Opinião

Máscara democrática da oligarquia, anistia aos envolvidos no 8/1 e pacote anti-STF

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

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15 de setembro de 2024, 14h22

Um dos grandes textos de nossa época é o livro/diálogo La Maschera Democratica dell’Oligarchia, resultado da conversação empreendida entre Luciano Canfora e Gustavo Zagrebelsky, em que discutiram temas universais sob as lentes dos problemas italianos, não obstante o vivo interesse que possa despertar também para os diálogos sobre os problemas de nosso país, como a discussão sobre a origem da oligarquia, os tecnocratas e o populismo.

Tiago Angelo/ConJur

O referido diálogo teve alguma caminhada de maturação e amadurecimento. Iniciou-se na feira do livro, em Turim, em maio de 2013, por ocasião da apresentação do livro Intervista sul Potere [1], de Luciano Canfora em conjunto com Antonio Carioti. Depois, prosseguiu em Bolonha, dois meses depois, no Archiginnasio, no âmbito de um evento promovido nas livrarias Coop. Finalmente, termina em Roma, em janeiro de 2014, no auditório Parco della Musica, depois de um dia na sede da editora.

A metáfora que anima o título, sobre uma “máscara” [2] utilizada para camuflar a oligarquia na multidão, é de significativo interesse, e remonta aos momentos iniciais do diálogo em que Zagrebelsky ensaia uma definição inicial, ao modo etimológico (dito elementar), para falar sobre a oligarquia, retomando, sequencialmente, o motivo pelo qual ela deve se disfarçar (mascarando-se):

“A oligarquia é o governo de poucos. Como tal, é um sistema de governo que concentra o poder em alguns (os poucos) e cria desigualdade em relação a outros (os muitos). Do ponto de vista do ideal democrático, baseia-se numa subtração, poderíamos dizer num roubo, de poucos em detrimento de muitos. Isto, por si só, cria um curto-circuito em relação à ideia democrática. Estou a falar de ideias, de categorias políticas, não de realidade, o que mostra sempre a tendência dos ‘muitos’” a serem reduzidos aos ‘poucos’, segundo o que tem sido definido como a ‘lei de ferro das oligarquias'” [3].

Disfarce

A metáfora surge, já na sequência, quando Zagrebelsky menciona que nos dias atuais nós vivemos numa época em que a democracia — como princípio, como ideia, como força legitimadora – é poder – e como tal estaria fora de questionamento. Por esta razão principal, portanto, se a oligarquia está se infiltrando em nossos regimes, deve fazê-lo em formas democráticas, vale dizer, “a oligarquia deve se disfarçar de alguma forma, mascarando-se, já que não pode aparecer abertamente como uma usurpação de poder, surgindo a questão de sua identificação por trás das aparências e a necessidade de disfarçar a sua substância” [4].

Spacca

A seu turno, quando a metáfora aparece através da manifestação de Luciano Canfora e Geminello Preterossi, ela surge através de uma explicitação de certos pressupostos, em que diz, citando o livro Tempo Guadagnato [5] (há boa tradução entre nós: Tempo Comprado) [6], do sociólogo alemão, Wolfgang Streeck, a partir do receio da possibilidade do divórcio entre o capitalismo e a democracia, disfarçada através de uma “máscara constitucional dos mercados”, quando Streeck teria sugerido um retorno ao Estado-nação, nem que seja para ganhar tempo, e sem esquecer dos evidentes riscos do perigo nacionalista ou, em qualquer caso, de um retrocesso, não obstante o problema permaneça presente, para além da resposta do sociólogo alemão, que demandaria uma pergunta: “o casamento de conveniência entre a democracia e o capitalismo estaria acabando?” [7].

É neste contexto que poderíamos dizer, sobre o cansativo embate entre a Câmara dos Deputados e o Supremo Tribunal Federal, em especial a recentemente noticiada “troca membros da CCJ para votar anistia a envolvidos no 8 de janeiro e pacote anti-STF”, que este ato possui evidente pretensão de minar o papel fiscalizador da Suprema Corte sobre um tal “casamento de conveniência entre a democracia e o capitalismo”, operado no seio da Câmara dos Deputados, algo que agasalha resquícios da oligarquia escondida atrás dos retalhos de uma máscara democrática, da qual nos falaram Canfora e Zagrebelsky.

