Constitucionalidade das solicitações de solução consensual no TCU
22 de setembro de 2024, 6h36
Nos últimos anos, o TCU (Tribunal de Contas da União) houve por bem investir na adoção de instrumentos consensuais de controle. Cuida-se do que se pode chamar de controle consensual, por assim dizer, no sentido de que no lugar de formas impositivas, repousadas na lógica do comando e controle, fortificaram-se as técnicas consensuais, dialógicas de fiscalização da administração pública.
Tal se deu sobretudo pela constituição de uma secretaria específica para estudar e fomentar a consensualidade nos processos de controle externo — a SecexConsenso. Além dela, foi aprovada a IN nº 91/2022, que instituiu a chamada Solicitação de Solução Consensual (SSC) [1].
As SSCs consistem em um mecanismo mediante o qual os entes públicos previstos no normativo podem propor que determinado problema que seja objeto de processo no TCU seja solucionado por intermédio da celebração de um acordo.
Esse é o ponto de partida que dá início a um novo processo no qual, grosso modo, é analisada a admissibilidade da demanda, um relator é designado, eventuais particulares interessados são ouvidos, sugerem-se alternativas para a solução do conflito, etc., até chegar no momento em que o plenário do TCU chancela, ou não, o acordo apresentado entre os evolvidos.
A vantagem em relação a outras formas alternativas de resolução de conflitos administrativos, como arbitragens, conciliações, mediações, dispute boards ou decisões coordenadas é que as SSCs ostentam selo de qualidade do controlador. Ou seja, em princípio, haveria um risco menor de o controlador vir a questioná-lo em momento futuro considerando que ele próprio consentiu com ela. Daí porque as SSCs apresentam-se como instrumentos de controle consensual de grande proeminência para o Direito Administrativo atual [2].
Controle consensual em xeque
Sucede que, em julho de 2024, foi ajuizada a ADPF nº 1.183 no Supremo Tribunal Federal [3], questionando a constitucionalidade da IN nº 91/2022 e, consequentemente, dos acordos celebrados em sede de SSC – “Acordos de SSC”, sob os seguintes argumentos:
(1) a SSC seria uma forma de controle ex ante da administração pública, o que seria vedado pela Constituição de 1988;
(2) a IN nº 91/2022 não tem amparo em lei;
(3) a celebração de acordos seria função precípua do Poder Executivo, e não do Poder Legislativo, no qual estão inseridos os Tribunais de Contas;
e (4) as SSCs dariam margem a negociações políticas dos projetos públicos dentro do TCU, em agressão ao Princípio da Moralidade. A mise-en-scène atual, portanto, caminha no sentido de que a controle consensual instrumentalizado nos processos de SSC sê vê posto em xeque.
Validade do procedimento
Inobstante isso, há razões para se crer em sentido contrário, pela validade do controle consensual e, consequentemente, pela constitucionalidade das SSCs. A um porque não se trata de controle ex ante, e sim ex post. É necessário que tenha havido uma possível ilegalidade para que depois se instaure um processo de controle no TCU e, em momento posterior, se cogite a viabilidade de um acordo.
Um segundo fundamento consiste no fato de que há previsão legal para a celebração de acordos. O artigo 26 da Lindb é um permissivo legal amplo que dá substrato jurídico à formação de acordos em caráter geral a órgãos e entes públicos. O que se pode debater são os limites dessas negociações, mas não a possibilidade jurídica do Poder Público de negociar, inclusive os tribunais de contas.
Em terceiro, tem-se o fato de que a adesão a formas alternativas de resolução de conflitos não é exclusiva de um ou de outro poder. Muito pelo contrário, embora no Poder Executivo, de fato, seja mais comum a celebração de acordos, outros poderes também podem solucionar seus conflitos de outras formas, para além da lógica do comando e controle.
Exemplo disso são os tribunais judiciais, que têm se tornado mais deferentes à arbitragem, à conciliação, à mediação, etc. Mesmo os órgãos de controle podem exercer suas funções pela via consensual, a exemplo do Ministério Público, através dos TACs e dos acordos de não persecução civil, e da CGU, via acordos de leniência.
Em último lugar, é natural que haja disputas políticas no locus para o qual os conflitos públicos são direcionados. Em outras palavras, se há um processo de controle no TCU no qual a melhor solução possa ser obtida sob o pálio da consensualidade, ao invés do comando e controle, não há motivos para se sugerir em sentido contrário.
