Segunda Leitura

Reforma judicial no México e riscos no Brasil

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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15 de setembro de 2024, 8h34

Os Estados Unidos Mexicanos, ou simplesmente México, é um país localizado na América do Norte, com uma população de 126 milhões de habitantes que vivem em uma área de 1.958.201 km² . A par de uma riquíssima cultura e belezas naturais que o tornam o país mais visitado por turistas na América Latina,  tem uma industrialização emergente e riquezas petrolíferas.

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No entanto, junto com pontos positivos, o México carrega problemas  graves para os quais não tem encontrado solução. Desigualdades sociais extremas, corrupção em constante crescimento (ocupa o 126º lugar no ranking da Transparência Internacional [1]) e uma criminalidade organizada que estende seus tentáculos em órgãos do poder público, alcança o exterior (inclusive na Amazônia brasileira) e se vale de uma violência que supera em muito a dos demais países.

Meditando sobre as características do México, não é possível deixar de perceber a sua semelhança com o Brasil. A similitude vai desde o sistema federativo até a corrupção, não sendo demais lembrar que neste item o Brasil cai ano após ano, estando em 2023 na 104ª posição do ranking citado.

Inusitado da eleição de juízes mexicana

Inicialmente vale registrar que nenhum dos países do mundo com elevado nível de qualidade de vida dos seus habitantes adota o sistema de eleições para todas as instâncias, da base ao ápice da pirâmide.

É verdade que os Estados Unidos têm juízes eleitos. Não os federais, mas sim os estaduais. Na  maioria dos estados admitem-se juízes de primeira instância eleitos. Os candidatos participam de debates tal qual os políticos e têm mandato por tempo determinado. O sistema faz parte da democracia e foi idealizado como forma de participação popular no Judiciário, tal qual os julgamentos pelo Tribunal do Júri, que lá alcançam causas de natureza civil.

A Bolívia é o sistema que mais se aproxima do que pretende o México. Os artigos 182, 188 e 198 da Constituição tem previsão de eleição para juízes do Tribunal Superior de Justiça, Tribunal Agroambiental e Tribunal Constitucional Plurianual. Em Cuba, a Constituição não prevê eleição direta, conforme artigo 126. Na Nicarágua, a Constituição não  trata do assunto, remetendo-o no artigo 59 à lei.

Na reforma judicial mexicana, os candidatos serão indicados pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Então já se pode imaginar os pretendentes procurando contatos com o presidente da República ou do governador do Estado pedindo uma oportunidade.

E claro, com promessa explícita ou implícita de que atenderão todos os pedidos que, se eleitos, lhes serão feitos. O mesmo procedimento se dará diante do Legislativo e com o tempo no Judiciário, onde os presidentes dos tribunais se amoldarão ao sistema.

Detalhe: todos os atuais juízes serão removidos, o que na linguagem judiciária hispânica significa demitidos. Vale dizer, irão para casa. Isto no Brasil só ocorreu no Estado Novo, quando Getúlio Vargas extinguiu a Justiça Federal. Mesmo assim, muitos juízes federais foram aproveitados nas Varas da Fazenda Pública de seus estados.

Objetivos da reforma judicial mexicana

O site do Senado mexicano noticia a aprovação da reforma com um resumo do voto de boa parte dos senadores. As razões são as comuns em tais situações, acabar com os vencimentos exagerados, atraso nos serviços e distanciamento da população. [2]

Em sentido contrário, todavia, há  alegações de que, com a reforma, os juízes ficariam à disposição do Poder Executivo, que a mudança não foi  analisada e discutida com seriedade e que se estava dando mais um passo em direção ao totalitarismo.

Do que consta acima, as alegações é possível afirmar que os vencimentos dos magistrados federais do México estão, sim, entre os melhores do mundo. Esta é uma antiga concessão baseada na crença de que é a única forma de evitar a corrupção.

Por outro lado, não lhes é permitido nenhuma outra atividade, exceto a de professor, mas sem receber nenhum pagamento. O atraso nos serviços, certamente verdadeiro, é um problema de gestão, que se combate com medidas certas e menos espetaculosas.

O distanciamento da população merece duas considerações: a) juiz não deve ser tipo um populista a distribuir afagos e coraçõezinhos, a distância é requisito da imparcialidade; b) conhecer os problemas da população é sem dúvida importante e se resolve no âmbito das escolas da magistratura com visitas, depoimentos vídeos e outras práticas.

Pontos principais da reforma

A reforma tem vários aspectos, porém o voto popular direto é o mais importante. Como já foi visto, trata-se de sistema praticamente inexistente no mundo, o que leva a dois tipos de conclusão: ou México descobriu algo que a humanidade em milênios não havia pensado ou a iniciativa representa riscos de toda espécie ao futuro do país.

Imaginemos como seria se adotada no Brasil.

