Opinião

Execução imediata da pena e termo inicial da prescrição da pretensão executória

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28 de setembro de 2024, 6h04

Ao apreciar o Tema 1.068 da Repercussão Geral [1] e decidir por maioria que a soberania dos veredictos autoriza a execução imediata da pena após o julgamento pelo Tribunal do Júri, o Supremo Tribunal Federal vem sendo alvo de inúmeras e justas críticas.

Luiz Silveira/Agência CNJ

Entre tantas possíveis, nos parece que a principal seria a inegável relativização da presunção de inocência: se ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como admitir a execução automática de uma decisão penal que desafia uma série de recursos, sobretudo com esteio em uma garantia constitucional?

Pouco importa quantos desses reclamos serão providos e, de fato, serão capazes de reverter ou ao menos modificar a condenação. Bastaria que uma pessoa fosse injustamente condenada — e aqui também é preciso destacar a possibilidade de diminuição da pena em eventual novo julgamento — para que se vislumbrasse o perigo dessa interpretação. Não é exagero dizer que, sob a justificativa de acelerar a execução da pena dos culpados, o STF optou por assumir o nefasto risco de punir de inocentes.

Prescrição da pretensão executória

A reflexão que se propõe, contudo, não diz respeito propriamente ao mérito da posição adotada pela maioria do Supremo no julgamento do Tema 1.068, mas, sim, a um dos efeitos dela, que deverá ser enfrentado pela doutrina e jurisprudência pátrias: o termo inicial da prescrição da pretensão executória passa a ser a data do julgamento pelo Tribunal do Júri, em caso de condenação do réu? Explicamos.

Em 4 de julho de 2023 o STF apreciou o Tema 788 da Repercussão Geral [2] e, também por maioria e por interpretação conforme a Constituição, declarou que a locução “para a acusação”, contida na primeira parte do inciso I do artigo 112 do Código Penal, não foi recepcionada pela Carta de 1988. Assim, a prescrição da pretensão executória teria como termo inicial o trânsito em julgado para ambas as partes, e não somente para a acusação, como expressamente afirma o texto legal.

A justificativa adotada pela maioria do Supremo Tribunal Federal é que, se a presunção de inocência obsta a execução da pena do indivíduo que não fora definitivamente condenado, não poderia o Estado ser castigado com o início do decurso do prazo da prescrição da pretensão executória antes do trânsito em julgado para ambas as partes.

Em outras palavras, se não há inércia do órgão acusatório, pois o título condenatório seria, enquanto pendentes recursos da defesa, inexequível, o prazo prescricional só poderia começar a fluir com a constituição definitiva do decreto condenatório, condição de exercício da pretensão executória estatal.

Contradições

Assim, é desde logo curioso notar que o STF reconheceu a extensão conferida por ele próprio à presunção de inocência para determinar que a locução “para a acusação”, contida na primeira parte do inciso I do artigo 112 do Código Penal não foi recepcionada pela Constituição e, pouco mais de um ano depois, ignora sua conclusão [3] para autorizar a execução imediata na hipótese de condenação pelo Tribunal do Júri.

Spacca

A existência de contradições internas é inadmissível para o ordenamento jurídico. O manejo de premissas fundamentais inevitavelmente reverbera e demanda a releitura de normas de mesmo nível hierárquico, bem como das inferiores, sob pena de fazer surgir incongruências fatais à necessária coerência do ordenamento [4].

Acreditamos que um evidente ricocheteio da decisão proferida pelo STF ao apreciar o Tema 1.068 está justamente ligado ao entendimento inovador do Pretório Excelso no Tema 788: se a soberania dos veredictos realmente é capaz de relativizar a presunção de inocência (com o que discordamos, em absoluto), autorizando a execução da pena logo após a condenação pelo Tribunal do Júri, cai por terra a vinculação do termo inicial da prescrição da pretensão executória ao trânsito em julgado para ambas as partes, devendo o Supremo reanalisar o Tema 788 e, por interpretação conforme a Constituição, declarar a recepção da locução “para a acusação”, contida na primeira parte do inciso I do artigo 112 do Código Penal, na exclusiva hipótese de condenação pelo Tribunal do Júri.

Ora, se a soberania dos veredictos de fato autoriza o início da execução da pena aplicada pelo Tribunal do Júri — mesmo que pendentes recursos capazes de anular o julgamento —, então a inércia ou desinteresse do Estado em iniciar a execução deve, sim, sofrer o constrangimento do início do prazo prescricional em questão.

Negar essa conclusão e restabelecer a presunção de inocência como direito fundamental, e não princípio ponderável [5], inevitavelmente obriga a revisitação do Tema 1.068, obstando a execução imediata da pena em caso de condenação pelo Tribunal do Júri.

Em caso de adequação para coerência interna entre os entendimentos adotados, outra situação inusitada já é previsível: sendo proferida ordem judicial para não executar imediatamente a sentença condenatória proferida pelo Tribunal do Júri, os tribunais agora seriam instados a criar — fora das hipóteses legais — nova causa impeditiva da prescrição?

A manutenção desses dois entendimentos pelo STF, da maneira como foram expostos, é contraditória e insustentável, gerando novas margens interpretativas que, pela experiência, acabam sendo sempre in malam partem.

Aumenta-se o indevido uso argumentativo de direitos e garantias fundamentais, historicamente construídos para proteção dos acusados, com a finalidade de rebaixar o grau de garantias no âmbito penal a partir de uma falsa colisão entre direitos fundamentais.

Se no caso da prescrição da pretensão executória a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal) foi invocada para negar parcial vigência ao artigo 112, inciso I, do Código Penal, em clara ofensa ao princípio da estrita legalidade (artigo 5º, incisos II e XXXIX, da Constituição), agora é o princípio da soberania dos veredictos (artigo 5º, inciso XXXVIII, “c”, da Constituição) que afasta a presunção de inocência. A constante iniciativa do Supremo em modificar e reformar as estruturas acaba por colocar todo o edifício em risco.

Evidentemente há muito a ser discutido e trabalhado no que diz respeito aos temas aqui abordados. A coerência do ordenamento jurídico, todavia, é sempre urgente, pelo que se espera que tenhamos em breve uma solução definitiva para as controvérsias levantadas.

 


[1] Leading case: Recurso Extraordinário nº 1.235.340/SC, de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso.

[2] Leading case: Agravo em Recurso Extraordinário 848.107/DF, de relatoria do Min. Dias Toffoli.

[3] No sentido de que o trânsito em julgado para a acusação e para a defesa é condição para o início da execução da pena pelo Estado.

[4] Por todos: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Ari Marcelo Solon; prefácio de Celso Lafer; apresentação de Tercio Sampaio Ferraz Junior. 2. ed. São Paulo: EDIPRO, 2014.

[5] Como afirmou o Min. Gilmar Mendes ao expor seu voto divergente no julgamento do Tema 1.068 (ANGELO, Tiago. Prisão após condenação pelo júri é imediata, independentemente da pena, decide Supremo. CONJUR, 12 set. 2024. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-set-12/prisao-apos-condenacao-do-juri-e-imediata-independentemente-da-pena-decide-stf/>. Acesso em 23 set. 2024).

 

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