Opinião

A palavra da vítima nos crimes sexuais e a presunção de inocência

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11 de setembro de 2024, 6h03

Sem adentrar nas diversas classificações de vítimas trazidas por Benjamin Mendelsohn, considerado por muitos como o pai da Vitimologia, ou mesmo as apresentadas por Hans Von Henting em sua obra O criminoso e sua vítima, de 1948, adota-se aqui o simples e genérico conceito de vítima ou ofendido como aquele que sofre a conduta violatória da norma penal [1].

Nos crimes de natureza sexual, geralmente cometido às ocultas, na clandestinidade, sem presença de testemunhas, na calada da noite ou mesmo do dia, a palavra de quem se diz vítima ganha relevante destaque como elemento de prova.

Todavia, tal premissa não se faz absoluta. Se por um lado não se pode desprezar as declarações da vítima, o que poderia, inclusive, ser considerado detestável discriminação, por outro é necessário preservar os direitos e garantias fundamentais daquele sobre o qual recai uma acusação criminal, notadamente, em nome do princípio constitucional da presunção de inocência.

O inegável interesse da vítima

Deve ser levado em consideração que diversos fatores podem influenciar um depoimento pessoal de quem tem interesse direto na causa.

Ademais, salienta-se que a vítima – que não é testemunha – não presta compromisso legal de dizer a verdade e, portanto, não pode ser responsabilizada pelo crime de falso testemunho (artigo 342 do CP), embora, conforme o caso, possa ser responsabilizada pelo crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do CP).

Segundo Gustavo Badaró, a avaliação das palavras da vítima deve ser feita com especial cautela:

“no caso da oitiva do ofendido, suas palavras devem ser recebidas com grande reserva, pelo seu inegável interesse no resultado do processo. (…) a palavra da vítima, de forma isolada, não pode embasar um decreto condenatório, pois, como advertia Costa Manso, ‘se assim não fosse, ilusório serio o direito, e a liberdade de cada um estaria sempre ameaçada pela palavra de qualquer mulher, dada à chantagem, à fantasia ou mesmo de outras más tendências” [2].

Em igual sentido, Aury Lopes Jr. para quem

“Deve-se considerar, inicialmente, que a vítima está contaminada pelo “caso penal”, pois dele faz parte. Isso acarreta interesses (diretos) nos mais diversos sentidos, tanto para beneficiar o acusado (por medo, por exemplo) como também para prejudicar um inocente (vingança, pelos mais diferentes motivos). Para além desse comprometimento material, em termos processuais, a vítima não presta compromisso de dizer a verdade (abrindo-se a porta para que minta impunemente)” [3].

A necessidade de absoluta certeza

Não se pretende negar aqui a relevância da palavra da vítima quando corroborada por outros elementos de prova, colhidos sob o crivo do contraditório, por meio do qual foi assegurado ao acusado o direito à ampla defesa. Entretanto, é preciso salientar que a prolação de sentença condenatória pressupõe prova firme e robusta.

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Deste modo, para uma justa ponderação, necessário que se faça uma análise minuciosa de todas as circunstâncias que permeiam os envolvidos quando da realização da valoração dos depoimentos prestados.

Nos tribunais do país, a jurisprudência oscila no que se refere à condenação por crime sexual com base exclusiva no depoimento da vítima. Contudo, há vários julgados no sentido de que na ausência de provas quanto ao delito, deve prevalecer a aplicação da máxima in dúbio pro reo, vigente em nosso ordenamento jurídico.

É incontestável a necessidade de absoluta certeza para prolatar uma sentença penal condenatória. Admitir o contrário é relativizar – eufemismo de afrontar – a necessidade de obediência ao constitucional princípio da presunção de inocência.

No seu instigante Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos, Alexandre Morais da Rosa assevera que

“Por força da presunção de inocência, o acusado deveria iniciar a ação penal absolvido, derrotando-se no decorrer do jogo penal status de inocência, razão pela qual a carga probatória é toda da acusação no tocante aos fatos constitutivos da denúncia ofertada (…). Ao acusado não cabe provar qualquer conduta descrita na narrativa da denúncia. Compete ao autor da ação penal a obrigação de produzir todas as provas necessárias à formação da convicção do julgador, no círculo hermenêutico prova/fato” [4].

Salienta-se, ainda, que o princípio da presunção de inocência é correlato ao princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária). Para Ferrajoli “se é atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena”. Mais adiante o respeitável jurista italiano assevera que o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado[5].

Por fim, não é demais martelar que ninguém, absolutamente ninguém, será considerado culpado enquanto não houver uma sentença transitada em julgado. Posto que, gostemos ou não, a Constituição da República Federativa do Brasil consagrou o princípio da “presunção de inocência”.

 


[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, 3º volume. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.291.

[2] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 467.

[3] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.473.

[4] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. ed.. Florianópolis: Empório do Direito 2016, p. 376.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

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