Opinião

Tiranização do debate político: censura e judicialização da proposta legislativa

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29 de setembro de 2024, 11h16

Em tempos em que a “liberdade de expressão” respira por aparelhos na UTI do Judiciário brasileiro, assistimos a mais um capítulo lamentável de censura institucional. O caso de Thiago Medina, candidato a vereador no Recife, nos oferece um espelho do ativismo judicial e da imposição ideológica sobre o debate público. Seu ilícito? Expor publicamente suas ideias conservadoras sobre a utilização de banheiros femininos, em um vídeo no qual promete proibir pessoas trans de frequentarem espaços que não correspondam ao seu sexo biológico.

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sinal de banheiro, transgênero, transexual

A decisão judicial que determinou a remoção do vídeo e a censura prévia é, no mínimo, um ataque frontal à liberdade de expressão, garantida pela Constituição. Essa ingerência do Poder Judiciário sobre o conteúdo de uma propaganda eleitoral levanta a grave questão sobre até onde vai a interferência estatal nas escolhas do eleitor e do legislador. Estamos diante de um Judiciário que, soberbamente, tenta determinar ao Legislativo o que deve ou não ser proposto como política pública.

Um verdadeiro soco no estômago da dita “democracia”.

Não podemos esquecer que essa censura, calcada na Resolução TSE nº 23.610/2019, é apenas uma forma remodelada de controle ideológico. O artigo 22, inciso I, da referida norma, é inconstitucional por ferir o princípio basilar da liberdade de expressão, limitando o debate político do Legislativo, que tem por função primária a representação de perspectivas populares.

A resolução foi concebida para definir regras básicas de propaganda eleitoral, respeitando, sobretudo, as previsões constitucionais e legislativas. Contudo, o artigo 22, inciso I, extrapola seu escopo. Ele busca regulamentar, mas termina por controlar o conteúdo das ideias políticas, o que é uma clara violação à liberdade de expressão. O TSE não tem o poder de legislar, muito menos de interferir em propostas que devem ser discutidas e decididas pela sociedade, por meio de seus representantes eleitos.

Mão pesada

Em situações análogas envolvendo a liberdade política do candidato de apresentar propostas aos seus eleitores, o Tribunal Superior Eleitoral — iluminado por raios de sanidade — já decidiu que a intervenção judicial sobre a difusão de ideias políticas deve ser excepcional e pontual, jamais sistemática e ditatorial (TSE – RP: 060114652, relator: ministro Carlos Horbach).

No caso de Medina, o ativismo judicial, nesse contexto, se apresenta como a mão pesada do autoritarismo. Longe de garantir a harmonia entre os poderes, o Judiciário assume um papel que jamais lhe foi conferido: o de árbitro da moral e da vontade pública. É inadmissível que um poder se sobreponha ao outro, ditando o que pode ou não ser discutido publicamente como proposta legislativa.

Spacca

Esse controle distorce e subverte a ordem social e democrática, pois o Judiciário – uma criação derivada – atreve-se a ditar ao poder constituinte originário – o povo – o que este deve pensar, desejar e discutir. A censura imposta a Medina expõe o abismo civilizacional que a ingerência judicial pode cavar nas fundações da estrutura democrática do país.

George Orwell, com sua habitual lucidez, nos lembra que “se a liberdade significa alguma coisa, será, sobretudo, o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir”. Esta afirmação expõe o cerne da liberdade de expressão: a capacidade de desafiar, provocar e, por vezes, incomodar. A verdadeira prova de uma sociedade – dita “democrática e plural” – não é sua capacidade de proteger discursos confortáveis e consensuais, mas sua disposição de defender o direito de expressar ideias impopulares, controversas e duvidosas.

Infelizmente, a corrupção ideológica, fruto das ideias subversivas plantadas na formação dos juristas modernos, não tolera a proclamada “liberdade para as ideias que odiamos”. Com o debate público estrangulado pela intolerância e pelo arbítrio daqueles que decidem o que pode ou não ser discutido, a construção de ideias se torna refém, e o regime democrático uma mera fantasia.

Biologia como vilã

A teoria de gênero, a qual o Ministério Público e o Judiciário – em muitos casos – parecem blindar de qualquer crítica, é uma construção pós-feminista que nega a biologia em prol de uma agenda ideológica.

Enquanto o feminismo clássico lutava pela igualdade reconhecendo as diferenças entre homens e mulheres, a teoria de gênero prega que a diferença sexual não importa, ou pior, que ela deve ser eliminada. Shulamith Firestone, uma das principais teóricas do movimento feminista radical, em seu livro The Dialectic of Sex (A Dialética do Sexo), de 1970, já afirmava que:

“A meta definitiva da revolução feminista deve ser igualmente — ao contrário do primeiro movimento feminista — não apenas acabar com o privilégio masculino, mas também com a própria diferença de sexos. As diferenças genitais entre os seres humanos já não importariam culturalmente.” [1]

Esta teoria, alardeada como uma “verdade científica incontestável”, carece de qualquer alicerce experimental robusto, enquanto tenta, com ares de iluminismo, reconfigurar a sociedade ao obliterar as referências biológicas de homem e mulher.

