Opinião

É possível medir a violação de uma garantia fundamental?

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17 de setembro de 2024, 6h39

Princípio da taxatividade criminal como garantia fundamental

Revolução Russa de 1917

O Estado de Direito se estabelece na medida em que o poder sancionatório do Estado esteja delimitado por direitos e garantias individuais dos cidadãos [1]. A legalidade criminal é uma dessas barreiras e foi adotada pela Constituição de 1988 como um princípio fundamental de nosso sistema criminal: “Art. 5º, inciso XXXIX — não há crime sem lei anterior que o defina […]”.

Muito além do elemento formal, a exigência de lei em sentido estrito para estabelecer condutas criminais alberga, ainda, uma dimensão temporal, qual seja, a anterioridade da lei penal à conduta (“prévia”), e uma dimensão material, que exige a exatidão do comando proibitivo (“o defina”).

Clareza e certeza são os dois requisitos que integram a perspectiva material da legalidade criminal, compondo, assim, o princípio da taxatividade criminal. Num Estado de Direito, é garantido aos cidadãos que somente serão sancionados por normas criminais taxativas, aquelas que possuem a conduta delitiva cartesianamente delimitada.

Com efeito, estão proibidas leis penais cujo conteúdo seja vago ou impreciso, dependentes de uma atividade interpretativa de cada julgador, o que produz um julgamento penal discricionário. Em paralelo, a definição particular do conteúdo material de um tipo penal também representa uma invasão do Poder Judiciário às funções do Poder Legislativo, pois a esse Poder que cabe a tarefa de selecionar as condutas proibidas [2].

Rogério Greco [3] bem exemplifica esse cenário com estudos de Ferrajoli [4]. O jurista italiano lembra os tipos criminais lacônicos dispostos no Código da República Russa de 1922, notadamente o artigo 6º, que tratava como crime: “toda ação ou omissão socialmente perigosa, que ameace as bases do ordenamento soviético e a ordem jurídica estabelecida pelo regime dos operários e camponeses para o período de transição em prol da realização do comunismo”.

O direito penal da Alemanha hitlerista também ilustra a tipificação de condutas lacônicas, que estabelecia como crime ações contra o “sadio sentimento popular”, como destaca Cláudio Brandão [5].

Taxatividade criminal no delito de sujeição a condições degradantes de trabalho

O delito de trabalho análogo à de escravo está tipificado no artigo 149 do Código Penal brasileiro com quatro figuras alternativas, representando um delito de ação múltipla ou de conteúdo variado, são elas [6]: 1. submissão a trabalhos forçados (1ª figura); 2. submissão a jornadas exaustivas (2ª figura); 3. sujeição a condições degradantes de trabalho (3º figura) e 4. servidão por dívida (4ª figura).

Destaca-se da multiplicidade típica do caput do artigo 149 do CP a 3ª figura — sujeição a condições degradantes de trabalho, que requer complementação de seu conteúdo incriminador primário pelo aplicador da norma penal, já que a lei penal não definiu o que são “condições degradantes de trabalho”.

A incerteza da norma de proibição suscita diversos questionamentos, tais como: 1. quais regras serão empregadas para definir a degradância laboral (normas administrativas de saúde e segurança do trabalhador, por exemplo); 2. qual a quantidade e intensidade de violações trabalhistas serão necessárias para configurar condições degradantes de trabalho; 3. qual o resultado da conduta do agente para a saúde ou segurança do trabalhador apto a consumar o delito — um resultado de perigo ou de dano?

Medindo a violação a uma garantia fundamental

Será possível medir, empregando cálculos matemáticos, o quantum determinada violação a uma garantia fundamental impacta na proteção do cidadão perante o poder sancionador do Estado?

Para enfrentar esse desafio, vamos utilizar a pesquisa publicada na revista Ver-o-Direito — da Seção Judiciária do Pará — [7], que levantou robusta base de dados extraída do cadastro de processos criminais relacionados ao delito de trabalho análogo à de escravo, então realizado pela Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

A base de dados foi composta de sentenças proferidas até 16 de maio de 2019 por juízes federais de primeiro grau de todas as Seções e Subseções do TRF-1, referentes a processos autuados entre 2007 e 2018. No total, foram analisas 979 imputações relacionadas às figuras dispostas no caput do artigo 149 do CP, constantes de 381 processos criminais e que englobaram 652 réus.

A pesquisa também analisou o resultado sancionador em grau de recurso no TRF-1, num total de 433 imputações das 979 acusações da base de dados, já que nem todas sentenças de 1º grau foram objeto de recurso ou nem todos os recursos foram julgados.

Para mensurar, numericamente, os efeitos do esvaziamento de uma garantia fundamental, foi realizada a análise do desempenho sancionador da 3ª figura do caput do artigo 149 do CP (condições degradantes de trabalho), teoricamente menos aderente ao princípio constitucional da taxatividade criminal, em comparação com o desempenho das outras três figuras do mesmo tipo penal.

Resultados sancionadores comparados

A dificuldade cognitiva enfrentada pelo juiz de primeiro grau para determinar o conteúdo da norma de proibição foi o primeiro parâmetro analisado, até porque necessário verificar se o tipo penal paradigma (3ª figura do caput do artigo 149 do CP) reflete sua incompletude incriminadora aos julgadores.

