Opinião

Interrupção da prescrição por protesto extrajudicial no Direito Tributário

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19 de setembro de 2024, 13h18

Em 2 de julho de 2024, foi publicada a Lei Complementar nº 208 que, dentre outras alterações da legislação tributária, previu a interrupção do prazo prescricional em matéria tributária pelo protesto extrajudicial. Até então, a prescrição somente era interrompida pelo protesto realizado em juízo, o que poderia prejudicar a satisfação do crédito tributário, uma vez que os fiscos passaram a utilizar o protesto extrajudicial como meio mais rápido e eficaz para coagir o contribuinte a recolher os tributos em aberto.

O protesto extrajudicial da certidão de dívida ativa é uma realidade no Direito Tributário desde a edição da Lei nº 9.492/97. O entendimento do cabimento do protesto como meio para satisfação do crédito tributário foi consolidado no Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 777 [1], em 2019 e no STF com o julgamento da ADI nº 5.135/DF [2].

Portanto, seu cabimento é indiscutível, mas ao restringirem a satisfação do crédito tributário a esse meio de cobrança, as Fazendas públicas não tinham a seu favor a interrupção do prazo prescricional, de modo que tinham que efetivar a execução fiscal respectiva, muitas vezes paralela ao protesto, para prevenir o direito.

Irretroatividade

Agora, com a nova redação dada ao artigo 174, parágrafo único do CTN, é indiscutível a interrupção da prescrição pelo protesto, quer seja judicial ou extrajudicial. Ademais, o objeto da presente análise não é o protesto em si, pois como já visto, é indiscutivelmente cabível na seara tributária, mas sim a impossibilidade da aplicação retroativa dessa causa interruptiva do prazo prescricional, pois essa aplicação viola a segurança jurídica que tem como objetivo a previsibilidade. Vejamos os ensinamentos de Canotilho:

“o homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção à confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos” [3].

Para garantir essa previsibilidade, no Direito Tributário, a irretroatividade é a regra constitucional, fundada no artigo 150, III, “a” da CRFB, com exceções previstas nos artigos 106 do CTN e 144, § 1º, do mesmo diploma legal.

Spacca

A lógica da irretroatividade é garantir a segurança jurídica e estabilidade das relações jurídicas, de modo que o contribuinte não seja surpreendido com a cobrança de um tributo pretérito, desestabilizando suas contas e o seu planejamento. Já as exceções têm como objetivo garantir a aplicação da norma mais benéfica ao contribuinte, bem como garantir a satisfação do crédito tributário naquilo que aumentar os poderes da fiscalização e as garantias e privilégios do crédito tributário.

Hipóteses de retroatividade

Vejamos que o artigo 106 do CTN prevê que a lei retroagirá quando for interpretativa e quando, não havendo coisa julgada, reduzir as penalidades ou deixar de tratar a conduta do agente como infração à norma tributária. Em outras palavras, a lei tributária retroagirá quando for para beneficiar o sujeito passivo do crédito tributário.

A própria interpretação da lei tributária deve ser dada de forma mais favorável ao acusado, nos termos do artigo 112 do CTN [4]. Por outro lado, também há hipóteses de retroatividade favoráveis ao Fisco, nos casos em que a lei aumentar os poderes da fiscalização e as garantias e privilégios do crédito tributário. Tais previsões têm o nítido objetivo de equilibrar a relação jurídica entre o cidadão e o Fisco, de modo que o crédito tributário, como bem público, seja garantido.

Limite

Como se pode ver, as hipóteses de aplicação da retroatividade são restritas e não se aplicam ao caso em que a lei instituir novas hipóteses de interrupção do prazo prescricional em matéria tributária. O primeiro fundamento para isso é o fato de que as causas de interrupção da prescrição não se encontram no capítulo do Código Tributário Nacional que trata de garantias e privilégios, ou mesmo naquele que trata de fiscalização. Assim, pela própria topografia do CTN percebe-se que prescrição não se relaciona com as hipóteses de retroatividade.

Ademais, caso a referida lei complementar fosse interpretada de forma retroativa, estaria reativando um crédito já extinto pela prescrição. Ou seja, um tributo que já estaria morto, voltaria a ser devido, violando frontalmente a segurança jurídica. Nas lições de José Afonso da Silva:

“a segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída” [5].

Com isso, é inafastável a impossibilidade de aplicação retroativa da Lei Complementar nº 208, ao passo que não aumenta os poderes ou as garantias e privilégios do crédito tributário e tal aplicação viola a segurança jurídica e proteção da confiança.

Por fim, como bem abordado por Helenilson Cunha Pontes, as garantias e privilégios estão previstas no CTN. Vejamos:

“Estão previstos como garantias e privilégios do crédito tributário no CTN a responsabilidade patrimonial universal do sujeito passivo pelo crédito tributário (artigo 184), a presunção de fraude à Fazenda Pública no caso de alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, pelo sujeito passivo relativamente a crédito inscrito como dívida ativa (artigo 185, com a redação da Lei Complementar 118/2005) e a indisponibilidade de bens e direitos do sujeito passivo (artigo 185-A, incluído pela Lei Complementar 118/2005). 

No capítulo das garantias e privilégios, o CTN inclui as ‘preferências’ do crédito tributário, estabelecendo a regra geral segundo a qual ‘o crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho’ (artigo 186, com redação da Lei Complementar 118/2005).

São estes, e apenas estes, os privilégios e garantias do crédito tributário contemplados pelo CTN, norma jurídica que estabelece as regras gerais de legislação tributária com eficácia de lei complementar, como sempre exigiu o regime constitucional brasileiro” [6].

Em razão do exposto, não devem restar dúvidas que a possibilidade de interrupção da prescrição tributária pelo protesto extrajudicial da Certidão de Dívida Ativa não pode produzir efeitos pretéritos, sendo devida sua aplicação somente com relação aos protestos realizados após a entrada em vigor da Lei Complementar nº 208/2024.

 


[1] A Fazenda pública possui interesse e pode efetivar o protesto da CDA, documento de dívida, na forma do art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.492/1997, com a redação dada pela Lei 12.767/2012.

[2] O protesto das Certidões de Dívida Ativa constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política.

[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, pag. 256.

[4] Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I – à capitulação legal do fato;
II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

[5] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006, pag. 133.

[6] https://www.conjur.com.br/2019-jan-23/consultor-tributario-privilegios-garantias-credito-tributario-lei-complementar/. Acesso em 15/09/2024.

Autores

  • é advogado, pós-doutorando em Direito pela Uerj, doutor em Direito pela Universidade Veiga de Almeida, mestre em Economia Empresarial pela Ucam, pós-graduado em Direito Público e Tributário, especialista em Tributação Internacional pela Universiteit Leiden, membro da International Fiscal Association (IFA), professor de Direito Tributário da FGV.

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