Senso Incomum

Precedentes: qual é o dispositivo mais descumprido no Direito brasileiro?

Autor

26 de setembro de 2024, 8h00

Difícil responder: a dúvida está entre o 489 do CPC (315 do CPP) e o 926 do CPC.

1. O artigo 489, §1º, do CPC — esse desconhecido e rejeitado

Um dos dispositivos que foram introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro (artigo 489 do CPC, espelhado no artigo 315 do CPP) tinha o objetivo de institucionalizar a coerência e a integridade previstos no artigo 926 do CPC. Isto é, o legislador homenageou o artigo 93, IX, da Constituição, que institucionaliza o dever de fundamentar.

Porém, darwinianamente, o dispositivo foi e continua sendo esvaziado pelos tribunais, mormente os superiores. Ao menos materialmente.

É espantoso como até mesmo ocorrem violações de duplo nível, como na hipótese em que a parte (recorrente ou recorrida) invoca o descumprimento do artigo 489 (ou 315, se for da área criminal) e a resposta do Tribunal da Cidadania se dá por meio de uma violação do próprio dispositivo invocado. Nem estou falando dos tribunais em geral.

O que diz o dispositivo?

“1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Leiamos com atenção o dispositivo acima. É uma das grandes conquistas legislativas. São seis incisos que deveriam ter uma função revolucionária. Deveriam… mas estão sendo esvaziados.

2. O que é rediscutir a prova? Será que a Súmula 7 não deveria ser relida de acordo com o artigo 489? Súmula vale mais do que o CPC?

Por vezes dá um riso nervoso quando nos deparamos com decisões fulminadoras de REsp que dizem que a parte quis rediscutir a prova. Só que o tribunal não diz em que parte e por quê. D’onde a própria invocação da Súmula 7 pelo STJ sem qualquer delineamento de fundamentação incorre em um dos incisos do artigo 489 (leiam, por favor, o inciso V do §1º do aludido artigo 489). A menos que o artigo 489 não seja aplicável ao próprio tribunal, o que não me parece ser o caso. Digo isso porque o artigo 1.022 (embargos de declaração) não se aplica, segundo autoproclamação do CNJ, àquele tribunal (ler aqui).

3. Se o legislador criou um dispositivo que exige fundamentação, de que modo podemos admitir que, por vezes, em um mesmo acordão de tribunal superior haja tantas violações desse mesmo dispositivo?

Exemplificadamente: o inciso II do §1º do artigo 489 veda que se use termos indeterminados sem que o tribunal densifique. O que dizer, então, de um acordão que diz que “os embargos são rejeitados porque não é necessário enfrentar todos os argumentos” e que “houve livre convencimento”? Aqui também há violação do inciso IV.

Vejamos um excerto de acordão do STJ que mostra isso:

O magistrado, com base no livre convencimento motivado, pode indeferir a produção de provas que julgar impertinentes, irrelevantes ou protelatórias para o regular andamento do processo, hipótese em que não se verifica a ocorrência de cerceamento de defesa. Precedentes [o acórdão não cita quais] [1].

Spacca

O ponto é: se é REsp, de que modo a parte vai poder enfrentar esse tipo de alegação? Afinal, se no processo de primeiro grau o juiz pode usar livre convencimento e o próprio STJ também pode usar livre convencimento (basta ver o acórdão acima) para examinar a alegação que se insurgiu via REsp, de que modo a parte pode se “defender” disso? O tribunal acaba criando um “sistema fechado” contra o qual não é possível opor resistência. Afinal, como aferir o que é livre convencimento?

4. O cotejo entre julgados em sede de REsp – uma neo-ordália ou “como é possível saber o que está no íntimo do livre convencimento que negou o seu recurso com base exatamente no livre convencimento”?

Outro argumento muito comum: o relator diz que o recorrente (ou agravante) não fez o devido cotejo entre o julgado do tribunal e o precedente invocado. Mas, o Tribunal da Cidadania não diz em que falha o utente incorreu. Assim fazendo, o tribunal viola o inciso III do artigo 489 CPC (ou 315 CPP). Dizer que o recorrente ou agravante deixou de fazer algo ou fez algo indevido sem fundamentar é, para além de violar o dever de fundamentação, fazer um enunciado metafísico.

