Opinião

Arcabouço normativo para o Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência

Autor

  • Maíra de Carvalho Pereira Mesquita

    é mestre em Direito pela UFPE especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

    Ver todos os posts

21 de setembro de 2024, 6h02

A Lei nº 11.133/2005 instituiu o Dia Nacional de Luta da Pessoa Com Deficiência, celebrado neste dia 21 de setembro. Trata-se de data que visa a conscientizar e mobilizar a sociedade para a inclusão social das pessoas com deficiência. E é importante ressaltar o arcabouço normativo brasileiro dos direitos da pessoa com deficiência.

freepik
vaga pcd deficiente estacionamento

A Constituição é o primeiro marco normativo em vigor sobre o direito das pessoas com deficiência no Brasil. Por ter sido promulgada sob a égide de um Estado constitucional (democrático e de direito), prevê amplo rol de direitos e garantias individuais e coletivos, além da dignidade da pessoa humana como um dos seus fundamentos.

A Constituição estabeleceu como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade justa, solidária e sem discriminações de qualquer origem, proibindo, expressamente, discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (artigo 7º, XXXI).

Leis que apoiam pessoas com deficiência

Nesse contexto, uma série de atos normativos infraconstitucionais foram elaborados como instrumentos para a efetivação dos direitos da pessoa com deficiência, dentre os quais:

– Lei nº 7.853/1989 (dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde) institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências);

– Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (dispõe sobre a organização da assistência social, traz o benefício de prestação continuada e dá outras providências) — Loas;

– Decreto nº 3.298/1999 (regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências);

– Lei nº 10.048/2000 (Lei da prioridade de atendimento);

– Lei nº 10.098/2000 ( estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências);

– Decreto nº 5.296/2004 (regulamenta as Leis nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências);

– Lei nº 11.126/2005 (dispõe sobre o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia);

Convenção Internacional

Em 30 de março de 2007, foi assinada, em Nova York, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo, no âmbito do Sistema Universal de Direitos Humanos. É o principal instrumento que diz respeito à proteção dos direitos da pessoa com deficiência na esfera internacional, servindo de base fulcral para a futura aprovação da atual Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) — Lei nº 13.146/2015.

Spacca

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo foram internalizadas ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, e a eles foi atribuído o status de emenda constitucional. Isto porque, nos termos do artigo 5º, §3º, da CF/88, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Portanto, tal convenção foi o primeiro documento internacional a integrar o bloco de constitucionalidade brasileiro, assim entendido como o conjunto normativo que contém disposições, princípios e normas materialmente constitucionais fora do texto da Constituição formal.

Diante do caráter de norma hierarquicamente superior à legislação ordinária, sua eficácia cogente é suficiente para suscitar a implementação de alterações robustas no ordenamento jurídico pátrio, as quais culminaram na promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que, por sua vez, ampliou os direitos e garantias fundamentais da pessoa com deficiência (PcD) para promover sua efetivação prática.

Facilidades em órgãos da Justiça

Posteriormente, o Tratado de Marraqueche, que visa a facilitar o acesso a obras publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso, firmado em 27 de junho de 2013, foi promulgado no Brasil pelo Decreto nº 9.522, de 8 de outubro de 2018, também com status de emenda constitucional. Em seguida, o Decreto nº 10.882, de 3 de dezembro de 2021, regulamentou o referido acordo internacional.

Recentemente, também em 2021, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentou o desenvolvimento de diretrizes de acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência nos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares, através da Resolução nº 401/2021.

Previu tanto medidas estruturais de suas unidades, como também de acesso à Justiça e às informações nas unidades que lhe competem, por intermédio de recursos de tecnologia assistiva e pela capacitação dos serventuários da justiça para o atendimento das pessoas com deficiência.

Com base nas recentes transformações normativas do Estado brasileiro, observa-se que, nos últimos anos, uma gama de direitos vem sendo reconhecida para as pessoas com deficiência, de forma a adequar, ao menos no campo normativo, a promoção dos direitos e garantias dessa coletividade.

