Juros moratórios legais e convencionais com alterações da Lei 14.905/2024
28 de setembro de 2024, 11h22
Diariamente, pessoas físicas e jurídicas celebram contratos privados com o objetivo de estabelecer as condições para a prestação de serviços ou o fornecimento de bens, bem como o preço a ser pago pelo beneficiário. O inadimplemento da obrigação, na forma pactuada, constitui o devedor em mora, de pleno direito, desde que a prestação seja líquida e tenha data certa de vencimento. Alternativamente, a mora poderá ser constituída mediante interpelação extrajudicial ou judicial do devedor [1].
Com a constituição da mora, o credor adquire o direito de exigir do devedor não apenas o cumprimento da obrigação principal, mas também o pagamento de encargos, como a atualização monetária e os juros moratórios, independentemente de prova de prejuízo [2].
A atualização monetária tem como objetivo preservar o valor real da prestação, frente aos efeitos negativos da inflação durante o período de inadimplemento. Os juros moratórios, por sua vez, buscam penalizar o devedor pelo atraso no cumprimento da obrigação.
Embora a legislação preveja as consequências do inadimplemento, é comum que contratos privados não estabeleçam claramente os critérios para aplicação dos encargos moratórios, como os índices da correção monetária e as taxas de juros moratórios aplicáveis sobre o débito principal.
Na ausência de parâmetros convencionados, ensejando omissão contratual, o credor pode recorrer ao Poder Judiciário para a recuperação do crédito. Contudo, nessa hipótese, a condenação observará os critérios legais previstos para os consectários moratórios aplicáveis às dívidas civis.
Antes da promulgação da Lei Federal nº 14.905/2024, nos casos em que não havia previsão contratual do índice de correção monetária, os tribunais comumente aplicavam o INPC/IBGE (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), baseando-se em aplicação, por analogia, do disposto no artigo 2º da Lei Federal nº 6.899/1981 e no Decreto Federal nº 86.649/1981, considerando o INPC como sucessor dos extintos índices ORTN e IPC [3].
Quanto aos juros moratórios, a antiga redação do artigo 406 do Código Civil, que dispunha sobre a taxa de juros legal, foi alvo de intensa divergência jurisprudencial e doutrinária, com duas posições principais:
- (a) os juros legais corresponderiam à taxa Selic;
- (b) os juros legais seriam de 1% ao mês, conforme previsto no artigo 161, § 1º, do Código Tributário Nacional (CTN) [4].
Taxa Selic seria usada no entendimento do STJ
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, prevalecia o entendimento de que os juros legais corresponderiam à taxa Selic, inclusive em regime de recursos repetitivos, resultando nos enunciados dos Temas nº 99 [5] e 112 [6]. No entanto, a controvérsia sobre a taxa de juros legais aplicáveis às dívidas civis persistiu nos anos subsequentes, sendo objeto de novo julgamento sob o rito dos recursos repetitivos (REsp nº 1.795.982).
Diante da insegurança jurídica provocada pela omissão legislativa sobre os critérios aplicáveis e pela divergência jurisprudencial, o Poder Executivo tomou a iniciativa de propor o PL nº 6.233/2023, destinado a alterar o Código Civil para preencher a lacuna normativa. Em 28 de julho de 2024, o texto foi sancionado pela Presidência da República, resultando na Lei Federal nº 14.905/2024, inaugurando novo panorama legal.
A exposição de motivos do referido PL esclarece que os principais fatores que motivaram a reforma foram a intensa divergência jurisprudencial e a inadequação da taxa Selic, que “não remunera o credor adequadamente pelos riscos a que está exposto”, assim como os juros simples de 1% ao mês, que “não responde às condições de mercado, podendo ser relativamente alta ou baixa a depender de aspectos conjunturais” [7].
Com a promulgação da lei, a controvérsia sobre os critérios legais que serão fixados para as condenações envolvendo as dívidas civis foi solucionada, visto que:
- (a) a atual redação do parágrafo único do artigo 389 do Código Civil expressamente estabelece que, na hipótese de não ser convencionada correção monetária, o índice aplicável será o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE); e que
- (b) a atual redação do artigo 406 do Código Civil expressamente estabelece que a taxa legal de juros moratórios, isto é, quando não forem convencionados, corresponderá à taxa Selic, deduzindo-se a atualização monetária que trata o dispositivo citado no item anterior.
Por outro lado, no julgamento mais recente sob o rito dos recursos repetitivos (REsp nº 1.795.982) [8], o STJ ratificou que os juros moratórios legais incidentes para as dívidas civis anteriores à vigência da Lei Federal nº 14.905/2024 será a Selic.
Novas regras para atualização monetária
Os novos critérios legais para a atualização monetária e juros moratórios das dívidas civis passaram a vigorar a partir de 31 de agosto de 2024, nos termos do artigo 5º da nova lei. Até essa data, as dívidas civis continuariam a ser corrigidas pelo INPC e pela taxa Selic, conforme entendimento expressado no julgamento do REsp nº 1.795.982.
Embora não conste expressamente no texto legal, oportuno ressalvar que os novos critérios estabelecidos pela Lei nº 14.905/2024 não poderão retroagir para alterar títulos executivos judiciais, provenientes de condenações transitadas em julgado, em respeito à intangibilidade da coisa julgada, ou do mandamento mais amplo que lhe dá origem, que consiste na segurança jurídica, conforme o artigo 6º da Lindb e o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição [10].