Para demarcar esse aspecto, considerou-se presente dificuldade de análise do conteúdo material da figura criminal aquela sentença que empregou alguma fonte externa para definir a regra incriminadora das figuras que compõem o caput do artigo 149 do CP, como uso de doutrina, jurisprudência, normas não penais e, até mesmo, a compreensão individual do juiz a respeito daquele elemento constituinte do tipo.

Spacca

Sob o parâmetro de dificultação cognitiva, a 3ª figura destacou-se fortemente, visto que obteve 66% de incidência, enquanto os demais tipos penais apresentaram resultados mínimos: 1ª figura (3%); 2ª figura (14%) e 4ª figura (16%).

Os resultados apurados revelaram que a 3ª figura do caput do artigo 149 do CP foi construída refratariamente à garantia da taxatividade criminal, posto que teve a incerteza detectada em sentenças criminais em índice quatro vezes maior que a 4ª figura (segundo lugar com 16%) e 20 vezes maior que a 1ª figura (último lugar com 3%).

Confirmada a menor aderência da 3ª figura à garantia fundamental da taxatividade criminal, a pesquisa passou a aferir os efeitos dessa característica no exercício do poder sancionatório do Estado. Nesse aspecto, dois índices foram levantados para firmar o comparativo entre as figuras do caput do artigo 149 do CP: índice de condenações em 1º grau e índice de reforma de condenações pelo TRF-1.

O índice de condenações em 1º grau buscou verificar se a menor aderência do tipo penal incriminador à garantia da taxatividade criminal produz maior sancionamento estatal.

No ponto, a 3ª figura do caput do artigo 149 do CP obteve o maior índice de condenação dentre as quatro figuras do crime de trabalho análogo à de escravo com 34%, superando todas as demais figuras: 1ª figura (23%); 2ª figura (13%) e 4ª figura (13%).

Em suma, ao se comparar o grau de condenação pelos juízes federais, o delito de sujeição do trabalhador a condições degradantes foi objeto de maior percentual de condenações dos acusados, justamente o tipo penal que possui menor convergência com a taxatividade criminal, segundo o índice de dificultação analisado linhas atrás.

O índice de reversão de condenações pelo TRF-1 foi o terceiro indicador construído, que objetivou verificar se a instância revisora consegue frear o poder punitivo da 1ª instância. Mais uma vez, a 3ª figura alcançou resultado disforme das demais figuras, alcançando o menor índice de reversão de condenações com 53%, enquanto as outras figuras apresentaram elevado grau de reforma: 1ª figura (85%); 2ª figura (75%) e 4ª figura (73%).

Em suma, os resultados estatísticos obtidos indicaram que a figura penal com maior incerteza do conteúdo de sua regra de proibição (3ª figura do caput do artigo 149 do CP), que então oferece parâmetros materiais imprecisos para a atuação revisional, apresentou menor índice de reforma de condenações.

Garantias fundamentais como escudo ao poder punitivo do Estado

O estudo comparativo de desempenho sancionador das quatro figuras típicas do caput do artigo 149 do CP demonstrou que é possível medir os efeitos da violação de uma garantia fundamental na contenção do poder sancionador do Estado.

Nesse sentido, a pesquisa apontou que a figura típica com menor aderência à determinada garantia fundamental, isto é, o delito de sujeição do trabalhador a condições degradantes diante da garantia da taxatividade criminal, despontou como líder nas condenações em primeiro grau e com menor índice de reforma das condenações em segundo grau.

Isso quer dizer que a figura penal construída com conteúdo mais impreciso dentre as avaliadas, contrariando o princípio do in dubio pro reu, foi aquela com maior poder sancionador. Tal cenário reforça a extrema relevância da observância das garantias fundamentais para frear a sede punitiva do Estado, que, mesmo na dúvida, não hesita em sancionar o cidadão.

Portanto, os resultados obtidos na robusta pesquisa empregada neste artigo, que considerou o julgamento de quase mil imputações criminais relativas ao delito de redução do trabalhador à condição análoga à de escravo, confirmaram que as garantias fundamentais, longe de serem apenas um simples marco teórico, representam o efetivo escudo dos cidadãos diante do poder repressor do Estado.

 


[1] BITENCOURT, C. Tratado de direito penal. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. COSTA, Á. O direito penal na Constituição (1998-1998). Revista da EMERJ, v.3, n.9, p.141–157, 2000.

[2] ROXIN, C. Derecho Penal. 1ª ed. Madrid: Civitas, 1997.

[3] GOMES, L .Direito penal – parte geral. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1.

[4] FERRAJOLI, L .Direito e razão-teoria do garantismo penal. 1ª ed. São Paulo: Revistados Tribunais, 2002.

[5] BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

[6] Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

[7] HONORATO, M. O princípio da taxatividade criminal no crime de sujeição do trabalhador a condições degradantes de trabalho: uma análise de julgamentos de processos criminais em 1° e 2° graus no âmbito do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Revista Ver-o-Direito, v. 6, p. 10-53, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 14 set. 2024.

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