É fundamental reconhecer que boa parte dessas previsões recentes são frutos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, inclusive a exemplo da própria nomenclatura “pessoa com deficiência”, e não “pessoa portadora de deficiência”.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência também promoveu a alteração da redação dos dispositivos do Código Civil incompatíveis com esse novo panorama normativo. Sendo assim, o conceito de incapacidade civil previsto nos artigos 3º e 4º do Código Civil passou a ser:

Art. 3 São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

I – (Revogado) (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

II – (Revogado) (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

III – (Revogado) (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

Art. 4 São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

IV – os pródigos.

Parágrafo único.  A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

Mudança de modelo médico de deficiência

A Lei Orgânica da Assistência Social, na redação originária do seu artigo 20, § 2º, definia a pessoa portadora de deficiência como sendo aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho. Ou seja, adotava-se o modelo médico de deficiência que tratava a PcD como um doente, motivo pela qual se considerava despicienda a adoção de uma política pública voltada à efetiva inclusão.

A redação atual, conferida pela Lei 13.146/2025, por sua vez, é condizente com a convenção internacional por considerar “pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Assim, o modelo social da deficiência, enquanto problema da sociedade que deve assegurar a sua total inclusão social, foi incorporado à Loas e adotado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, o qual especificou as barreiras da seguinte forma:

Art. 3º.
IV – barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias;

Educação inclusiva de qualidade

Além disso, importante mencionar que, desde 2011, o artigo 20, § 6º da Loas já previa que a avaliação da deficiência e do grau de impedimento não seria apenas médica: deve ser composta por avaliação médica e social, realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).

O Estado brasileiro firmou compromisso para a promoção de educação de qualidade e inclusiva às pessoas com deficiência desde o ensino básico de educação, conforme o Objetivo nº 4 da Agenda 2030 da ONU, as diretrizes do artigo 24 da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, do artigo 208, III, da Constituição, e os direitos previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência e demais normas infraconstitucionais. Entretanto, na prática ainda se verifica dificuldade de implementação de um ensino inclusivo de qualidade.

O Departamento de Pesquisas do Instituto Olga Kos divulgou, em reportagem publicada no Correio Braziliense, que cerca de 32% dos casos analisados de dificuldades de acesso e permanência escolar estão relacionados ao transporte escolar, por não disporem de recursos adaptáveis nos veículos; a ausência de acompanhante ou a carência de profissional capacitado para prestar assistência aos alunos está relacionada a 25% dos casos; a precariedade na infraestrutura e no acesso às escolas contribui em 22% dos casos; e a distância da instituição diante das necessidades do estudante comporta 20% dos casos. No mesmo estudo, restou consignado que apenas cerca de 5% das pessoas com deficiência acima dos 18 anos possuía ensino superior completo [1].

Estas barreiras presentes no acesso à educação corroboram os dados de 2022 do IBGE, os quais constataram que mais de 63% das pessoas com deficiência não possuem instrução escolar ou possuíam o ensino fundamental incompleto e que mais de 11% possuíam o ensino fundamental completo ou o ensino médio incompleto. O mesmo levantamento chegou ao dado de que pouco mais que 25% das pessoas com deficiência possuíam o ensino médio completo e apenas 7% chegaram à conclusão do nível superior de ensino [2].

Ante o brevemente exposto, parece-nos importante celebrar o dia 21 de setembro para disseminar os direitos previstos para as pessoas com deficiência e conscientizar sobre a necessidade de mudança da realidade quanto à sua inclusão.

 


[1] Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/02/5071584-pcds-ainda-enfrentam-dificil-inclusao-na-saude-e-educacao-publica.html>. Acesso em: 08 ago. 2024.

[2] Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37317-pessoas-com-deficiencia-tem-menor-acesso-a-educacao-ao-trabalho-e-a-renda#:~:text=Em%202022%2C%2047%2C2%25,foi%20de%204%2C1%25.>. Acesso em: 08 ago. 2024.

Autores

  • é mestre em Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos, defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!