Senso Incomum

Caso Silvio Almeida: o fato político fagocitou o fato jurídico(?)

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12 de setembro de 2024, 8h00

Vejam que o título contém um ponto de interrogação, mas que pode não ser um ponto de interrogação. A interpretação é dos leitores.

O espírito do tempo (Zeitgeist) das redes sociais aponta para esse novo modo de encarar os fenômenos que envolvem moral, política e direito. Já não se interpreta como dantes. Cada dia aumenta o viés. De dos tipos:

(1) O viés de confirmação, pelo qual o opinador apenas confirma a sua opinião e encontra um modo de o fazer;

(2) Tem também o “viés do autor do fato”, isto é, como se em face (da qualidade, dos atributos) do autor a cognição do fenômeno mudasse, exsurgindo, nessa linha, (a) o viés de gênero (veja-se Protocolo de Julgamento sob a Perspectiva de Gênero, expedido pelo CNJ, em que o problema já está no próprio título, que regionaliza a visão sobre um determinado tema), (b) o viés de raça, (c) de meio-ambiente (fala-se em “ponderação verde”), (d) de sexualidade, (e) de machismo ou (f) até mesmo viés de origem de textos, como se pode ver pelas teses de(s)colonialistas.

Para explicar

A hermenêutica possui caráter universalizante, porque a realidade não é, e nem o direito, interpretada em fatias morais ou ideológicas. De todo modo, pelo princípio da caridade epistêmica (Blackburn e Davidson), entendo que todas essas pautas e iniciativas são gestadas na mais boa boa-fé. Parto dessa premissa.

O recente episódio envolvendo Silvio Almeida engloba vários desses aspectos “viezísticos”.  Criam-se as “hermenêuticas regionais”. Ou tais “interpretações” (apenas) são efeitos colaterais do Zeigeist, mesmo que os contendores não confessem ou nem tenham (tido) essa intenção.

O terreno é fofo, arenoso. Há muito fofismo juspolítico na discussão. Facilmente quem se atreve a comentar pode afundar. Nesse âmbito — e principalmente na especificidade envolvendo gênero — corre-se o risco de confundir o correto com o verdadeiro. Calma. Explicarei. Trata-se de uma questão hermenêutica. Que não é regional.

Há um enunciado antigo — e agora reforçado pelo viés (que é o mesmo que “perspectiva”) de gênero até mesmo institucionalizado pelo CNJ no referido Protocolo — pelo qual a palavra da vítima nos crimes sexuais assume foros de plenipotenciaridade. Uma espécie de direito penal do autor, se traduzirmos para uma linguagem contemporânea.

Spacca

Hermeneuticamente, não é incorreto afirmar que nos crimes sexuais a palavra da vítima ter fundamental importância, pelas características do delito. Há décadas a jurisprudência diz isso. E, agora, com a alteração dos tipos penais, a questão assume ainda maior relevância.

Chamo a atenção que o enunciado, que é correto, pode, porém, não ser verdadeiro. Porque nem sempre o correto é verdadeiro, porque este, o verdadeiro, exige incursão no caso concreto. “Chove lá fora” é um enunciado correto, empiricamente verificável sempre, mas pode não ser verdadeiro “se não estiver chovendo lá fora”.

A isso se chama “fazer uma epistemologia de como se forma uma prova”. Para o enunciado correto ser considerado verdadeiro necessita ser comprovado com elementos objetivos — chamados de prova, conforme discuto no Dicionário de Hermenêutica e no Verdade e Consenso, a partir da questão “correto” v. “verdadeiro” (chamo a isso de Condição Hermenêutica de Sentido).

Querem testar a tese?

Vamos lá. O presidente Lula fez um enunciado correto, quando disse que “acusações de assédio sexual são inadmissíveis no seu governo”. Todos concordamos. Mas esse enunciado somente será verdadeiro se, de fato, estiver provado o assédio sexual.

Repetindo: nem de longe é incorreto dizer que nos crimes sexuais a palavra da vítima é fundante…, porém isso por vezes nem de longe pode significar que seja verdadeiro no caso concreto. Caso contrário, o enunciado é meramente metafísico (no sentido ontoteológico do termo).