Isto porque o argumento do “sim” ou “não”, por falta de esmiuçamento e densificação, pode servir para qualquer decisão. Trata-se daquilo que o Círculo de Viena chamava de ausência da Condição Semântica de Sentido, em que afirmar ou negar um enunciado não altera absolutamente nada no universo fenomênico, algo como no exemplo trabalhado por Luis Alberto Warat: chove lá fora pode ser verificado, bastando colocar um sim ou um não; já o enunciado “os duendes se apaixonam na Lua” não pode ser negado. Nem confirmado. Empiricamente não verificável. Algo também como o enunciado “as mulheres são mais higiênicas do que os homens”, como disse uma juíza do RJ em uma sentença para negar o direito de um preso homem preservar seu cabelo. Impossível verificar o enunciado, até porque não existe nem uma teoria geral sobre a existência de duendes e tampouco sobre a higiene feminina ou masculina (ver aqui meu texto
Que tal exigir evidências científicas nas decisões do seu tribunal?). Do mesmo modo, como densificar o enunciado “clamor popular”? Existiria um clamorômetro? Assim também pergunto: de que modo densificar a liberdade de convencimento (sic) que negou o recurso? Ou densificar o argumento “a parte recorrente não fez o cotejo”, mas sem dizer as razões disso? Percebem o que quero dizer?

Se a parte fez o cotejo, de que forma provará o contrário, se o tribunal diz que o cotejo não foi feito, mas não disse o porquê? Trata-se de uma neo-ordália. Uma prova do demônio, impossível de fazer, eis que, pretendendo o recorrente resolver isso por meio de embargos, o próprio tribunal poderá dizer que nada há esclarecer e coisas genéricas desse jaez. E estará criado o argumento Humpty Dumpty, pelo qual é a autoridade que diz o sentido das palavras.

5. Havendo juízo positivo de admissibilidade do REsp no tribunal a quo, de que modo pode o STJ fulminar esse recurso de forma monocrática sem enfrentar os argumentos da admissibilidade? O ônus argumentativo, conforme o inciso VI do artigo 489 do CPC, não é do STJ?

Vejamos a complexidade. Quando a parte possui a seu favor um juízo de admissibilidade positivo no tribunal de piso, há casos em que o Tribunal da Cidadania ignora solenemente a decisão de admissão e, mais do que isso, fulmina o REsp sem nem mesmo contestar uma linha ou palavra do que disse o tribunal de piso. Imaginem, então, que o tribunal de piso tenha, para aceitar o REsp, citado precedentes do próprio STJ.  Como resposta, o STJ julga monocraticamente e não especifica por qual razão, naquele caso (ainda existem casos concretos?) ele, o tribunal, estaria autorizado a não levar ao plenário. Veja-se quantos incisos do artigo 489 (ou 315) são violados. Há uma violação sistêmica por parte do STJ. E também pelo STF. E pelo TST. E pelo STM.

Há casos em que o tribunal, em apreciação de REsp, fulmina-o monocraticamente, dizendo que os embargos (sic) devem ser rejeitados. Isto é, na ânsia e na pressa de rejeitar recursos, por vezes um recorte e cola pode contaminar um julgado, confundindo até mesmo o tipo de recurso. Seria o efeito do uso da inteligência artificial?

A pergunta que cabe é: de que modo o recorrente pode corrigir? Opor embargos? Nesse caso, remeto o leitor para os itens anteriores desta coluna.

6. O problema da divisão entre precedentes qualificados e persuasivos ou “de que modo podem existir precedentes persuasivos”? O uso dos precedentes persuasivos é arbitrário? E são, mesmo, precedentes? Há precedentes desse tipo em outro país do mundo?

E o que dizer de julgado pelo qual se diz que somente precedentes qualificados é que podem ser utilizados para invocar o inciso VI do artigo 489, sendo que o próprio julgado que diz isso não se constitui em precedente qualificado?

