Opinião

Integração de critérios ESG e dever fiduciário nas decisões de investimento

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24 de setembro de 2024, 21h25

A incorporação de critérios ambientais, sociais e de governança (ESG) nas decisões de investimento tem ganhado cada vez mais importância, gerando debates sobre sua compatibilidade com os deveres fiduciários. Tradicionalmente, os administradores priorizam a maximização dos retornos financeiros, mas o aumento de investimentos sustentáveis tem desafiado esta tendência.

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Embora seja nosso entendimento que a integração de fatores ESG está alinhada com os deveres fiduciários, quando considerados juntamente com os objetivos financeiros de longo prazo, tal integração, de fato, representa desafios jurídicos e econômicos, principalmente em relação à avaliação de desempenho financeiro e às obrigações dos gestores de fundos perante os cotistas do fundo.

E, embora historicamente, o dever fiduciário está atrelado à maximização dos retornos financeiros, um conceito frequentemente vinculado a ganhos de curto prazo (Doutrina Friedman[1]), a contemporânea integração dos critérios ESG (ambientais, sociais e de governança) às decisões de investimento representa uma mudança significativa tanto para a governança corporativa, quanto para as responsabilidades fiduciárias.

Entretanto, como toda mudança de paradigma, enquanto falamos de integração dos critérios ESG às estratégias de investimento, novas questões são colocadas em debate. Podem os administradores e gestores de fundo considerar critérios ESG sem violar suas obrigações? Como esses critérios afetam o desempenho financeiro no longo prazo?

Dever fiduciário: arcabouço jurídico e implicações

Vale pontuar, que o dever fiduciário é a obrigação legal imposta ao administrador ou gestor, quando em posições de confiança, para agir no melhor interesse dos cotistas do fundo, ou conforme Modesto Carvalhosa[2], o dever fiduciário do administrador:

(…) decorre de sua situação jurídica do poder (orgânico e não mandato) de dispor de bens alheios – os da companhia – como um proprietário, em decorrência do exercício da gestão da companhia, que lhes advêm da Lei e do Estatuto Social. Assim dispondo a Lei Societária, o administrador é revestido do dever fiduciário, que decorre do poder de gestionar a sociedade, cabendo-lhe fazê-lo visando a realização do seu objeto, atendida a sua função social (art. 154).

Desta feita, espera-se que administradores e gestores de fundo atuem com prudência e lealdade, focando na maximização dos retornos e minimização dos riscos. Nos Estados Unidos, por seu turno, esse padrão é estabelecido pelo Employee Retirement Income Security Act of 1974 (ERISA) [3] que impõe estritos deveres de lealdade e cuidado aos administradores e gestores de fundos, que deverão “desempenhar suas funções em relação ao plano exclusivamente no interesse dos participantes e beneficiários, e”:

(A) com o propósito exclusivo de: (i) proporcionar benefícios aos participantes e seus beneficiários; e (ii) cobrir as despesas razoáveis de administração do plano;

(B) com o cuidado, a habilidade, a prudência e a diligência que, nas circunstâncias então existentes, um homem prudente, atuando em uma capacidade similar e familiarizado com tais assuntos, empregaria na condução de uma empresa de caráter e objetivos semelhantes;

(C) diversificando os investimentos do plano de forma a minimizar o risco de grandes perdas, a menos que, nas circunstâncias, seja claramente prudente não o fazer; e

(D) em conformidade com os documentos e instrumentos que regem o plano, na medida em que tais documentos e instrumentos sejam consistentes com as disposições deste título e do título IV. (tradução livre)

Ou seja, o dever fiduciário determina que administradores e gestores devem no melhor interesse do Fundo e seus cotistas devendo agir com prudência, lealdade e diligência, sendo que, nos Estados Unidos, exige-se ainda que os administradores e gestores atuem com extrema cautela e foco no interesse dos cotistas, expressamente adotando práticas que minimizem riscos e maximizem retornos.

ESG e dever fiduciário: desafios de compatibilidade

Entretanto, a integração dos critérios ESG desafiam as regras fiduciárias tradicionais ao agregar fatores não financeiros, tais como riscos climáticos, responsabilidade social e práticas de governança, nas decisões de investimento.

E, se por um lado, os defensores do ESG afirmam que a integração destes critérios melhora o desempenho financeiro de longo prazo ao mitigar riscos e capitalizar oportunidades sustentáveis, os críticos afirmam que priorizar ESG em detrimento de ganhos imediatos pode violar as obrigações fiduciárias, comprometendo o retorno de curto prazo.

