ter compaixão com seu pai, que pagava as contas de leite dos clientes que estavam em dificuldades, embora sua própria família tivesse poucos recursos. A sua postura pode ser resumida em algumas frases suas, publicadas no site CBS News: “Acho que devo levar em consideração se alguém está doente, se a mãe morreu e se tem filhos famintos”; “Eu não uso um distintivo por baixo da toga. Eu uso um coração por baixo da toga”; “Eu não estou tentando mudar o mundo, mas estou tentando fazer a minha parte” [3].

O tribunal municipal e a jurisdição de Frank Caprio

Frank Caprio foi juiz de primeira instância em um tribunal do seu município, inclusive seu presidente. Poucos no Brasil sabem que nos EUA a unidade judiciária de primeira instância chama-se tribunal e não foro, termo este usado no Brasil. Portanto, Caprio era juiz e diretor do Foro do Tribunal Municipal de Providence.

O Brasil já teve juízes municipais, criados após a Proclamação da Independência pelo Código do Processo Criminal do Império, artigo 5º [4]. Após a Proclamação da República, a Constituição de 1891, nos artigos 55 a 62, previu a existência apenas da Justiça Federal e a dos estados [5]. Todavia, as Constituições estaduais poderiam prever juízes municipais, o que ocorreu em vários estados. Em 1934 a Constituição Federal previu no artigo 63 os órgãos do Poder Judiciário, neles não constando os juízes municipais. Tem-se que a partir dela, ainda que sem previsão explícita, os cargos foram sendo extintos nos estados.

Os juízes municipais tiveram sua competência alterada ao longo do tempo de sua existência, porém ela foi sempre para substituir o juiz de Direito e para julgar ações cíveis e criminais de menor repercussão. Ora eram indicados em listas tríplices, enviadas pelas Câmaras Municipais ao presidente da Província para escolher um, ora pelo voto popular. Era comum aspirantes à magistratura começarem como juízes municipais para depois conseguirem nomeação para juiz de Direito.

Nos Estados Unidos, a Cornell Law School informa que os tribunais municipais americanos têm jurisdição limitada, com autoridade sobre questões como crimes ou pequenas infrações cometidas no município, sendo que as regras que regem o funcionamento são disciplinadas por leis estaduais e variam de estado para estado [6].

Spacca

 

A competência do Tribunal Municipal de Providence era a de julgar casos relacionados com infrações de trânsito e crimes de reduzido potencial ofensivo. Portanto, toda a sua ação deve ser vista sob esse prisma, o que não diminui o seu valor. Mas, evidentemente, sua atuação não seria idêntica em uma Vara especializada em crimes violentos ou lavagem de dinheiro.

A forma de julgar do juiz Frank Caprio

As principais características do juiz Caprio são o interesse pelas pessoas, suas vidas, dificuldades, a compaixão pelos erros cometidos em determinadas situações, a conversa franca e honesta.

Esse tipo de conduta não é único. Como escrevi nesta coluna, Paul Magnaud, magistrado francês, que viveu de 1848 a 1926 e foi presidente do pequeno Tribunal de Château-Thierry, primeira instância, tornou-se conhecido por todos como “o bom juiz Magnaud”. Suas sentenças protegiam os pobres e as mulheres e até hoje provocam acaloradas discussões [7]. No Brasil, com certeza, muitos se conduziram de forma semelhante, sem chegar, porém, a ter a divulgação e o protagonismo dos juízes Magnaud e Caprio.

Centenas de processos decididos por Caprio encontram-se na internet. Mas vale aqui citar dois bons exemplos da sua forma de atuação, com a vantagem de os vídeos estarem com tradução para o português.

Em um julgamento de uma brasileira que cometeu uma infração de trânsito, ele fala sobre a necessidade de o juiz ter compreensão dos fatos, tratar o acusado com dignidade, analisar a pessoa, sua família, seu trabalho, todas as consequências que virão de sua sentença [8].

Em outro julgamento, envolvendo um idoso que, ao dirigir-se para uma consulta médica, atravessou a avenida com o sinal vermelho, ele manifesta o seu reconhecimento pelo fato de o infrator ter lutado no Vietnã. O reconhecimento é raro em nossa sociedade e mais ainda vindo de um juiz [9]. Mas é essencial que se reconheça o valor dos que lutaram por um mundo melhor, não só deles, mas também daqueles que ao nosso lado permitem-nos uma existência digna e segura.

Será fácil conduzir-se de tal forma no Brasil?

Não, absolutamente não. Aqui as dificuldades serão maiores que nos EUA, pois no sistema da common law o juiz tem maior liberdade de julgar de acordo com a realidade dos fatos, os costumes e a tradição. O informalismo e o pragmatismo são a regra e as soluções seguem o bom senso. No Brasil, ao contrário, o formalismo impera e atingiu até os Juizados Especiais.

