Opinião

Pagers e a resiliência do Direito Internacional Humanitário em tempos de guerra

Autor

  • Arthur Eduardo Santos Leone

    é consultor legislativo do Senado para Direito Internacional Relações Internacionais e Defesa Nacional advogado graduado em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e pós-graduado em Direito Público e Direitos Humanos pela Faculdade Legal Experiência.

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26 de setembro de 2024, 6h33

A comunidade internacional tem sido cocainizada por uma ilusão: a de que o Direito Internacional dos conflitos armados não está sendo desrespeitado.

Gold Apollo

Após a explosão de milhares de pagers e walkie-talkies no Líbano, que deixou milhares de feridos e ao menos 39 mortos, os detalhes sobre a execução dessa operação ainda estão sob investigação. O grupo armado Hezbollah, que teve seus membros e sistemas de comunicação como alvo do ataque, responsabilizou Israel pelo incidente.

Especialistas afirmam que, para causar danos na escala observada, é provável que os dispositivos tenham sido equipados com explosivos antes de chegarem às mãos dos membros do Hezbollah.

Esses ataques representam um novo avanço na guerra, em que ferramentas de comunicação se transformam em armas, explodindo simultaneamente em mercados, esquinas e lares enquanto a vida cotidiana se desenrola. As autoridades teriam desmantelado dispositivos não detonados em universidades, bancos e hospitais.

Classificações

Independentemente de quem tenha sido o autor da ação, é um fato que a comunidade internacional testemunhou mais uma violação do Direito Internacional dos Conflitos Armados.

A doutrina costuma classificar o Direito Internacional dos Conflitos Armados em quatro categorias: o Direito de Genebra, responsável por proteger civis e não combatentes (feridos); o Direito de Haia, que regula os meios e métodos de guerra; o Direito de Nova York, que aplica normas de direitos humanos em tempos de conflito armado; e o Direito de Roma, um conjunto de normas que visa a punir violações do Direito Internacional Humanitário, sendo o Estatuto de Roma seu principal instrumento normativo.

Nesse contexto, as explosões ocorridas no Líbano violam o Direito de Genebra. O artigo 3(1)(a), comum às quatro Convenções de Genebra, estabelece que as pessoas que não participam diretamente das hostilidades, incluindo membros de forças armadas que tenham deposto as armas e pessoas fora de combate por enfermidade, ferimento, detenção ou qualquer outra causa, devem ser tratadas com humanidade em qualquer circunstância, sem distinção desfavorável baseada em raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento, fortuna ou qualquer outro critério análogo.

Para esse fim, estão proibidos, em qualquer momento e lugar, em relação a essas pessoas: a) atentados à vida e à integridade corporal, notadamente homicídio sob qualquer forma, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios.

Princípios fundamentais

Para cada parte envolvida neste e em qualquer outro conflito armado, a distinção fundamental entre alvos civis e militares deve estar em primeiro plano.

A Corte Internacional de Justiça, na Opinião Consultiva sobre a Legitimidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares, de 8 de julho de 1996, afirmou que o princípio da distinção é um dos princípios cardinais do direito internacional humanitário.

Nesse sentido,  devem ser tomadas todas as precauções viáveis para proteger os civis, e os ataques devem ser proporcionais ao dano mais amplo que causam [1].

Spacca

Os princípios fundamentais contidos nos textos que constituem a base do direito humanitário são os seguintes: o primeiro visa à proteção da população civil e de objetos civis, estabelecendo a distinção entre combatentes e não combatentes. Os estados nunca devem tornar os civis o alvo de ataques e, consequentemente, nunca devem usar armas incapazes de distinguir entre alvos civis e militares.

De acordo com o segundo princípio, é proibido causar sofrimento desnecessário aos combatentes; assim, é proibido usar armas que causem esse tipo de dano ou que agravem inutilmente seu sofrimento. Em aplicação desse segundo princípio, os Estados não têm liberdade ilimitada na escolha dos meios que utilizam em suas armas.

Os ataques constituem uma série de violações ao Direito de Haia, que por sua vez tem origem na Declaração de São Petersburgo de 1868, que pretendia proibir o uso de projéteis explosivos e inflamáveis. Sua gênese, contudo, se dá com as Conferências de Paz de Haia de 1899 a 1907 e com o Protocolo de Genebra de 1925 sobre a proibição do uso de gases tóxicos em guerras.

No que se refere às violações do Direito de Haia, é importante ter em mente que os métodos de guerra devem ser guiados pelos seguintes princípios: o Princípio da Humanidade, que busca evitar sofrimento desnecessário; o Princípio da Necessidade, que determina que ataques devem corresponder a objetivos militares; e o Princípio da Proporcionalidade, que estipula que os efeitos colaterais não devem ser desproporcionais à vantagem militar.

O Protocolo Adicional I, de 1977, é o grande responsável por unir o Direito de Genebra e o Direito de Haia.

Visualiza-se, de plano, violações ao artigo 41, o qual estabelece que nenhuma pessoa poderá ser atacada enquanto estiver fora de combate; ao artigo 48, que estabelece a norma fundamental, o Princípio da Distinção entre a população civil e os combatentes, os bens civis e os objetivos militares, bem como ao artigo 51, que afirma que a população civil goza de proteção geral contra os perigos decorrentes de operações militares, sendo proibidos os ataques indiscriminados.

Também houve violação ao artigo 77, o qual prevê proteção especial às crianças em conflitos armados, uma vez que o ataque resultou em mortes infantis.

Conclusão

O ataque simultâneo a milhares de indivíduos, sejam eles civis ou membros de grupos armados, sem conhecimento sobre quem possuía os dispositivos-alvo, sua localização e o entorno no momento do ataque, infringe o Direito Internacional dos Direitos Humanos e, quando aplicável, o Direito Internacional Humanitário.

É difícil imaginar como, nessas circunstâncias, tais ataques poderiam respeitar os princípios fundamentais de distinção, proporcionalidade e necessidade, conforme estabelecido pelo Direito Internacional Humanitário. Se quem ataca não consegue avaliar se o ataque está em conformidade com as regras vinculativas do Direito Internacional, especialmente em relação ao impacto potencial sobre os civis, então o ataque não deve ser realizado.

 


[1] TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Legalidade da Ameaça ou do Uso de Armas Nucleares: Opinião Consultiva. Haia, 8 jul. 1996. Disponível em: https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/95/095-19960708-ADV-01-00-EN.pdf. Acesso em: 23 set. 2024.

Autores

  • é consultor legislativo do Senado para Direito Internacional, Relações Internacionais e Defesa Nacional, advogado, graduado em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e pós-graduado em Direito Público e Direitos Humanos pela Faculdade Legal Experiência.

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