Observemos. No AgInt no REsp 2.085.991/SP, foi decidido que:

O artigo 489, § 1º, VI do CPC se refere à necessidade de o julgador realizar fundamentação analítica quando proceder à distinção ou superação de súmulas e precedentes de natureza vinculante, não inserindo-se na norma os precedentes de simples caráter persuasivo.

O problema é duplo. Primeiro, esse julgado não constitui, na linguagem do próprio STJ, um precedente qualificado. Logo, se não constitui um precedente qualificado, como pode ele estabelecer que tipo de precedente pode ser utilizado? Segundo, para dizer que “simples precedentes persuasivos…”, qual é o fundamento para tal? Observe-se o conjunto de violações ao artigo 489.

6.1.  O uso discricionário da distinção persuasivo-qualificado

E essa diferença entre precedentes qualificados e precedentes persuasivos é usada pelos tribunais de maneira um tanto quanto ad hoc. Em uma breve pesquisa sobre precedentes persuasivos no STJ encontrei a decisão do AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 871.076/GO. O julgado ilustra bem o uso discricionário desse argumento pelos tribunais.

O agravo regimental pretendia levar à julgamento do colegiado decisão monocrática proferida pelo ministro relator, em que negara conhecimento a agravo em recurso especial, sob o fundamento de que não houve impugnação específica dos fundamentos da decisão recorrida. Nada de novo. Se vê muito dessas decisões todos os dias.

A agravante sustenta, de sua parte, que enfrentou sim os argumentos da decisão recorrida, decisão essa que se baseara na Súmula 83/STJ para não conhecer do recurso especial (aquela que diz que “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”).

O que importa ressaltar, nesse caso, é o argumento utilizado pelo ministro relator para negar provimento ao agravo. Ele diz que o agravante não conseguiu combater a utilização da Súmula 83/STJ. E que a utilização da Súmula 83/STJ deve ser combatida com o enfrentamento dos fundamentos determinantes do julgado apontado como precedente, ou com a demonstração de que não se aplica ao caso concreto, ou de que há julgados contemporâneos ou posteriores do STJ em sentido diverso. A ausência desses apontamentos, portanto, caracterizaria a ausência de impugnação específica aos fundamentos da decisão recorrida.

E o ministro segue dizendo que a existência de precedentes persuasivos autoriza que: “O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema”.

O ministro diz, ainda, que precedentes persuasivos tem eficácia mínima, e que vinculam horizontalmente, por seus fundamentos determinantes, os ministros relatores de determinado órgão colegiado à jurisprudência nele formada, atendendo às exigências de uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência, conforme o artigo 926, do CPC/2015. Nesse caso, o recurso do agravante somente seria viável se houvesse a possibilidade de distinção em relação ao precedente firmado ou superação do entendimento fixado no precedente (seja vinculante, seja persuasivo) através do enfrentamento de seus fundamentos determinantes.

6.2. Precedentes persuasivos têm eficácia “apenas para negar seguimento”?

Se compararmos as duas “jurisprudências” referidas, podemos observar o interessante cenário contraditório que se criou: os precedentes persuasivos têm eficácia mínima, e vinculam os tribunais, apenas para negar seguimento ao recurso, mas não têm eficácia suficiente para invocar o cumprimento do inciso VI do artigo 489.

Ou seja, o juiz não tem a obrigação de demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, porque somente os precedentes qualificados é que podem ser utilizados para invocar o inciso VI do artigo 489. Mas, contraditoriamente, a defesa precisa, obrigatoriamente, indicar os elementos determinantes e fazer a devida distinção, ainda que o precedente seja persuasivo, sob pena de não estar impugnando especificamente a decisão recorrida, embora a obrigação do inciso VI do artigo 489 seja do tribunal, e não a defesa. Aí fica difícil, não?

O argumento de que só os precedentes qualificados servem para invocar a obrigação de distinção dos elementos determinantes, pelo visto, serve apenas para o juiz. A defesa tem essa obrigação inclusive quando sustenta precedente persuasivo. O que, mesmo que estivesse correto, contraria o que diz a lei.

