Opinião

ANPP: tese fixada pelo STF no HC 185.913-DF e efeito perseverança

Autor

  • Ricardo Alves de Lima

    é advogado inscrito na OAB-SP pós-doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra doutor em Direito pela Fadisp mestre e especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/USP avaliador do Inep/MEC e autor de livros capítulos e artigos jurídicos.

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27 de setembro de 2024, 20h49

No recente julgamento em sede de Habeas Corpus o Supremo Tribunal Federal fixou tese de julgamento quanto à aplicação no tempo do acordo de não persecução penal:

“1. Compete ao membro do Ministério Público oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno; 2. É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado; 3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo; 4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso”. Por fim, o Tribunal definiu que este julgamento não afeta, em nenhuma medida, as decisões já proferidas e, ainda, que a deliberação sobre o cabimento, ou não, do ANPP deverá ocorrer na instância em que o processo se encontrar” [1].

Considerando a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal (ANPP) aos processos penais em andamento que ainda não apresentem trânsito em julgado, conforme se desprende da tese do julgamento, deverá a defesa realizar a análise quanto ao cabimento de sua oferta, se atentando para o fato de que os parâmetros a serem adotados pelo Ministério Público podem vir a se afastar do signo que representa o instrumento de negociação penal.

Para melhor vislumbrar o alcance da tese fixada, por exemplo, um caso concreto em que os fatos narrados na denúncia criminal do processo-crime em andamento ocorreram antes da entrada em vigor da Lei 19.964/2019 em 24/1/2022, na qual foram estabelecidos os requisitos objetivos e subjetivos do ANPP, e, por esse motivo, o representante do Parquet deixou de proceder pela análise e oferta do acordo, apresentando diretamente a denúncia criminal.

Esse processo foi devidamente instruído, e ao final foi proferida sentença condenatória, estando em grau de recurso de apelação criminal, aguardando a decisão do respectivo tribunal quanto à manutenção da condenação, da absolvição do réu, ou do aumento de sua pena.

Neste cenário, nos termos da tese fixada, o MP, de ofício, a pedido da defesa ou por provocação do magistrado, na primeira oportunidade processual depois da publicação da ata do julgamento do STF (20/9/2024), deverá proceder à análise do caso posto, manifestando-se motivadamente quanto ao cabimento ou não do ANPP.

Spacca

A movimentação processual também ficará sob o encargo da defesa que ao analisar o processo-crime em andamento poderá entender pelo cabimento do ANPP, considerando que o réu cumpre os requisitos objetivos e subjetivos previstos no artigo 28-A do Código de Processo Penal, sendo desnecessária a ocorrência da prévia confissão. Por isso, a defesa deverá realizar o pedido de acordo perante o juízo competente, sendo que, em vista o exemplo, apresentará sua petição perante o Tribunal de Justiça.

Quais os elementos cognitivos que o MP deverá analisar para ofertar ou recusar a oferta do ANPP?

A proposta do ANPP deverá tomar por base os elementos informativos da investigação (inquérito policial – IP; procedimento investigatório criminal – PIC), não podendo ser levada em consideração a narrativa da denúncia, sequer a ratio decidendi da sentença criminal condenatória, sob pena de macular o procedimento de negociação pré-processual.

Ademais, se a finalidade do ANPP é evitar a persecução penal, entende-se que ao serem analisadas as condições objetivas e subjetivas, e sendo-o proposto e aceito, os demais elementos produzidos a partir da denúncia não existiriam, sequer a denúncia seria factível, salvo em casos de descumprimento do ANPP e de sua prévia rescisão (§ 10, do artigo 28 do CPP).

A tese fixada pelo STF direciona para o afastamento das ocorrentes manifestações genéricas e negativas que fundamentavam as interpretações limitativas impostas pelo Ministério Público, ocasionando a não oferta do ANPP, as quais já não cabem dentro do sistema penal acusatório, repleto de garantias processuais penais.

Entretanto, a tomada de decisão (manifestação motivada) do MP poderá ser influenciada negativamente ante o contato com os elementos cognitivos colhidos a partir da denúncia. A Teoria da Dissonância Cognitiva de Leon Festinger explica a dissonância cognitiva e o efeito perseverança que afetam diretamente o contexto processual penal [2]:

“A Teoria da Dissonância Cognitiva de Leon Festinger é aplicada ao processo penal, sendo que seu preceito maior se satisfaz pela constante busca por coerência entre ideais e o comportamento social, impactando de forma negativa o processo-crime pelos vieses cognitivos e pré-julgamentos que derrogam de forma consciente ou inconsciente o dever de imparcialidade, atingindo o agir e a tomada de decisão do magistrado e do órgão de acusação que são influenciados pelos efeitos perseverança e correspondência comportamental identificados por Bernd Schünemann” [3].

Notadamente, pelo passar do tempo do trâmite processual, poderá não ser o promotor de Justiça que ofertou a denúncia que analisará o pedido de ANPP, suprimindo-se eventual dissonância cognitiva existente, quiçá mantendo-a, em prejuízo direto à negociação penal.

Marcello Casal JrAgência Brasil

Acaso o representante do Parquet durante a análise do cabimento do ANPP venha a considerar os elementos informativos e processuais colhidos a partir da denúncia até a sentença, ocorrerá um viés cognitivo que impedirá a ampla tomada de decisão que se coadune com as garantias processuais penais do réu, acarretando uma nulidade processual passível de irresignação por parte da defesa.

A fixação da tese pelo Supremo delimitou alguns pontos principais quanto ao requisitos objetivos do ANPP, afastou de vez a imprópria condição da prévia confissão, demarcando o tempo de sua oferta até o trânsito em julgado da sentença condenatória [4], mas por si não é capaz de afastar os pré-julgamentos, o viés cognitivo e o efeito perseverança que será evidente quando o MP encontre soluções criativas para negar a oferta do acordo, fundadas na esperança condenatória da máxima punição, pensamento alicerçado na imagem de salvador da sociedade. Uma distorção cognitiva causada pela verdade inconteste de sua dissonância cognitiva.

 


[1] STF. Pleno. HC 185913 DF. Relatoria ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 18/9/2024. DJE 19/9/2024, publicado em 20/09/2024.

[2] Detalhes da “Teoria da Dissonância Cognitiva de Leon Festinger” poderá ser conhecida e analisada no livro: “LIMA, Ricardo Alves de. Juiz das Garantais: entre a dissonância cognitiva e a presunção de inocência, Londrina: Thoth, 2024.

[3] LIMA, Ricardo Alves de. CDC, ANPP e dissonância cognitiva no processo penal inquisitório. CONJUR, 06/08/2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-06/cdc-anpp-e-dissonancia-cognitiva-no-processo-penal-inquisitorio/. Acesso em: 25 ago. 2024.

[4] Um marco temporal ao qual não aderimos, temática que será objeto de outros estudos.

Autores

  • é advogado inscrito na OAB-SP nº 204.578, pós-doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela Fadisp, mestre e especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/USP, avaliador do Inep/MEC e autor de livros, capítulos e artigos jurídicos.

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