Opinião

Prisão imediata após julgamento pelo Tribunal do Júri frauda a Constituição

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10 de setembro de 2024, 13h20

O RE 1.235.340/SC entrou no calendário de julgamento do Supremo Tribunal Federal publicado no DJe de 2/9/2024. Com isso, o Tema 1.068 da Repercussão Geral, que discute se “a soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados” [1], está em vias de ser decidido pela Corte Constitucional.

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A inclusão do Tema 1.068 no calendário de julgamento se deu no mesmo dia em que foi publicada a decisão monocrática proferida pelo ministro Dias Toffoli no RE 1.486.671, conhecido como “caso da boate Kiss”, constando da referida decisão que:

“À época do julgamento das ADCs nº 43, 44 e 54 [sic.], julgadas em 12/11/2020, refleti sobre as consequências do incidente na boate Kiss, em especial os prejuízos causados às vítimas e seus familiares decorrentes da disfunção do microssistema do júri e da falta de resolução efetiva” [2].

A alegada “disfunção do microssistema do júri” e “falta de resolução efetiva” chama muita atenção e enseja alguma problematização da matéria objeto da repercussão geral.

Função protetiva

O julgamento perante o Tribunal do Júri representa uma garantia individual da pessoa imputada, ou seja, é uma garantia do réu ser julgado por seus pares quando se tratar de imputação da prática de crime doloso contra a vida. Por isso o júri está previsto no artigo 5º, XXXVIII, da Constituição, e assegura ao indivíduo que o julgamento perante seus pares se dará com plenitude de defesa e as votações serão sigilosas e soberanas.

Necessário, portanto, compreender neste contexto a que se presta a soberania dos veredictos. Essa soberania é uma garantia dos imputados? Sendo ela uma garantia dos imputados, pode ser empregada para justificar prisão antecipada?

Como a soberania dos veredictos está inserida no artigo 5º da Constituição, não se pode ter dúvidas de que se trata de uma garantia individual do imputado. Essa soberania representa que o Estado não poderá selar o destino do imputado nos julgamentos perante a assembleia popular.

Significa que, aos imputados, é assegurado o julgamento por seus pares, que estarão livres de qualquer influência ou ingerência do Estado para, soberanamente, decidir a situação jurídica do indivíduo.

É, portanto, uma garantia que funciona, por óbvio, em favor do imputado, assegurando-lhe que seus pares, soberanamente e com base em sua íntima convicção, decidirão seu caso sem se sujeitarem à eventual interferência do poder estatal.

Fraude à Constituição

Disso decorre que sustentar que a soberania dos veredictos autoriza a execução da condenação pelo júri contraria o próprio caráter teleológico dessa norma fundamental. A soberania dos veredictos e a presunção de inocência são normas fundamentais que instituem garantias e, como tal, exercem uma função protetiva dos direitos fundamentais dos imputados passíveis de afetação no âmbito da persecução penal, especialmente do direito fundamental de liberdade.

Spacca

Empregar uma garantia fundamental que exerce função protetiva do direito fundamental de liberdade para restringir precocemente a própria liberdade contraria inteiramente a finalidade da norma fundamental.

Seguir este caminho caracterizará um caso de fraude à Constituição, que é a tentativa de interpretar uma garantia contra ela mesma. Não existe conflito entre as garantias fundamentais do julgamento perante o júri e a presunção de inocência, de modo que não se pode criar uma exceção a presunção de inocência, mesmo no caso de condenação pela assembleia popular.

A autoridade que decorre da soberania é aquela que obsta a interferência dos aparatos de Estado na convicção dos jurados, obsta a interferência no julgamento e assegura a validade da decisão tomada pela sociedade em assembleia popular. Não se confunde, portanto, com uma imaginada força executiva imediata, que se alinha mais com arbitrariedade que com autoridade, justamente porque o caráter teleológico deste direito está alinhado com as demais garantias fundamentais.

O julgamento pelo júri não pode, portanto, acarretar para o imputado consequência mais gravosa que o julgamento por juiz togado, vez que o julgamento por seus pares é uma garantia individual. Assim, tem-se que o julgamento pelo júri não legitima o afastamento do decidido nas ADCs 43, 44 e 45 pelo Supremo Tribunal Federal, pois violaria a garantia da presunção de inocência.

Necessário ainda destacar que a legislação ordinária, especificamente o artigo 492, I, ‘e’, do Código de Processo Penal, não se presta, por óbvio, a justificar a fraude à Constituição, pois, a bem da verdade, tal dispositivo demanda a realização de interpretação conforme, vez que há precedente vinculante do Pleno do STF no sentido de que a execução da pena privativa de liberdade só poderá ser iniciada após o trânsito em julgado da condenação, de modo que a prisão antes de trânsito em julgado só poderá ocorrer por decisão individualizada, com a demonstração da existência dos requisitos para a prisão preventiva, em consonância com o princípio da presunção de inocência.

Impacto do entendimento

Estas considerações foram por mim lançadas no Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária — 2024/2027 [3], aprovado à unanimidade pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), ao abordar a “prisão provisória nos limites constitucionais”, ocasião em que se considerou ainda o inegável impacto que eventual entendimento no sentido da prisão imediata após julgamento condenatório perante o tribunal do júri acarretará para o sistema prisional, que terá que absorver mais presos provisórios num contexto de estado de coisas inconstitucional reconhecido na ADPF 347 pelo próprio Supremo.

Oxalá tais considerações encontrem eco também no julgamento do Tema 1.068 da Repercussão Geral!

 

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[1] O Tema 1068 acaba por abarcar a própria discussão acerca a (in)constitucionalidade do artigo 492, I, ‘e’, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei 13.964/2019, denominada “Pacote anticrime”.

[2] Notícia: STF restabelece condenações no caso da boate Kiss e determina prisão de réus. Disponível em: <<https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-restabelece-condenacoes-no-caso-da-boate-kiss-e-determina-prisao-de-reus/>> Acesso em 4 set 2024.

[3] Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária: Quadriênio 2024-2027. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/composicao/cnpcp/plano_nacional/plano-nacional-de-politica-criminal-e-penitenciaria-2024-2027.pdf Acesso em: 4 set 2024.

Autores

  • é mestre em Direito Processual pela PUC-Minas, conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, professor de Processo Penal no Cedin, ex-presidente do Conselho Penitenciário de Minas Gerais e advogado criminalista.

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