A biologia, na sua essência, é agora vista como um vilão a ser extirpado, e o conceito de “gênero”, uma marionete sociocultural volátil, é imposto como dogma inabalável. Judith Butler, principal teórica dessa ideologia, proclama que “o gênero é uma construção cultural; por isso não é nem resultado causal do sexo, nem tão aparentemente fixo como o sexo” [2], ousando afirmar que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino” [3].

A subversão da valoração biológica é patente, e as consequências dessa empreitada podem ser, no mínimo, desastrosas.

No entanto, no grande palco da pós-modernidade, onde a liberdade de expressão deveria ser a estrela, assistimos ao espetáculo grotesco do silenciamento e da censura. O verdadeiro desastre, que já se insinua no horizonte, reside na asfixia do debate sobre a essência da identidade humana. Impor uma teoria sem um exame profundo de suas repercussões não só fragiliza o tecido social, como também erode as bases de uma convivência respeitosa.

Monólogo

Neste cenário, não testemunhamos a aceitação serena de uma ideia após um debate amplo e democrático. Ao contrário, o que se desenrola diante de nossos olhos é o poder estatal erigindo muros ao redor do pensamento, ditando o que deve ou não ser discutido e expressado.

A força do Leviatã moderno não está em proteger o debate, mas em sufocá-lo, transformando o que deveria ser um diálogo vivo em um monólogo autoritário. Assim, a sociedade é relegada ao papel de espectadora passiva, enquanto o poder judiciário escreve, dirige e protagoniza a peça de um futuro incerto e inquietante.

No teatro kafkiano em que se transformou a arena política, a intromissão desmedida do Judiciário não é um fenômeno esporádico, mas uma orquestração meticulosa de ‘situações excepcionalíssimas’ que, somados, pavimentam o caminho para a tirania do pensamento único. É a morte lenta e silenciosa da pluralidade, sufocada pelo jugo implacável da imposição estatal.

Quando um candidato é silenciado, impedido de expressar suas opiniões — por mais controversas que sejam —, assistimos ao prelúdio de um regime autoritário. Neste cenário, apenas as ‘verdades’ admitidas pelo poder podem ser proclamadas, enquanto as vozes dissonantes são relegadas ao ostracismo.

O debate, essência da democracia, é substituído por um monólogo monolítico, onde a diversidade de pensamento é vista não como uma riqueza, mas como uma ameaça a ser neutralizada. Assim, caminhamos, de olhos bem abertos, para a legitimação de um futuro sombrio, onde a liberdade humana é uma lembrança distante e o conformismo, uma exigência inescapável.

O ativismo judicial — essa nova moda que se veste de toga — é um perigo que não pode ser subestimado. Hoje, silenciamos um candidato; amanhã, calaremos uma nação inteira. A liberdade de expressão, já tão ultrajada por resoluções que desafiam a própria Constituição, acaba se tornando o alvo de um Judiciário que se vê acima do pacto social, como se fosse um oráculo infalível.

Thiago Medina, estando certo ou errado, ao compartilhar suas ideias, desempenhou o papel crucial no debate. Contudo, ao ser silenciado, o Judiciário se posiciona não como um árbitro imparcial, mas como o guardião de um novo e capcioso paradigma ideológico.

Em uma democracia autêntica, o único poder legítimo para julgar uma proposta legislativa durante uma campanha eleitoral é o povo. É nas urnas que se decide o destino de ideias e propostas, e não nos gabinetes silenciosos dos tribunais.

Ao desvirtuar essa dinâmica, arriscamos transformar nossa democracia em uma fachada, em que o verdadeiro poder do povo é apenas uma ilusão, e a pluralidade de vozes, um eco distante. É preciso vigiar para que o Judiciário não se torne o arquiteto de um futuro onde o dissenso é crime e a uniformidade, a única lei.

Rumo ao abismo

A censura, essa velha conhecida da humanidade, é sempre o prenúncio de tempos sombrios. É o caminho pavimentado para a ditadura, em que a liberdade de pensamento e expressão é imolada no altar de uma suposta harmonia social. Quando o Judiciário, que deveria ser o guardião da justiça e da liberdade, se torna o advogado de uma ideologia, a democracia corre o risco de se tornar um mero anseio, uma casca vazia em que o verdadeiro poder do povo é apenas uma lembrança distante e ignorada.

Impor limites arbitrários ao debate é, sem dúvida, uma traição ao dito “princípio democrático”. A decisão que censura Medina serve como um aviso contundente: estamos perigosamente próximos de um abismo onde o Estado, sob o pretexto de proteger “minorias”, silencia manifestação de vontade da coletividade.

Portanto, a defesa das minorias não pode — e não deve — ser utilizada como justificativa para calar a voz da coletividade. O equilíbrio entre proteger direitos individuais e preservar a liberdade de expressão é delicado, contudo, essencial. Se permitirmos que a censura se torne a norma, abrimos mão de nossa capacidade de questionar, criticar, debater e, em última análise, evoluir enquanto sociedade. É preciso resistir a essa tendência, defendendo o direito popular de participar plenamente do debate público, sem medo de censura ou represália.

 


[1] FIRESTONE, Shulamith. The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution. New York: William Morrow and Company, 1970.

[2] BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge, 1990.

[3] BUTLER, Judith. Problemas de Gênero, 21ª Ed – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 26.

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