A pergunta que fica é: o Zeitgeist chegou ao ponto de dispensar a prova de que fala qualquer sistema de estado democrático e sistema de garantias? Existem hermenêuticas regionais pelas quais a prova pode ser relativizada por meio de vieses (como é o caso do viés ou perspectiva de gênero previsto em Protocolo do CNJ)? Disso ainda teremos que falar muito no futuro. E no presente.

Reconheço a delicadeza do assunto, num mundo em que já foi destruída a estátua do cientista que inventou a Lei pela qual de “um é não se pode tirar um deve”.

Além disso, a questão posta no debate é a de que Silvio foi demitido no âmbito (apenas) político, como se âmbitos desse tipo (politico, jurídico e moral) pudessem ser cindidos. Volto logo a isso.

Antes, arrisco trazer um exemplo que se encaixa neste Zeitgeist. E, por favor, não briguem com o mensageiro. Fui ao médico e, na volta, chamei um Uber. Dirigido por uma mulher. No caminho, pus-me a ler um livro que levei no consultório (levem sempre um livro quando forem a um médico).

Ex-ministro Silvio Almeida

Desci, dei a nota 5 estrelas e acrescentei o valor que sempre faço, cheguei em casa e pensei com meus botões: se, por alguma contingência que ninguém domina, a distinta senhora ou senhorita fosse a uma delegacia e denunciasse um assédio de minha parte. Ou delito de injúria racial, se ela fosse negra. E, ao tempo em que o BO era feito, lá estivesse um jornalista e, no jornal da TV do meio-dia, a manchete: Fulano assedia motorista… O resto imaginem. Como provo o contrário?

E, vejam. Aqui entra o duplo aspecto. O “fato” político-moral e o “fato” jurídico. No âmbito do fato-político-moral, sendo eu figura (mais ou menos) pública, já estaria lascado. O tribunal da mídia julga rápido. O travesseiro de penas jogado do alto da torre mais alta da igreja.

Trata-se de uma neo-ordália. Prova do demônio. Eu prefiro até a prova do “pintinho da tribo Azende” (um veneno, previamente preparado por pajés, é dado ao pintinho; se ele sobreviver, você é inocente).

Do ponto de vista do fato jurídico, o furo será (um pouco) mais embaixo. Mesmo com viés etc., até existe a chance de ser absolvido. No primeiro (fato político-moral), derrota certa, como foi o caso de Silvio. No segundo (jurídico), a luta apenas começa. Se vencer, perde. Se perder, perde. A questão é: é possível separar o político do jurídico?

Soma zero

Um dilema. O que é dilema? É quando qualquer decisão é desastrosa para o réu. Não há como vencer.

Então, o que não deveria ocorrer? Não deveríamos ter medo de opinar sobre esses assuntos. Mas temos medo por causa do Tribunal do Zeitgeist dos vieses. Das hermenêuticas regionais.

No caso, Silvio já foi defenestrado em pleno voo, com a desculpa (ou justificação política) de que esse defenestramento não foi jurídico, foi (apenas) político. E que no “fato jurídico” há(verá) ampla defesa. Mas, pergunto: de que adianta(rá)? Aliás, interessante notar: a exposição é público-midiática; já a apuração disso tudo é… sigilosa.

Fica a pergunta: a política está tão irracional que se dá ao luxo de ignorar o jurídico? Está tão destrambelhada a política que dispensa o “devido processo racional?

Se a política permite julgamentos sumários (ao que se viu, sim), então temos não apenas problemas no campo jurídico; temos seríssimos problemas no campo político. Que optou em se autoproclamar “o Tribunal”. O grande Tribunal.  A política chega ao ponto do modelo do juiz interpretado por Stallone que, no futuro distópico, sumariava os réus?

Como retranca que deveria ser desnecessária, não estivéssemos no Zeitgeist do sumarismo: as vítimas devem ser apoiadas, respeitadas e o Estado deve cuidar delas. Mas o ônus da prova continua sendo do Estado. Não é do réu. É, afinal, o ônus de qualquer regime democrático.

Devemos ler as Eumênidas, da trilogia Oresteia (minhas aulas iniciam com a peça!). Orestes mata a própria mãe e estava lascado. A “lei” determinava” que as deusas da Raiva e do Ódio (que agora se mudaram para as redes sociais) se vingassem e “comessem” o rim e o fígado do Orestes. Pois não é que a Juíza Palas Atena concedeu um julgamento a Orestes? Com acusação e defesa? Com imparcialidade? E não é que Orestes foi absolvido?