Ademais, o juiz que envereda por essa via corre o risco de não ser compreendido pelos órgãos de controle, ser visto como um insubordinado. A fama que vier a conquistar também poderá voltar-se contra ele, pois despertará inveja e ciúmes entre os que o rodeiam e os superiores na hierarquia. Há, ainda, o risco de o juiz cair na vulgaridade, no informalismo excessivo, disto resultando falta de respeito das pessoas envolvidas no processo.

A possibilidade de boas intenções naufragarem pode atingir juízes em qualquer parte do planeta. Mas o juiz Caprio tinha a seu favor uma virtude decisiva: a enorme capacidade de exteriorizar suas preocupações sem perder o protagonismo na condução do julgamento ou o respeito à sua condição de presidente do ato. Nisto, evidentemente, tinha a seu favor o respeito que a população tem por seus tribunais, mesmo os da baixa hierarquia, como os municipais.

A habilidade de Caprio e as comunicações pela internet no mundo contemporâneo levaram-no a tornar-se o mais querido e popular juiz da história da humanidade. Nem por isso perdeu a sua simplicidade, o humanismo e o desejo de ajudar o próximo nas suas agruras.

A forma de Caprio julgar deve ser imitada? Sim, suas virtudes devem estar presentes nos que julgam. Mas raros são os que possuem a habilidade de conciliá-las com o dever de ser rigoroso quando necessário.

O humanismo do juiz se exerce realmente na primeira instância

A frase é forte, pode suscitar reações. Ela significa que juízes de tribunais colegiados não podem ser humanos?

Podem sim, obviamente. Mas é na primeira instância que o juiz tem contato direto com as pessoas envolvidas, que as vê, ouve, avalia. No Brasil, na segunda, terceira ou quarta instância, o juiz está diante de um frio arquivo em seu computador. Sentimentos ficam mais distantes. A compaixão pode ser exercida em um ou outro processo, por esta ou aquela decisão. Porém é algo distante, muito tempo depois, sem efeitos na comunidade.

Mas existe agora um fator que dificulta posições humanistas: julgamento virtual. Difundido após a Covid-19, torna-se a cada dia regra e não exceção. Tem virtudes, sem dúvida. Mas tem defeitos que levam a função do juiz a um distanciamento total da comunidade onde vive. Aliás, em uma enorme quantidade de comarcas ou subseções, ele nem vive na comunidade, mas sim em outra cidade a centenas de quilômetros. Nada sabe e nem pretende saber do local em que exerce suas funções virtualmente. Um aparelho de inteligência virtual talvez fizesse o mesmo que o juiz distante, até com mais eficiência.

Conclusão

O juiz Frank Caprio, acometido de doença grave, aposentou-se em janeiro de 2023, com 87 anos de idade. Disseminou nos seus julgamentos amor e fraternidade, sem perder, em um momento sequer, a dignidade do cargo que ocupava. Seu exemplo influenciou não apenas juízes, mas também milhões de pessoas em posição de poder. Ele pode ter a certeza de que contribuiu para um mundo melhor, como era a sua intenção.

 


[1] Wikipedia. Frank  Caprio. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Frank_Caprio. Acesso em 24 set. 2024.

[2]    Caught In Providence. Party Girl. Disponível  em: https://www.youtube.com/channel/UC59KhIPOR0Jj653dC4laEJw/about. Acesso em 24 set. 2024.

[3] CBS News. 80-year-old judge becomes unlikely internet star. Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/frank-caprio-80-year-old-judge-becomes-internet-star-providence/. Acesso em 24 set. 2024.

[4] BRASIL. Código de Processo Criminal do Império. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-29-11-1832.htm. Acesso em 24 set. 2024.

[5]  BRASIL. Constituição de 1891. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/cciviL_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em 24 set. 2024.

[6] Cornell Law School, LII – Legal information institute. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/wex/municipal_court. Acesso em 24 set. 2024.

[7] FREITAS, Vladimir Passos de. O Bom juiz Magnaud. Conheça o juiz que viveu a frente de seu tempo. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 8 de março de 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-mar-08/segunda-leitura-paul-magnaud-juiz-viveu-frente-tempo/. Acesso em 25 set. 2024.

[8] Caughtinprovidence. Disponível em: https://youtube.com/shorts/NJnI0NkxuiM?si=25ipbK_XFEIueakU. Acesso em 25 set. 2024.

[9]  Caughtinprovidence. Disponível em: https://youtube.com/shorts/NJnI0NkxuiM?si=25ipbK_XFEIueakU. Acesso em 25 set. 2024.

 

Autores

  • é professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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