6.3. Afinal, o que vincula? O que é similitude? A definição é arbitrária?

Para arrematar: há julgados em que o STJ diz que

Para que seja caracterizado o dissídio jurisprudencial, é essencial a existência de similitude fática entre o acórdão recorrido e os julgados apontados como paradigmas [2].

O problema é que há um equívoco no modo de analisar “precedentes” (ler aqui). Isto porque o que vincula em um precedente é a sua ratio, a sua holding. Portanto, não se pode exigir a similaridade fática stricto sensu, porque há casos que não se repetem (o artigo 9º da Recomendação 143 do CNJ aconselha a observância dos precedentes dos tribunais superiores ocorra quando houver, subsequentemente, casos idênticos, ou análogos, que devem ser decididos à luz da mesma razão determinante).

Tenha-se claro que “razão determinante” não exige similaridade stricto sensu. Por isso os inventores dos precedentes no common law estabeleceram que o que vincula é um princípio (holding) que se extrai. Veja-se: não fosse assim, não estaríamos mais aplicando o caso Marbury v. Madison, de 1803. Não é a similaridade que vincula, é o princípio que se extrai do julgado que virou precedente. E é por isso que precedentes não são – e não podem ser – regras gerais e abstratas. Aqui talvez esteja o erro mais grave do precedentalismo brasileiro.

Para ilustrar, trago o seguinte caso – famoso – na Inglaterra, contado por Neil Andrews, que ilustra o sentido do que é ratio decidendi e o que é que vincula em um precedente. Bem singelo. Mas vale registar:

→ Na Londres do século 18 uma prostituta encomendou um vagonete de um artesão e não pagou pelo serviço;

→ O artesão ingressou na justiça cobrando os valores que não haviam sido pagos;

→ O caso chegou à House of Lordsque rejeitou a ação sob o fundamento de que o artesão tinha consciência de que o pagamento seria realizado com recursos de origem ilícita, portanto não era exigível;

→ No século 20 uma empresa fornecedora de aço ingressou com uma demanda de cobrança em face de uma empresa que estava envolvida em contrabando de armas;

→ A House of Lords se valeu do precedente do caso da prostituta e do vagonete para solucionar o caso, aplicando a mesma holding: a empresa não podia se valer do Estado para cobrar valores que sabia serem de origem ilícita.

Tudo isso é muito ilustrativo a respeito de como a incorporação dos institutos do common law é artificial no Brasil: enquanto lá os precedentes são tratados como casos, com a menção às partes nele envolvidas (London Tramways v. London County CouncilRiggs v. Palmer etc.), nós aqui nos referimos a precedentes como números de processos. Perde-se o “é da coisa”.

Em síntese, o que estou trazendo a quem lê esta hebdomadária coluna é a simples constatação de como não é fácil a vida dos causídicos de terrae brasilis (agora agravada com a restrição de sustentações orais a partir de emenda regimental – assunto que abordarei em breve). Diz-se que há uma cultura de precedentes ou sistema de precedentes (a cada dia surge mais um livro sobre o tema). Porém, o dispositivo mais descumprido é exatamente aquele que veio para aprofundar a exigência do que sustenta qualquer sistema de precedentes: o dever de fundamentação e o distinguishing. Os exemplos são intermináveis.

Cada um(a) que ler a coluna deve ter no mínimo um caso em que ou foi surpreendido por julgamento monocrático ou não conseguiu demonstrar justamente aquilo que era o foco do recurso e que o tribunal, descumprindo um dispositivo legal, descumpre-o em duplo nível.

O problema se agrava quando se percebe que a doutrina se queda silente. Fez uma opção preferencial pela jurisprudencialização. É o caminho mais fácil. Por isso tanta gente virou especialista em comentar acórdãos. Engenheiros de obra pronta. Para fazer profecias sobre o passado.

 


[1] AgRg no REsp n. 1.196.519/MS, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 23/6/2015, DJe de 4/8/2015.

[2] AgInt no REsp n. 2.032.438/MG, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!