Bom, se não quiserem ler Ésquilo, leiam Guimarães Rosa, Grande Sertões, no julgamento de Zé Bebelo… Tudo muito parecido.

Há uns anos, apanhei muito quando escrevi sobre o caso do “ejaculador do ônibus” (aqui). Mas meu ponto era simples: não podemos cair num positivismo raso de que “ah, não condenamos legalmente, mas condenamos moralmente”. Há que se ler Alasdair MacIntyre. Ao menos seu diagnóstico.

Se MacIntyre é controverso demais, fiquemos com um liberal soft como Jerome Waldron. Vivemos em tempos de desacordos profundos. Agimos como se o emotivismo (essa praga contemporânea) fosse verdadeiro. Daí o papel do direito: o de “segurar” esses desacordos (disagreements), agindo como filtro institucional. Ignorar o jurídico, assim, significa dar um passo em direção à barbárie.

Vale para os inimigos e para os amigos. Como por exemplo, a questão que envolve a Lei de Proteção de Dados (LGPD) e o papel da ONG Me Too (falo do tratamento dos dados), questionado por Reinaldo de Azevedo no UOL.

Se fosse fácil, todo mundo defenderia o rule of law. A civilização tem seus desafios. Mas o bônus compensa o ônus. Meu apelo aos democratas: não saiamos agindo como gente que amarra “bandido” em poste, que lincha, que acha que “bandido bom é bandido morto” etc. A linha entre os justiçamentos é bem tênue. E os justiçamentos são de todo o tipo. Do poste às telas… de smartphones, folhas de jornal e computadores.

Luiz Eduardo Soares — para mim, absolutamente insuspeito nessa história — disse bem, quando chamou de condenação perpétua. Incompatível com o paradigma constitucional. Diz ele:

“O conflito seríssimo entre a necessidade de legitimar a voz das vítimas, tomando a sério as acusações, e, ao mesmo tempo, respeitar a presunção da inocência e o direito de defesa, este conflito está longe de ter sido resolvido, seja legalmente, seja cultural, moral e politicamente. Estamos pendurados sobre o abismo por um fio, e para que ele não se rompa temos de, pelo menos, penso eu, ter humildade e extremo cuidado ante casos desse tipo, casos que essa situação dramatiza de forma tão intensa, por suas implicações” (grifos meus)

E, insisto, rejeito o positivismo fofo (o fofismo está na moda) de quem diz que “ah, mas é julgamento moral”. E, em que momento, não é? Ora, sempre é moral, porque é impossível separar direito e moral. Ademais, não existem fatos brutos. Meu julgamento de moralidade política é simples (e complexo): fico com o direito, que abarca a moral. Para o bem e para o mal, porque o mal, aqui, é o menor deles.

Estou dizendo que a palavra de uma vítima não importa? Que é mentira? Que Anielle, que quaisquer mulheres vítimas de quaisquer crimes ou agressões não merecem respeito, credibilidade? Óbvio que não. Só estou dizendo que se deve ter cautela com justiçamentos que não esperam o tempo da lei. Condenações políticas e morais não são cindíveis do direito e do rule of law.

Mais

Condenações rotuladas como “meramente políticas” não têm o condão de criar dois mundos separados: o do direito e o da política. Ou o da moral. Essa discussão já deveria estar ultrapassada, depois de rios de tintas que já se gastou sobre isso.

É isso. De um “é” (fato) não se tira um deve (proposição de moral). É a Lei de Hume. Também chamada de guilhotina de Hume. Que corta cabeças.

Cuidado com o viés de confirmação, que tem uma longa história. Em 1620, Francis Bacon assim conceituou:

Uma vez que o entendimento de uma pessoa se baseia em algo (seja porque é uma crença já aceita ou porque o agrada), isso atrai tudo a sua volta para apoiar e concordar com a opinião adotada.

E lembremos de C. Pierce: quando já não é o raciocínio que determina a conclusão, o resultado inevitável será a rápida deterioração do vigor intelectual. A pessoa perde sua concepção de verdade e razão e o raciocínio passa a ser meramente decorativo.

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