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Veja, por exemplo, o problema das mudanças climáticas, que podem representar riscos significativos, incluindo interrupções nas cadeias de suprimentos e aumento de custos regulatórios entre outros, que podem significar riscos financeiros consideráveis. Ao integrar critérios ESG às atividades econômicas, cria-se a oportunidade para que as empresas gerenciem esses riscos de forma proativa e, potencialmente, superem concorrentes que negligenciam tais fatores.

A expectativa é que os investimentos ESG, embora possam apresentar desempenhos inferiores no curto prazo, possam alinhar-se ou superar os índices de mercado no longo prazo.

Equilibrando ESG e responsabilidades fiduciárias

Dentro deste cenário, os administradores e gestores de fundos devem navegar por um arcabouço legal complexo para que possam integrar o ESG em suas estratégias de investimento.

Em jurisdições como os Estados Unidos, onde o dever fiduciário enfatiza a primazia dos acionistas, administradores e gestores enfrentam potenciais desafios legais se priorizarem o ESG em detrimento dos retornos financeiros. Em países europeus, por outro lado, onde os interesses dos stakeholders são considerados, a integração do ESG é mais facilmente alinhada às obrigações fiduciárias.

Para mitigar os riscos legais, os administradores ou gestores devem garantir que os investimentos ESG sejam justificados por benefícios financeiros, como a melhoria dos retornos ajustados ao risco. A regra da prudência, que orienta as ações fiduciárias, exige que administradores e gestores avaliem os fatores ESG com o mesmo rigor que aplicam aos critérios financeiros tradicionais.

O que impõem uma mudança na forma como o desempenho financeiro é medido. As métricas financeiras tradicionais podem não capturar totalmente os benefícios de longo prazo dos investimentos sustentáveis, de forma que novos frameworks para avaliar o impacto do ESG no desempenho das empresas investidas se faz necessário.

A adoção de normas como o IFRS S1 e S2, que enfatizam a divulgação de informações de sustentabilidade, pode ajudar a preencher essa lacuna. Essas normas fornecem às empresas diretrizes sobre como divulgar riscos e oportunidades relacionadas ao ESG, oferecendo aos investidores maior transparência e auxiliando os administradores e gestores na tomada de decisões.

Normas de transparência e prevenção de conflitos

O Brasil, de forma pioneira, promulga a Resolução CVM 193/2023, institucionalizando as normas IFRS S1 e IFRS S2, que representam um importante marco regulatório e um passo na melhora na transparência e gestão das informações de sustentabilidade no Brasil.

As normas IFRS S1 e S2, que no Brasil serão denominadas CBPS 1 e 2, têm como intuito padronizar a divulgação das informações financeiras e pré-financeiras relacionadas à sustentabilidade, tornando-as claras, comparáveis e consistentes na busca de um mercado global mais transparente e confiável.

(…)

As normas IFRS S1 e S2, incorporadas na regulação brasileira pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), muito provavelmente são as primeiras de uma série de regulamentações futuras que poderão abranger questões relacionadas à biodiversidade e direitos humanos. (IBGC – Guia para conselheiros: normas de sustentabilidade IFRS S1 e S2)

Assim, a IFRS S1 trata da divulgação de informações sobre sustentabilidade, saúde e segurança, governança corporativa, entre outros que impactam as operações das empresas, que deverão fornecer dados de sustentabilidade integrados com os relatórios financeiros, assegurando que os investidores compreendam como os riscos ambientais e sociais influenciam os resultados financeiros. O objetivo é trazer maior transparência e confiabilidade aos stakeholders na gestão das empresas, tendo como efeito secundário a prevenção de práticas como o greenwashing, que é o fornecimento de informações imprecisas ou exageradas sobre iniciativas sustentáveis.

A IFRS S2, por seu turno, foca na divulgação de informações acerca das emissões de gases de efeito estufa (GEE) e como as empresas deverão lidar com os riscos climáticos, orientando as empresas a apresentarem seus planos de transição para uma economia de baixo carbono e indicando metas de redução de emissões e estratégias para adaptar os negócios às mudanças climáticas.

A expectativa é que o impacto das normas IFRS S1 e S2 nas operações e nas finanças das empresas, a curto, médio e longo prazo e o incremento na transparência na divulgação das informações tenha um efeito positivo na mitigação de potenciais litígios ao fornecer dados sólidos para avaliação dos investidores.

A Resolução CVM 193, por seu turno, estabelece um cronograma para a adoção das normas internacionais pelas organizações brasileiras, que terão a opção de aderir voluntariamente aos padrões internacionais a partir de 2024, com a obrigação de conformidade a partir de 2026. O que dará um período de transição que permitirá as organizações a se adaptarem às novas exigências e promover a transparência, uma das pedras angulares do movimento ESG.

A clareza e padronização das informações permitirão uma melhor análise comparativa entre as organizações de diferentes setores e jurisdições, trazendo ainda a possibilidade de se comparar o desempenho em sustentabilidade de diferentes organizações, o que se entende imprescindível para os investidores, pois lhes permite tomar decisões informadas e alinhadas com seus valores e metas.

