Opinião

Modelo de processo acusatório e os limites de atuação probatória do juiz

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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23 de setembro de 2024, 19h42

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da 5ª Turma, entendeu que a “decisão judicial de afastamento do sigilo de dados telemático proferida por período mais amplo do que o período requerido pelo Ministério Público na representação” não é nula, ante a possibilidade de o juiz decretar a medida de ofício, nos termos do artigo 3º da Lei nº 9.296/96, não ficando o magistrado, portanto, adstrito ao pedido formulado pela parte [1].

Ocorre que o Código de Processo Penal, com a redação estabelecida pela Lei nº 13.964/2019, buscando-se adequar ao modelo acusatório de processo adotado pela Constituição de 1988, caracterizado pela separação entre os papéis de acusar, defender e julgar, estabelece:

“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.” (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Mesmo com essa nova redação normativa, o Código de Processo Penal continua prevendo que:

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Como conciliar esses dois dispositivos, principalmente com a ideia de separação de papéis no Processo Penal no Brasil (funções de acusar, defender e julgar exercidas por atores diversos), decorrente do modelo acusatório?

Princípio acusatório em perspectiva

Em outras oportunidades [2] [3], já discorremos sobre o princípio acusatório, que é a base de sustentação do modelo acusatório de processo. Esse princípio se funda em uma estrutura processual baseada na diferenciação entre o criador (acusador) e a criação (acusação) [4].

O princípio acusatório pode ser enquadrado como formal ou material. Em ambas as espécies há a diferenciação entre o acusador e o julgador (elemento acusador — criador), divergindo, porém, no elemento criação (acusação).

Spacca

O princípio acusatório será material “sempre que não houver qualquer espécie de interferência judicial na atividade para que a ação penal seja oferecida, ou então para que ela tenha o conteúdo que o juiz entenda correto” [5].

Por outro lado, o princípio acusatório, sob uma perspectiva formal, é “decorrente de uma clara preocupação do julgador com a existência ou conteúdo de uma acusação no processo, ao invés de primar pela independência do julgador frente ao Poder Judiciário” [6].

No princípio acusatório formal, há vinculação entre o órgão de acusação e o julgador, ocorrendo separação apenas sobre o aspecto formal.

A observância do princípio acusatório, sob uma perspectiva material, passa pela delimitação do conteúdo da demanda criminal exclusivamente pelas partes. Eventual decisão que extrapole, fique aquém, ou seja divergente do especificado pelo autor (Ministério Público) na inicial resultará em uma decisão ultra, extra ou citra petita.

Princípio e CPP

E como fica o artigo 156, inciso II do Código de Processo Penal? Fere materialmente o princípio acusatório?

O juiz, no curso da persecução penal, investigativa e/ou processual, poderá buscar o esclarecimento do conteúdo da demanda persecutória, respeitando os limites estabelecidos pelo órgão de persecução. Ou seja, não há qualquer incompatibilidade entre o artigo 156, II do Código de Processo Penal com o princípio acusatório material, desde que sejam respeitados os limites estabelecidos pelo órgão de persecução.

Eventuais diligências determinadas de ofício pelo juiz no curso da persecução não ferem o princípio acusatório, pois o criador do conteúdo é o órgão de persecução. O juiz busca apenas aclarar/entender esse conteúdo previamente delimitado.

Desse modo, uma decisão judicial, proferida em uma cautelar de afastamento do sigilo de dados telemático, estabelecendo um período mais amplo do que o período requerido pelo Ministério Público na representação, além de ser ultra petita, fere materialmente o princípio acusatório, pois está ampliando o conteúdo da acusação, quando poderia no máximo buscar aclarar o conteúdo previamente determinado pelo órgão de persecução.

 


[1]“Crime de associação para o tráfico. Crime de organização criminosa. Afastamento do sigilo dos dados telemáticos. Nulidade da decisão de deferimento da medida por ser ultra petita. Inocorrência. Lei n.º 9.296/96 que autoriza interceptação de ofício pelo juiz. Agravo que se nega provimento.

  1. Decisão judicial de afastamento do sigilo de dados telemático proferida por período mais amplo do que o período requerido pelo Ministério Público na representação.
  2. Agravante argumenta que a decisão é nula por ser ultra petita e, por consequência, a prova dela decorrente é ilícita.
  3. Inocorrência da nulidade. O art. 3.º da Lei n.º 9.296/96, utilizada para fundamentar o pedido e a decisão de afastamento do sigilo de dados telemáticos, autoriza que a medida seja determinada pelo juiz de ofício. Logo, se não há exigência de que o magistrado, em sua decisão, fique adstrito ao pedido da parte, pois pode determinar de ofício, não há que se falar em nulidade por decisão ultra petita.”
  4. Agravo regimental que se nega provimento. (Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus n.º 168.053-SC, STJ, 5.ª Turma, Rel. Ministra Daniela Teixeira, julgado em 15.8.2024, publicado no DJ em 19.8.2024).

[2] https://www.conjur.com.br/2024-fev-26/o-artigo-385-do-cpp-e-o-modelo-acusatorio-de-processo/

[3] https://www.conjur.com.br/2024-fev-26/o-artigo-385-do-cpp-e-o-modelo-acusatorio-de-processo/

[4] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2.ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 265.

[5] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2.ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 267.

[6] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2.ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 267.

Autores

  • é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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