Para aqueles que não tenham interesse em aplicar os critérios legais, obviamente se mantém a liberdade contratual de estipular condições específicas para melhor resguardar os seus interesses. Entretanto, a alteração legislativa impactará os limites que os particulares devem observar no exercício de sua autonomia de vontade, principalmente ao convencionar as taxas de juros moratórios.
Isso porque o artigo 5º do Decreto Federal nº 22.626/1993 (Lei de Usura) veda a estipulação de juros moratórios em taxas superiores a 1% ao mês (12% ao ano) e o artigo 1º do referido decreto veda e pune contratações que estipulem taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal.
Contudo, o artigo 3º da Lei Federal nº 14.905/2024 excluiu determinadas situações da limitação trazida pelo Decreto Federal nº 22.626/1993, autorizando a pactuação de juros superiores ao teto legal quando:
- (a)contratadas entre pessoas jurídicas;
- (b) representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários;
- (c) contraídas perante: i) instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil; ii) fundos ou clubes de investimento; iii) sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito; e iv) organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, que se dedicam à concessão de crédito; ou
- (d) realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários.
A ausência de um teto legal, contudo, não retira o controle sobre condições manifestamente abusivas, considerando que o direito contratual contemporâneo continua orientado pelos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento ilícito.
Além disso, também será necessário aguardar regulamentações e decisões judiciais para verificar a aplicabilidade dessa dinâmica entre pessoas jurídicas e pessoas naturais, oriundas de casos de desconsideração da personalidade jurídica e de responsabilidade solidária e/ou subsidiária da pessoa física.
Regulamentação dos juros moratórios
As alterações legislativas trazidas pela Lei nº 14.905/2024 introduzem importantes mudanças na regulamentação dos juros moratórios convencionais, principalmente ao flexibilizar os limites impostos pela Lei de Usura em determinadas relações jurídicas. Enquanto as obrigações pactuadas entre pessoas jurídicas passam a gozar de maior grau de liberdade para estipulação de taxas de juros, as negociações entre pessoas físicas continuam sujeitas às restrições tradicionais, embora com desafios interpretativos a serem resolvidos pelo Poder Judiciário.
A cautela na elaboração dos contratos e a utilização de cláusulas penais compensatórias poderão ser estratégias eficazes para minimizar riscos e incertezas, garantindo maior segurança jurídica nas relações comerciais.
Ademais, o artigo 406, § 2º, do Código Civil, com a redação dada pela nova lei, atribui ao Conselho Monetário Nacional a incumbência de estabelecer “a metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação”. Diante disso, o Banco Central publicou, em 29 de agosto de 2024, a Resolução CMN nº 5.171, que dispõe sobre a forma de cômputo da “taxa legal” e apresenta a fórmula a ser adotada para a operacionalização dos cálculos.
De acordo com a norma, a fórmula considera os fatores mensais da Selic e do IPCA-15 referentes ao mês anterior ao de referência para o cálculo dos juros, que serão capitalizados na forma simples. Conforme dispõe o artigo 8º do ato normativo, as variáveis da fórmula serão divulgadas pelo Bacen ao primeiro dia útil de cada mês [11].
Paralelamente à divulgação dos primeiros referenciais da Selic e do IPCA, o Bacen já disponibilizou ferramenta que permite a simulação de cálculos de correção de valores por meio da taxa legal, o que pode ser feito pela “calculadora do cidadão” mediante especificação do valor a ser corrigido e dos termos inicial e final [12].
Resta aguardar o posicionamento dos tribunais e eventuais regulamentações adicionais que possam esclarecer a aplicação dessas novas regras, permitindo uma melhor compreensão do alcance e das implicações dessas novas disposições no ordenamento jurídico brasileiro.
[1] Cf. o art. 397 do Código Civil “O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor”, sendo que o parágrafo único complementa afirmando que “não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.”
[2] Cf. o art. 394 do Código Civil “considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.” Em seguida, o art. 395 do Código Civil complementa prescrevendo que “responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários e honorários de advogado”. O art. 407 do Código Civil finaliza dispondo que “Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes”.
[3] AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DÉBITOS JUDICIAIS. CORREÇÃO MONETÁRIA. ÍNDICE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. O entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que, na correção monetária dos débitos judiciais, a utilização do índice INPC é o mais adequado à espécie. Precedentes. 3. Agravo interno não provido. (STJ. AgInt no AREsp nº 1.687.207/RJ. 2020/0078733-6. Terceira Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Data de julgamento: 08/08/2022. Data de publicação: 15/08/2022)
[4] Nesse sentido, o Enunciado 20 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe que “a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês.” Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/666
[5] Tese firmada no Tema 99 do C. STJ: Relativamente aos juros moratórios a que está sujeita a CEF – por não ter efetuado, no devido tempo e pelo índice correto, os créditos de correção monetária das contas vinculadas do FGTS -, seu cálculo deve observar, à falta de norma específica, a taxa legal, antes prevista no art. 1062 do Código Civil de 1916 e agora no art. 406 do Código Civil de 2002. (…) “atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo [art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC”, que “não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=99&cod_tema_final=99
[6] Tese firmada no Tema 112 do C. STJ: A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 do CC/2002 é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=112&cod_tema_final=112
[7] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.233/2023. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para dispor sobre atualização monetária e juros. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2416729
[8] O julgamento se encerrou em 21/08/2024, tendo sido designado o Ministro Raul Araújo para a lavratura do acórdão.
[9] Cf. o art. 6º da LINDB: “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Acrescenta o §3º que “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.
[10] Cf. o art. 5º, XXXVI, da CF: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
[11] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=5171
[12] Disponível em: https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method=exibirFormCorrecaoValores&aba=6
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