Os candidatos viriam de suas bases. Bastaria terem um curso de Direito em uma das faculdades mal avaliadas e o apoio de algum segmento social, para que pudessem entrar na disputa. Evidentemente, o importante não seria ter uma sólida base jurídica, mas sim ser apoiado por um blog com um número significativo de seguidores.

Teríamos candidatos disso ou daquilo, da igreja x ou y, da facção criminosa local ou nacional, do clube de futebol verde-azul ou azul-amarelo, dos banqueiros ou dos crackeiros, as hipóteses seriam infinitas.

Mas os cargos do Supremo Tribunal Federal, pela importância que ostentam, seriam os mais disputados. Os canais de TV possibilitariam debates, onde eles poderiam expor a força de suas ideias ou, eventualmente, de seus xingamentos. Um professor de doutorado, com décadas de estudos, obras publicadas e um lindo currículo, não teria a menor chance diante de um influencer famoso.

A reforma no seu item 1 afirma o propósito de combater o nepotismo. [3] Ora, isto não necessita de reforma constitucional No Brasil o Conselho Nacional de Justiça, quando corregedor o ministro Gilson Dipp, deu efetividade à proibição. O nepotismo como regra acabou. Claro que, camuflado, pode existir aqui ou ali. Mas bastará uma denúncia ao CNJ para que o fato seja apurado.

Outro ponto da reforma é a adoção do juiz sem rosto. Não se trata de nenhuma novidade, pois foi o sistema adotado na Colômbia nos anos 1990, depois de uma facção criminosa ter destruído a Suprema Corte e matado boa parte dos magistrados e servidores.

O sistema não deu certo, pois o nome dos autores secretos das sentenças, que se identificavam em ofício sigiloso ao presidente da Corte, “vazaram” e alguns juízes acabaram sendo identificados. Pagaram com a vida.

O risco a que em tal situação estão sujeitos os magistrados e agentes do Ministério Público no México, Colômbia, Equador, Brasil e outros países, deve ser combatido com legislação rigorosa, inteligentes estratégias e coragem. Esperar que juízes anônimos, afrontando o devido processo legal, sejam a solução, é medida populista sem previsão de bons resultados.

Outro ponto da reforma é extinguir o Conselho Federal da Magistratura, órgão semelhante ao nosso Conselho Nacional de Justiça, substituindo-o por um Tribunal Judicial Disciplinar. Acusa-se o CFM de condescendente no exame das representações contra os juízes. A acusação merece duas observações.

A primeira é que um enorme número de representações são fruto de inconformismo com uma decisão judicial ou mesmo de incompreensão do que foi decidido. A segunda é que o órgão talvez seja mesmo exageradamente tolerante. Não me atrevo a opinar a respeito, por desconhecer a realidade do Conselho. Se isto é verdade, é preciso, sim, ser corrigido.

A condescendência leva à revolta e sempre gera reações contrárias radicais. Punir, ou até mesmo investigar colegas, é uma má experiência. Mas quem ocupa uma posição deste tipo que assuma o seu dever. Evidentemente, dentro do respeito às normas vigentes.

Finalmente, a reforma prevê paridade de gênero. No Brasil os Tribunais de Apelação destinam 40% das vagas às mulheres e os concursos as aprovam indistintamente, por vezes, inclusive, em maior número. Sem necessidade de reforma constitucional.

Em conclusão

Esta é, em síntese, a situação a que se submeterá o Judiciário do México. Uma experiência sem volta que colocará a Justiça do país sob um enorme risco de politização e fortalecimento dos cartéis de drogas. Além, evidentemente, da fuga de investidores, que não se arriscarão a submeter-se a juízes sem nenhuma presunção de imparcialidade.

Os líderes da magistratura brasileira, nos tribunais e nas associações de classe devem prestar atenção ao assunto. Mas não só eles. Da mesma forma os outros órgãos do sistema de Justiça que seriam afetados, MP, OAB, DP e procuradorias.

Na nossa América Latina os temas se espraiam com rapidez e o Brasil é simpático a novidades. É verdade que nosso sistema de Justiça, por fatores diversos, não vai bem e atravessa uma crise de credibilidade. Mas o que não está bom pode ficar muito pior. O sinal amarelo está aceso.

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[1] Transparência Internacional. Índice de percepção da corrupção – 2023. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/. Acesso em 13 set. 2024.

[2] MEXICO. Congreso de la Ciudad de México. Congreso capitalino aprobó minuta para Reforma del Poder Judicial. Disponível em: https://www.congresocdmx.gob.mx/comsoc-congreso-capitalino-aprobo-minuta-reforma-poder-judicial-5492-1.html. Acesso em 13 set. 2024.

[3] MÉXICO. Reforma Judicial. Disponível em: https://www.reformajudicial.gob.mx/secciones/reforma/. Acesso em 14 set. 2024.

Autores

  • é professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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