Opinião

O grito silencioso do dano espiritual: a ausência de cemitério em Pacaraima

Autor

  • Frederico Cesar Leão Encarnação

    é mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa) mestre em Segurança Pública Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Estadual de Roraima (UERR) e defensor público do estado de Roraima.

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10 de setembro de 2024, 21h16

Imagine viver em uma comunidade onde, ao perder um ente querido, é necessário percorrer longas distâncias para realizar o sepultamento. Essa é a realidade enfrentada pelos moradores de Pacaraima, um pequeno município localizado no extremo norte de Roraima, na fronteira com a Venezuela.

Sem um cemitério local, a população — composta em grande parte por pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, incluindo indígenas e migrantes venezuelanos — é obrigada a transportar os corpos para outras cidades, como Boa Vista, a mais de 200 quilômetros de distância.[1]

Os cemitérios, tradicionalmente considerados sagrados, são essenciais tanto para a saúde pública quanto para a preservação cultural. A Constituição de 1891 secularizou esses espaços, transferindo sua administração para os municípios, mas permitindo que cemitérios privados possam ser mantidos por associações religiosas, desde que autorizados pelo poder público [2].

De toda sorte, a gestão adequada dos cemitérios previne riscos à saúde pública e ao meio ambiente, como a contaminação por necrochorume, um líquido resultante da decomposição inadequada dos corpos, que pode poluir o solo e as águas subterrâneas, destacando a responsabilidade municipal em garantir uma infraestrutura funerária adequada [3].

O dever de fornecer justificativas

A prefeitura de Pacaraima justifica a ausência de um cemitério local com base na inviabilidade geológica do solo, rico em caulim, um minério que dificultaria a decomposição dos corpos. Contudo, tal explicação ignora a necessidade de estudos mais aprofundados e de alternativas tecnológicas que possam viabilizar a construção de um cemitério.

Nesse caso, o município tem o dever de fornecer justificativas bem embasadas; afinal, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, “o serviço funerário é da competência municipal, porquanto se trata inegavelmente de assunto de interesse local; incide, pois, o art. 30, I, da CF” [4]. No mesmo sentido, afirma Hely Lopes Meirelles que “o serviço funerário é da competência municipal, por dizer respeito a atividades de precípuo interesse local, quais sejam, a confecção de caixões, a organização de velório, o transporte de cadáveres e a administração de cemitérios” [5].

Spacca

A falta de um cemitério em Pacaraima levanta questões que atravessam diferentes áreas do conhecimento. Do ponto de vista jurídico, o problema vai além da responsabilidade municipal, tocando em direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, o direito a um sepultamento digno, a liberdade religiosa, o direito à saúde, ao meio ambiente equilibrado e à preservação cultural e espiritual — todos garantidos pela Constituição de 1988 e por convenções internacionais.

Dimensão espiritual

Com efeito, a dignidade humana abrange a dimensão espiritual, assegurando não apenas a proteção do corpo, mas também a integridade moral do indivíduo após a morte [6]. Nessa perspectiva, Ingo Wolfgang Sarlet [7] aborda a proteção dos direitos fundamentais após o falecimento, citando o caso “Mefiso” do Tribunal Constitucional Federal Alemão, que garantiu a dignidade humana e os direitos de personalidade, como o respeito ao nome, privacidade, honra e o direito a um funeral digno.

Desse modo, apesar de importantes vozes em sentido contrário, o direito ao sepultamento digno é parte indissociável da dignidade humana, envolvendo tanto o respeito à memória dos mortos quanto o direito das famílias de realizarem seus rituais de luto. Láercio José Loureiro dos Santos, por exemplo, considera que “o sepultamento é um direito de natureza jurídica constitucional que decorre do princípio da dignidade humana dos entes sobreviventes e que guarda semelhança com o direito de ir e vir, no aspecto permanecer” [8].

