Opinião

Competência para edição de normas complementares aos tipos penais ambientais

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16 de setembro de 2024, 13h20

O direito, enquanto ciência que acompanha as necessidades da sociedade, carece de um diálogo ativo com outras áreas do conhecimento. No direito ambiental, especificamente, tal comunicação é extremamente necessária, visto que o meio ambiente é um conjunto de condições e interações de ordem física, química e biológica que permitem e regem a manutenção da vida. Nesse sentido, é comum que as normas penais ambientais demandem complementação normativa para que tenham segurança em sua aplicabilidade.

Governo do Ceará

Sendo assim, cabe destacar que os tipos penais incriminadores são formados por duas ordens de preceitos: primários e secundários. O preceito primário é a descrição da conduta típica, enquanto o preceito secundário diz respeito à sanção aplicável. Em alguns casos, a legislação apresenta de forma clara o preceito secundário, mas o preceito primário depende de complementação externa para a sua adequada compreensão. As normais que carecem de complementação são tecnicamente denominadas “leis penais em branco” [1].

Numa perspectiva histórica, as leis penais em branco têm origem nos estudos do jurista alemão Karl Binding, que identificou algumas lex imperfectas, cuja aplicabilidade não seria possível apenas com a própria redação do tipo penal. Nestes casos, apesar de a lei penal estabelecer um norteamento sobre a conduta típica e a sanção aplicável, a sua redação não apresenta o seu preceito primário, que poderá ser definido por outro regulamento [2].

A teoria de Binding foi aprimorada por Edmund Mezger, que dividiu as lex imperfectas em três categorias distintas a partir da seguinte diferenciação: leis cujo complemento se encontra na mesma lei; leis cujo complemento se encontra em outras leis, mas que tenham sido formuladas pela mesma autoridade legislativa e; leis cujo complemento tenha sido formulado por autoridade distinta [3].

Lei de Crimes Ambientais

Especificamente no cenário ambiental, os tipos penais estão concentrados na Lei Federal nº 9.605/1998, também chamada de “Lei de Crimes Ambientais”, que “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências” [4].

Nesta lei, constam crimes ambientais, descritos entre o artigo 29 e o artigo 69-A. Embora todos os artigos descrevam condutas ambientalmente reprováveis, algumas destas descrições dependem de complementação externa.

A exemplo, o artigo 29, §4º, I, da Lei Federal nº 9.605/1998 prevê a conduta de “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida”, cuja pena será aumentada em metade se o crime for praticado contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção[5].

Ocorre que não cabe ao legislador definir quais espécies são consideradas raras ou ameaçadas de extinção, visto que tais informações dependem de um levantamento técnico. Atualmente, a listagem de espécies ameaçadas de extinção se encontra na Portaria MMA nº 148/2022[6], uma norma editada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima após estudos realizados por órgãos de apoio.

Spacca

Do mesmo modo, o artigo 56 da Lei Federal nº 9.605/1998 tipifica a conduta de “produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos”[7].

As exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos não são expressamente previstas na Lei Federal nº 9.605/1998. Contudo, é justamente a ciência do conteúdo das leis e regulamentos relativos ao tema que permitirá a compreensão da aplicabilidade do artigo 56.

Competência de proteção ao meio ambiente

Nesse sentido, torna-se importante a seguinte reflexão: de acordo com o artigo 24 da Constituição, a competência legislativa sobre proteção ao meio ambiente é concorrente. Logo, quando as leis e regulamentos aplicáveis ao tema tiverem sido emitidos na esfera estadual ou municipal, será possível a complementação da lei penal em branco? Sabe-se que é resguardado à União legislar sobre privativamente sobre direito penal, em observância ao artigo 22, I, da Constituição [8], mas a mesma regra seria aplicável às complementações de tipos penais?

Há uma corrente que defende que os atos emanados por autoridades estaduais e municipais não devem integrar os preceitos incriminadores de normas penais em branco, pois a sua utilização consistiria em usurpação da competência privativa da União para legislar sobre direito penal. Por outro lado, há outra corrente que defende a inexistência de inovação penal na norma complementadora, já que a lei federal individualiza e define a conduta punível, sendo as normas estaduais e municipais meramente complementares [9].

Pacto federativo

Em com contexto similar, envolvendo o assunto saúde pública, que também apresenta competência legislativa concorrente, o Supremo Tribunal Federal fixou o tema 1246, com repercussão geral, indicando que a “norma penal em branco pode ser complementada por atos normativos infralegais editados pelos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), respeitadas as respectivas esferas de atuação, sem que isso implique ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito penal” [10].

No julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.418.84, a ministra Rosa Weber esclareceu que a norma complementadora “não se reveste, só por esse motivo, de natureza criminal, mas sim de caráter administrativo e técnico-científico, a justificar seja o ato normativo suplementador editado por ente federado que possua competência administrativa para tanto” [11].

Nesse sentido, embora a questão seja controversa e apresente diferentes correntes, o atual cenário jurídico demonstra que, apesar de a União deter a competência privativa para legislar sobre tipos penais, o pacto federativo possui um caráter de colaboração, razão pela qual é possível a utilização de normas formuladas por entes diversos para fins de complementação das normais penais em branco.

 


[1] PEGORARO, Cássio Passanezi; PEGORARO, Luiz Nunes. A aplicação do princípio da legalidade em face das normas penais em branco. Revista de Direito, v. 13, n. 03, p. 01-26, 2021.

[2] MENDONÇA, Tarcísio Maciel Chaves de. Lei penal em branco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

[3] BOARO, Guilherme. Leis penais em branco e princípio da legalidade. 2017. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

[4] BRASIL. Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 1998.

[5] BRASIL. Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 1998.

[6] BRASIL. Portaria MMA nº 148, de 7 de junho de 2022. Altera os Anexos da Portaria nº 443, de 17 de dezembro de 2014, da Portaria nº 444, de 17 de dezembro de 2014, e da Portaria nº 445, de 17 de dezembro de 2014, referentes à atualização da Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção. Brasília, 2022.

[7] BRASIL. Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 1998.

[8] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, 5 de outubro de 1988.

[9] PIMENTA, Danniel Librelon. Crimes ambientais: normas penais em branco, elementos normativos do tipo e competência estadual em matéria ambiental. CIRCULAÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL, v. 30170, p. 211, 2010.

[10] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 1246. Constitucionalidade de complementação de norma penal em branco por ato normativo estadual ou municipal, para aplicação do tipo de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do Código Penal). Brasília, 2023.

[11] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo em Recurso Extraordinário 1418846. Brasília, 2023.

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