Protagonismo revigorado

Extrajudicialização dá cara nova aos cartórios e reduz carga do Judiciário

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11 de setembro de 2024, 8h49

A velha previsão do fim dos cartórios no Brasil, amparada pelo apelo à desburocratização, tem dado lugar a uma tendência no sentido oposto, impulsionada pela necessidade de reduzir o acervo do Poder Judiciário.

Imagem mostra, em detalhe, pessoa aplicando carimbo em um documento

Serviços notariais e de registro vem ganhando novas atribuições

Tradicionalmente associados à ineficiência e à morosidade, os serviços notariais e de registro estão se transformando, ganhando cada vez mais autonomia para lidar com questões antes exclusivas dos tribunais, que tentam dar agilidade a processos relativamente simples, mas, ainda assim, trabalhosos. O fenômeno tem nome: extrajudicialização.

O episódio mais recente dessa mudança ocorreu no último dia 20, quando o Conselho Nacional de Justiça editou um ato normativo para permitir que inventários, partilhas de bens e divórcios consensuais sejam feitos em tabelionatos de notas ainda que envolvam herdeiros com menos de 18 anos ou incapazes. Trata-se da Resolução 571/2024.

“A possibilidade de realizar esses atos de forma extrajudicial reduz a sobrecarga do Judiciário, permitindo que casos possam ser resolvidos de maneira mais rápida e eficiente diretamente nos Cartórios de Notas, já conhecidos por realizar divórcios consensuais e inventários sem menores ou incapazes”, diz Ana Paula Frontini, tabeliã titular do 22º Tabelionato de Notas de São Paulo e diretora do Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil (CNB).

Divórcios e inventários

Em São Paulo, a medida do CNJ deve elevar a quase 60% a quantidade de divórcios feitos em tabelionatos, segundo a seccional paulista do CNB. Atualmente, também conforme a entidade, 77,5% dos atos são feitos pela via judicial e 22,5%, pelos tabeliões, isso quando há consenso entre as partes e não há menores envolvidos.

No caso dos inventários, a mudança deve resultar em maior celeridade, já que a tramitação não vai depender de homologação judicial. Será exigido apenas que haja consenso entre os herdeiros e que, no caso de menores de idade ou de incapazes, o procedimento lhes garanta a parte ideal de cada bem a que tiverem direito, sob supervisão do Ministério Público.

A resolução também ampliou os poderes do inventariante nomeado extrajudicialmente, que poderá levantar valores para pagar despesas do espólio. Além disso, ela criou a possibilidade de lavratura de inventário extrajudicial mesmo quando o convivente sobrevivente for o herdeiro sucessor, desde que a união estável esteja previamente reconhecida, conforme explica Hércules Benício, tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante, em Brasília.

“Há, igualmente, inovadora previsão de escritura de declaração de separação de fato consensual, para estabilizar a prova de que cessou a comunhão plena de vida entre o casal. Tais dispositivos tornam mais céleres diversas questões relativas a Direito de Família e das Sucessões”, afirma Benício, que preside a seccional do Distrito Federal do CNB.

Braço do Judiciário

Presidente da Comissão Especial de Direito de Família do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a advogada Ana Vládia Feitosa explica que a resolução se insere em um contexto maior de extrajudicialização.

“É uma medida que, em tese, vai proporcionar celeridade, desburocratização, e ampliar o acesso à Justiça, porque, quando a gente pensa nisso, especialmente depois do Código de Processo Civil de 2015, que prevê outras formas de solução de conflitos, fica muito claro que ter acesso à Justiça é muito mais do que ter acesso ao Judiciário propriamente dito, mas, sim, a um sistema de Justiça multiportas, incluindo as serventias cartorárias, que passam a ser um braço disso.”

Felipe Russomanno, sócio da área de Família e Sucessões do escritório Cescon Barrieu, concorda com essa avaliação: “Os cartórios são supervisionados pelas corregedorias dos Tribunais de Justiça, então, pela própria estrutura, são uma extensão do Judiciário. Mas, permitindo que esse tipo de serviço seja realizado pelos tabelionatos, você ratifica essa estrutura, dá mais autonomia para as partes e dá mais celeridade a ele”.