Portanto, independentemente da visão adotada sobre a extensão da proteção dos direitos fundamentais, a ausência de um cemitério em Pacaraima desconsidera o valor intrínseco das pessoas e suas crenças, comprometendo o direito ao sepultamento e obrigando as famílias a transportarem seus mortos para lugares distantes, o que muitas vezes impede a realização de ritos funerários de acordo com suas tradições culturais e espirituais.

Dano espiritual

A situação em Pacaraima remete a episódios tristes ocorridos em Roraima, como durante a pandemia de Covid-19, quando a comunidade Yanomami foi obrigada a sepultar seus mortos sem cumprir os rituais fúnebres tradicionais, intensificando o sofrimento espiritual de um povo que já enfrenta diversas adversidades.

Em um cenário que, em certa medida, espelha a tragédia vivida pela comunidade N’djuka Maroon no caso Moiwana vs. Suriname, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) em 2005, Pacaraima se depara com uma questão que transcende o material e adentra o espiritual. No cerne dessas situações surge um conceito que, embora pouco discutido no Brasil, carrega interessantes repercussões jurídicas: o “dano espiritual”.

O conceito de dano espiritual ganhou destaque com o julgamento do caso Moiwana vs. Suriname, quando a CorteIDH reconheceu que o massacre ocorrido na comunidade — seguido pela impossibilidade dos sobreviventes de realizarem os rituais fúnebres — violou a dimensão espiritual dos N’djuka Maroon. A corte definiu o dano espiritual como “una forma agravada del daño moral que tiene una implicancia directa en la parte más íntima del género humano, a saber, su ser interior, sus creencias en el destino de la humanidad y sus relaciones con los muertos”.[9]

Diferente do dano moral, que se refere ao sofrimento psicológico e emocional, o dano espiritual impacta de maneira mais profunda, afetando a espiritualidade, as crenças religiosas e a continuidade cultural de uma comunidade. Reconhece-se, assim, que a violação de rituais espirituais pode gerar um sofrimento coletivo, afetando a coesão social e a identidade de um grupo.

Nesse sentido, Carolina Souza Novaes Gomes Teixeira e Maria Luiza Furbino de Novaes Gomes consideram que “o dano espiritual, enquanto categoria específica, consiste na violação das crenças mais íntimas do ser humano, em verdadeira simbiose entre os vivos, os mortos e os não nascidos, pertencentes às gerações futuras” [10].

Dessa forma, o dano espiritual pode ser considerado uma modalidade autônoma de dano extrapatrimonial, reconhecida em doutrinas e jurisprudências, especialmente em contextos que envolvem a violação de direitos culturais e religiosos de comunidades indígenas e outras minorias com rituais específicos de sepultamento.

Acordo

Embora o conceito de dano espiritual ainda esteja em desenvolvimento no Brasil, o tema tem ganhado relevância na área de direitos humanos e responsabilidade civil, principalmente em casos que envolvem a preservação dos valores culturais e religiosos de comunidades indígenas e outros grupos vulneráveis.

Em 2017, por exemplo, foi celebrado um acordo entre a Gol Linhas Aéreas e a comunidade indígena Kayapó, mediado pelo Ministério Público Federal, no qual a empresa pagou R$ 4 milhões por danos causados pelo acidente aéreo de 2006, quando uma aeronave colidiu com um jato Legacy, resultando na morte de 154 pessoas e na contaminação da Terra Indígena Capoto-Jarina.[11] A região afetada, considerada “mearon nhyrunkwa” (casa dos espíritos), tornou-se inviável para atividades tradicionais como pesca, caça e construção de aldeias [12].

Outro exemplo de dano espiritual foi o sofrido pela comunidade indígena Krenak, em Minas Gerais, após o rompimento da barragem da Samarco em 2015, que poluiu o Rio Doce, impossibilitando a continuidade das práticas tradicionais [13].