Ataque violento ao ‘fiscal’

Na alça de mira das atuais reações de parcela do Congresso, o STF possui pesadas obrigações constitucionais, decorrentes do atual estágio do constitucionalismo democrático, como evitar abuso dos poderes governamentais, proteger direitos fundamentais e reforçar a ideia de Estado Democrático de Direito, tripé sob o qual se alicerça a própria Constituição de 1988, em que também está pressuposta a necessária salvaguarda contra disfarces de conveniência que busquem a erosão de nossas bases constitucionais e democráticas.

Se a oligarquia se camufla de certos traços e cores democráticas, e se para que ela, oligarquia, seja mantida, certos setores precisem fingir tolerar um “casamento de fachada” entre democracia e o capitalismo mais selvagem já imaginado, é natural que o fiscal, o Supremo, seja atacado violentamente como tem ocorrido, e mais natural ainda que se defenda, com isso defendendo a própria existência do Estado Constitucional e Democrático de Direito, necessitando denunciar — as vezes por palavras nubladas — as máscaras, disfarces e conveniências que seus detratores utilizam.

Emendas impositivas e baile de máscaras

Por isso, a história saberá julgar o acerto da decisão relatada pelo ministro Flávio Dino, chancelada pelo pleno da Suprema Corte, que suspendeu a execução das emendas impositivas de deputados federais e senadores ao orçamento da União, que também validou a suspensão das chamadas “emendas Pix”, no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.695/DF, apenas para citar um grande exemplo de como age o espírito oligárquico no parlamento e suas reações fracamente desproporcionais, igualmente disfarçadas sob argumentos falaciosos.

O mesmo ocorre com relação às decisões que se relacionam à demarcação das terras dos povos originários, aos aspectos constitucionais da proteção ambiental, e às medidas de proteção da saúde durante a pandemia de Covid-19 (e pós-pandemia), que encontram reação ardente da oligarquia mascarada que permanece fazendo algum barulho, denunciando seu disfarce, inclusive (e por causa disso) quando a Suprema Corte recusa convites para participar de um tal baile de máscaras, quando é tempo de elas não mais existirem.

 


[1] CANFORA, Luciano. Intervista sul potere, a cura di Antonio Carioti. Roma: Laterza, 2013.

[2] A título de acréscimo, sobre a perspectiva da metáfora (“máscara”), confira-se ainda o texto de Carla V. Sales, em abordagem que visita abordagens de Schumpeter e Dahl. Cfr.: SALES, Carla V. As Máscaras da Democracia: Notas Sobre a Teoria Democrática Contemporânea à Luz dos Eixos Dahlsianos. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 233-245, jun. 2005.

[3] ZAGREBELSKY, Gustavo; CANFORA, Luciano. La maschera democratica dell’oligarchia: Un dialogo a cura di Geminello Preterossi. Roma: Laterza, 2014, p. 6.

[4] ZAGREBELSKY, Gustavo; CANFORA, Luciano. La maschera democratica dell’oligarchia: Un dialogo a cura di Geminello Preterossi. Roma: Laterza, 2014, p. 7.

[5] O título original é: “Gekaufte Zeit: Die vertagte Krise des demokratischen Kapitalismus, Berlin, Suhrkamp Verlag, 2013”. A referência, no entanto, é a versão italiana. Cfr.: STREECK, Wolfgang. Tempo guadagnato: La crisi rinviata del capitalismo democratico. Roma: feltrinelli, 2013.

[6] STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2017.

[7] ZAGREBELSKY, Gustavo; CANFORA, Luciano. La maschera democratica dell’oligarchia: Un dialogo a cura di Geminello Preterossi. Roma: Laterza, 2014, p. 72.

Autores

  • é doutor em Direito e Políticas Públicas, com estudos de pós-doutoramento pela UnB , no PPG-LIT (Programa de Pós-Graduação em Literatura), com o tema Direito, Literatura & Distopia, professor Universitário, membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais, membro Associação Nacional de Escritores, membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil, membro da Associação Nacional da Advocacia Criminal, ex-assessor de ministro do STF, advogado e sócio de Aguiar de Pádua & Lima Sociedade de Advogados.

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