Tendência em normas

O tabelião Hércules Benício lembra que a tendência de extrajudicialização já vem desde 2004, quando a edição da Lei 10.931 permitiu a retificação administrativa nos Ofícios de Registro de Imóveis.

De lá para cá, segundo ele, a legislação avançou para autorizar a lavratura de inventários e divórcios que não envolvessem menores ou incapazes (Lei 11.441/2007); o registro tardio de nascimento para maiores de 12 anos sem a necessidade de intervenção judicial (Lei 11.790/2008); e a retificação nos Ofícios de Registro Civil sem intervenção judicial e sem a necessidade de oitiva do representante do Ministério Público (Lei 12.100/2009 e Lei 13.484/2017).

Também surgiram a possibilidade de mudança de prenome extrajudicialmente para os maiores de 18 anos e hipóteses de alteração de sobrenome sem intervenção do juiz, graças à Lei 14.382/2022. “Ademais, com a Lei 14.711/2023, a execução de dívida garantida por hipoteca passou a ser viável extrajudicialmente”, diz o presidente da CNB/DF.

Direito Imobiliário

A tabeliã Ana Paula Frontini, por sua vez, destaca dois marcos normativos associados ao Direito Imobiliário: a permissão para pedidos extrajudiciais de usucapião e a permissão para pedidos de adjudicação compulsória (Leis 13.105/2015, 13.465/2017 e 14.382/2022).

“São exemplos significativos, que têm alavancado a atuação dos cartórios em competências antes exclusivas do Judiciário. E surgiram outras novidades, como a Escrow Account, as Smart Escrituras e Arbitragem Notarial.”

Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da seccional paulista da OAB, a advogada Anna Lyvia Ribeiro reforça que essas duas mudanças transformaram a atuação dos cartórios na área, uma vez que, até então, o serviço de registros era utilizado apenas pela obrigatoriedade de formalizar transações imobiliárias.

“A atividade extrajudicial tem sido muito utilizada em relação ao Direito Imobiliário nessa perspectiva de ter uma resposta mais rápida sobre questões que envolvem a regularização de imóveis e a realização de negócios.”

Como exemplo, Anna Lyvia conta que já teve a indicação, em um caso de usucapião, de que a tramitação extrajudicial, ainda que bastante criteriosa, levaria de um a dois anos, enquanto a apreciação do Judiciário poderia exigir até uma década. De todo modo, ela sugere uma avaliação para cada circunstância, já que “por vezes, pela complexidade e eventual irregularidade que possa ter um imóvel, é melhor ir ao Judiciário, ainda que demore mais”.

Cultura de litigância

No entendimento de Felipe Russomanno, o critério para levar uma demanda ao Judiciário deve ser o litígio. Do contrário, a escolha deve ser pela via extrajudicial. “Quando há um consenso, me parece não fazer sentido (ir ao Judiciário). E como a gente tem uma máquina judiciária abarrotada, tirar do crivo judicial questões que podem ser resolvidas de maneira mais rápida tende a melhorar a qualidade e a celeridade da prestação jurisdicional.”

Hércules Benício defende que a atuação dos cartórios poderá avançar ainda mais a partir de novas mudanças normativas: “A alteração do regime de bens no casamento deveria ser autorizada, por exemplo, por meio da lavratura de escritura pública. Todavia, o Código Civil vigente (art. 1.639, §2º), por ora, impõe a intervenção judicial para tal finalidade”.

Já as advogadas Anna Lyvia Ribeiro e Ana Vládia Feitosa concordam que, para além de normas, a escolha pela extrajudicialização depende também de uma superação da cultura de litigância no país.

“A população tem de passar a confiar nesse sistema cartorário, porque há ainda uma cultura muito forte de a sentença judicial ser o documento total de imperatividade, que o Judiciário é quem resolve”, diz Ana Vládia.

E Ana Paula Frontini espera que, assim como a previsão do fim dos cartórios, esse receio também seja deixado para trás em breve: “Ainda existe alguma resistência, especialmente por parte de pessoas que não estão familiarizadas com o papel e as funções dos cartórios. No entanto, essa percepção está mudando à medida que mais informações sobre a segurança jurídica e a eficácia dos atos extrajudiciais são divulgadas”.

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