Durante a pandemia de Covid-19, ocorreu ainda o caso emblemático das mães Yanomami que imploraram pelos corpos de seus bebês, sepultados em Boa Vista sem o devido respeito às tradições culturais Yanomami. Em 2022, a Justiça Federal determinou a exumação dos corpos, para que fossem devolvidos às suas comunidades e os rituais fúnebres pudessem ser realizados conforme as tradições da etnia [14].

Assim como os N’djukas de Moiwana, as comunidades Kayapó, Krenak e Yanomami foram impedidas de realizar seus rituais de sepultamento. Da mesma forma, muitas famílias em Pacaraima, especialmente aquelas com menos recursos, enfrentam dificuldades para transportar seus entes queridos para cidades distantes, sendo forçadas a adotar alternativas que não respeitam suas práticas culturais e religiosas.

Ruptura

De fato, os ritos fúnebres, essenciais para diversas culturas, ajudam a manter a coesão social e a continuidade das tradições. A ausência de um cemitério local em Pacaraima impede a realização desses rituais, comprometendo a identidade cultural e espiritual da comunidade.

Traçando um paralelo com o caso Moiwana, pode-se afirmar que a falta de um cemitério local agrava o sofrimento dos vivos, ao impossibilitar a realização de sepultamentos fundamentais para o luto e a manutenção das tradições culturais, configurando, assim, um dano espiritual.

Essa situação provoca uma ruptura na relação simbólica entre vivos e mortos, perpetuando um sofrimento que transcende a dor física e emocional, atingindo a espiritualidade da comunidade. O desrespeito às crenças e tradições locais agrava o sofrimento das famílias e compromete a integridade cultural da comunidade, constituindo uma violação de direitos conforme estabelecido no caso Moiwana.

A CorteIDH reconhece que o dano espiritual ultrapassa as gerações presentes, afetando também as futuras. A impossibilidade de realizar sepultamentos próximos e de visitar os túmulos regularmente, como no Dia de Finados, prolonga o sofrimento das famílias, impedindo a plena realização dos rituais de luto e memória.

Diante dessas reflexões, apesar dos desafios geológicos, é imprescindível buscar alternativas técnicas para construir um cemitério em Pacaraima, visando mitigar o dano espiritual e permitir que a população local preste homenagens dignas aos seus entes queridos. Sem isso, a dignidade humana, o direito ao sepultamento digno e as tradições culturais continuarão sendo negados, perpetuando uma injustiça que compromete a identidade coletiva da comunidade, tanto no presente quanto no futuro.

 


REFERÊNCIAS

CARNEIRO, V. S. IMPACTOS CAUSADOS POR NECROCHORUME DE CEMITÉRIOS: MEIO AMBIENTE E SAÚDE PÚBLICA. Águas Subterrâneas, v. 1, 2009. Disponível em: https://aguassubterraneas.abas.org/asubterraneas/article/view/21956. Acesso em: 7 set. 2024.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 38 ed. Barueri: Atlas, 2024.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença nº C 124, Caso de La Comunidad Moiwana vs. Suriname. São José, Costa Rica. Disponível em: https://summa.cejil.org/pt/entity/ak42s3l1k85dygb9. Acesso em: 7 set. 2024.

G1: Roraima. Boa Vista, 2 nov. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/11/02/cidade-de-roraima-nao-pode-ter-cemiterios-porque-la-os-corpos-demoram-se-decompor-entenda.ghtml. Acesso em: 7 set. 2024.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

MONTARROYOS, Heraldo Elias. DAÑO ESPIRITUAL A LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS: la lógica de argumentación legal del juez cançado trindade en el proceso de suriname de moiwana versus. Revista Latinoamericana de Derecho y Religión, v. 5, n. 1, p. 1-51, 2019.