Benefícios
Para além dessas questões teórico-normativas, há razões de ordem prática do porquê adotar o controle consensual. Entre os benefícios proporcionados pela consensualidade, destacam-se:
(1) a eficiência, pois os conflitos públicos são solucionados de forma mais rápida e menos custosa;
(2) a participação e a confiança, considerando que as instituições públicas e particulares podem participar ativamente do processo de negociação, o que aumenta a sua credibilidade;
e (3) mitigar o risco de haver o chamado apagão das canetas, metáfora comumente usada para designar o fenômeno por meio do qual os gestores são desestimulados a assumirem novos riscos ou inovar no dia a dia da administração pública em razão do temor que têm do controlador.
É bem verdade que o TCU tem ocupado cada vez mais espaços de poder no Estado brasileiro e que o esgarçamento de suas competências é alvo de críticas pela literatura especializada [4].
Mas não parece ser nesse quadrante que necessariamente se insere o controle consensual. Ao contrário, há razões para se respaldar a sua constitucionalidade, assim como seus benefícios práticos. Em termos diretos, existem expansões legítimas e ilegítimas de poder, sendo que as SSCs no TCU se inseririam, a priori, no primeiro grupo.
Tudo isso conduz ao entendimento de que não haveria uma inconstitucionalidade in totum do controle consensual exercido via SSCs. Fugiria à razoabilidade vetar de antemão o uso de toda e qualquer técnica consensual de controle adotada pelo TCU.
Se houver desvios de conduta por parte do controlador, tanto na condução dos processos quanto nos temas alvo de solução consensual, tais devem ser averiguadas em cada caso concreto, e não por uma declaração ampla de inconstitucionalidade. Mesmo porque o provimento da ADPF nº 1183 poderia ter repercussões extramuros, isto é, apresentaria o risco de deslegitimar, por ricochete, todos os demais instrumentos consensuais adotados por controladores.
Arestas
Não significa dizer que os processos fruto de SSCs não possam ser aprimorados. Há algumas arestas que podem ser aparadas, a começar pelo fato de que os particulares em geral não são legitimados para dar início a esses processos; ou mesmo que o presidente do TCU detém poderes demasiadamente amplos para conduzi-los, podendo realizar a sua admissibilidade e eleger o relator com algum grau de liberdade. Mas essas e outras questões podem ser reparadas por lei ou por revisões pontuais na própria IN nº 91/2022 [5], e não pela sua invalidação.
Monopólio
Caminhando para o final, uma última advertência que se faz necessária – e isso é importante – é que, a despeito da constitucionalidade do controle consensual, não há, e nem pode haver, um monopólio da consensualidade pelo controlador. A rigor, é legítimo que o administrador público federal celebre acordos independentemente da interferência do TCU.
Para ilustrar, a ANTT aprovou a IN nº 1/2023, que constitui as Câmaras de Negociação e Solução de Controvérsias, cuja proposta é permitir que conflitos sejam solucionados de forma consensual entre regulador e regulados.
Caso seja celebrado um acordo, este não pode ser questionado por não ter contado com a chancela do TCU. Se, futuramente, acordos celebrados por órgãos e entes públicos vierem a ser invalidados em virtude da ausência de concordância prévia do controlador, aí sim se estará a deslegitimar o controle consensual [6].
Do contrário, a SSC conserva para si sua legitimidade e se apresenta como umas das tantas estratégias de resolução consensual de conflitos públicos à disposição do administrador e que não suscitam dúvidas a propósito da sua constitucionalidade.
[1] A propósito da história desse mecanismo, confira-se: ROGOGINSKY, Felipe Salathé. Controle Consensual ou Controle por Acordos? Perspectivas para os Processos de Solicitação de Solução Consensual nas Contratações Públicas. In. TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Perspectivas sobre o Controle da Infraestrutura. (Livro Eletrônico) São Paulo, 2024, pp. 24 – 36.
[2] ROGOGINSKY, Felipe Salathé. Conceitos que pegam e não pegam no Direito Administrativo: A substituição das decisões coordenadas pelos processos de Solicitação de Solução Consensual (SCC). JOTA, 02/08/2023.
[3] STF, ADPF nº 1183, Rel.: Min. Edson Fachin.
[4] Por todos, confira-se: ROSILHO, A. União: Competências, Jurisdição e Instrumentos de Controle. São Paulo: Quartin Latin, 2019.
[5] Algumas dessas sugestões de aprimoramento, ainda que com tom mais crítico do que o presente neste artigo, podem ser encontradas em: PIRES, Breno. “Vai, Bruno!” Como o TCU, em parceria com o governo Lula, virou um balcão de acordos bilionários. Revista Piauí, julho, 2014.
[6] Sobre os riscos decorrentes do controle de acordos pelo TCU, confira-se: ROGOGINSKY, Felipe Salathé. Controle e Consensualidade: o Controle de Acordos Substitutivos por Tribunais de Contas. In. LEAL, Fernando; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Transformações do Direito Administrativo: Debates e Estudos Empíricos em Direito Administrativo e Regulatório. FGV-RJ, 2022.
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