É que a transparência é um pilar fundamental do movimento ESG, e a Resolução CVM 193 reforça esse princípio, ao estabelecer que as organizações arquivem seus relatórios de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade por meio de um sistema eletrônico disponível na página da CVM, contribuindo para a acessibilidade das informações e garantindo que as empresas cumpram com suas obrigações de divulgação de maneira confiável.

Desta feita, espera-se que as empresas sigam diretrizes rigorosas para relatar seus riscos e oportunidades ESG, pois as informações fornecidas serão mais confiáveis e estarão sujeitas à verificação por auditorias externas. O papel da CVM 193/2023 também é crucial para prevenir abusos no Brasil, alinhando o país com padrões internacionais e obrigando as empresas a relatarem suas iniciativas de sustentabilidade de forma clara e auditável até 2026.

Conclusão

A análise acerca da incorporação dos critérios ambientais, sociais e de governança (ESG) nas decisões de investimento e sua compatibilidade com o dever fiduciário revela que os administradores e gestores de fundos podem, sim, considerar esses critérios sem violar suas obrigações fiduciárias, desde que o façam com prudência e diligência, e com o objetivo de maximizar os retornos financeiros de longo prazo.

A noção de que a consideração de fatores ESG poderia comprometer as obrigações fiduciárias encontra oposição nos estudos recentes e no arcabouço legal de diversas jurisdições, que veem na integração desses critérios uma forma de mitigar riscos e garantir a sustentabilidade dos investimentos. Portanto, não há incompatibilidade inerente entre ESG e as obrigações fiduciárias, desde que as decisões de investimento sejam justificadas por uma avaliação sólida dos benefícios financeiros.

Quanto ao impacto dos critérios ESG no desempenho financeiro de longo prazo, há uma crescente evidência de que a inclusão desses fatores pode melhorar o desempenho ajustado ao risco.

O foco em ESG pode levar à mitigação de riscos relacionados às mudanças climáticas, à responsabilidade social e à governança corporativa, proporcionando vantagens competitivas às empresas que adotam tais práticas. Embora o desempenho financeiro de curto prazo possa ser afetado em alguns casos, o alinhamento com critérios ESG tende a gerar benefícios substanciais no longo prazo, contribuindo para a resiliência das empresas e dos fundos de investimento em mercados dinâmicos e complexos.

Em síntese, o equilíbrio entre o dever fiduciário e a integração de fatores ESG é não apenas possível, mas essencial para a promoção de práticas de investimento que sejam simultaneamente financeiramente viáveis e socialmente responsáveis. A evolução das normas de transparência, como a Resolução CVM 193/2023 no Brasil, reflete esse movimento global e contribui para a criação de um ambiente de negócios mais robusto e sustentável, beneficiando tanto os investidores quanto a sociedade como um todo.

Referências

BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Resolução CVM nº 193, de 11 de julho de 2023. Dispõe sobre a divulgação de informações relacionadas à sustentabilidade. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 jul. 2023.

CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas (arts. 138 a 205). 6. Ed. São Paulo; Saraiva, 2014. v. 3, p. 369.

FRIEDMAN, Newton. A Friedman doctrine‐- The Social Responsibility Of Business Is to Increase Its Profits – The New York Times in: https://www.nytimes.com/1970/09/13/archives/a-friedman-doctrine-the-social-responsibility-of-business-is-to.html – acessado em 05/02/2024

INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA – IBGC. Guia para conselheiros: normas de sustentabilidade IFRS S1 e S2. São Paulo: IBGC, 2024.

UNITED STATES. Social Security Act. Washington, D.C.: U.S. Government Publishing Office, 2023. Disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/COMPS-896/pdf/COMPS-896.pdf. Acesso em: 20 set. 2024.

 


[1] FRIEDMAN, Newton. A Friedman doctrine‐- The Social Responsibility Of Business Is to Increase Its Profits – The New York Times in: https://www.nytimes.com/1970/09/13/archives/a-friedman-doctrine-the-social-responsibility-of-business-is-to.html – acessado em 05/02/2024“(…) there is one and only one social responsibility of business—to use its resources and engage in activities designed to increase its profits so long as it stays within the rules of the game, which is to say, engages in open and free competition without deception fraud.”

[2] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas (arts. 138 a 205). 6. Ed.

São Paulo; Saraiva, 2014. v. 3, p. 369.

[3] UNITED STATES. Social Security Act. Washington, D.C.: U.S. Government Publishing Office, 2023. Disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/COMPS-896/pdf/COMPS-896.pdf. Acesso em: 20 set. 2024.

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