SANTOS, Laércio José Loureiro dos. O direito ao sepultamento e sua natureza jurídica constitucional. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-28/laercio-loureiro-direito-constitucional-sepultamento/. Acesso em: 7 set. 2024.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SILVESTRE, Gilberto Fachetti; HIBNER, Davi Amaral; FRIZZERA, Gabriel Abreu. A “Cidade dos Espíritos” do Voo 1907: Análise do Dano Espiritual da Etnia Indígena Mebêngôkre Kayapó. Revista Juridica, v. 3, n. 52, p. 378 – 401, set. 2018. Disponível em: <https://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/3224/371371740>. Acesso em: 07 set. 2024.

TEIXEIRA, C. S. N. G.; GOMES, M. L. F. DE N. DANO ESPIRITUAL E O SEPULTAMENTO DE INDÍGENAS YANOMAMI NA PANDEMIA DO COVID-19. Virtuajus, v. 7, n. 13, p. 62-71, 9 fev. 2023.

ZANOTELLI, Maurício. Dignidade humana global. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024.

[1] G1: Roraima. Boa Vista, 2 nov. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/11/02/cidade-de-roraima-nao-pode-ter-cemiterios-porque-la-os-corpos-demoram-se-decompor-entenda.ghtml. Acesso em: 7 set. 2024.

[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 38 ed. Barueri: Atlas, 2024.

[3] CARNEIRO, V. S. IMPACTOS CAUSADOS POR NECROCHORUME DE CEMITÉRIOS: MEIO AMBIENTE E SAÚDE PÚBLICA. Águas Subterrâneas, v. 1, 2009. Disponível em: https://aguassubterraneas.abas.org/asubterraneas/article/view/21956. Acesso em: 7 set. 2024.

[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 38 ed. Barueri: Atlas, 2024.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

[6] ZANOTELLI, Maurício. Dignidade humana global. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024.

[7] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

[8] SANTOS, Laércio José Loureiro dos. O direito ao sepultamento e sua natureza jurídica constitucional. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-28/laercio-loureiro-direito-constitucional-sepultamento/. Acesso em: 7 set. 2024.

[9] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença nº C 124, Caso de La Comunidad Moiwana vs. Suriname. São José, Costa Rica. Disponível em: https://summa.cejil.org/pt/entity/ak42s3l1k85dygb9. Acesso em: 7 set. 2024.

[10] TEIXEIRA, C. S. N. G.; GOMES, M. L. F. DE N. DANO ESPIRITUAL E O SEPULTAMENTO DE INDÍGENAS YANOMAMI NA PANDEMIA DO COVID-19. Virtuajus, v. 7, n. 13, p. 62-71, 9 fev. 2023.

[11] MONTARROYOS, Heraldo Elias. DAÑO ESPIRITUAL A LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS: la lógica de argumentación legal del juez cançado trindade en el proceso de suriname de moiwana versus. Revista Latinoamericana de Derecho y Religión, v. 5, n. 1, p. 1-51, 2019.

[12] SILVESTRE, Gilberto Fachetti; HIBNER, Davi Amaral; FRIZZERA, Gabriel Abreu. A “Cidade dos Espíritos” do Voo 1907: Análise do Dano Espiritual da Etnia Indígena Mebêngôkre Kayapó. Revista Juridica, v. 3, n. 52, p. 378 – 401, set. 2018. Disponível em: <https://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/3224/371371740>. Acesso em: 07 set. 2024.

[13] MONTARROYOS, Heraldo Elias. DAÑO ESPIRITUAL A LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS: la lógica de argumentación legal del juez cançado trindade en el proceso de suriname de moiwana versus. Revista Latinoamericana de Derecho y Religión, v. 5, n. 1, p. 1-51, 2019.

[14] TEIXEIRA, C. S. N. G.; GOMES, M. L. F. DE N. DANO ESPIRITUAL E O SEPULTAMENTO DE INDÍGENAS YANOMAMI NA PANDEMIA DO COVID-19. Virtuajus, v. 7, n. 13, p. 62-71, 9 fev. 2023.

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