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Ausência de advogado em ação de alimentos contraria advocacia, mas facilita acesso à Justiça

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9 de setembro de 2024, 8h53

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal de confirmar que a presença do advogado é facultativa na primeira audiência da ação de alimentos, conforme diz a Lei 5.478/1968, gerou forte reação da advocacia, que planeja agora ir ao Congresso Nacional em busca de uma nova norma sobre o tema. Mas ela facilita o acesso à Justiça e proporciona uma solução rápida para esse tipo de litígio, na avaliação de especialistas no assunto consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Criança aparece de costas e sentada sobre cartolinas coloridas, ela usa uma camiseta com a frase "eu sou o futuro"

Ações de alimentos costumam tutelar direitos de crianças e adolescentes

No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 591, o STF reconheceu, por maioria de votos, a constitucionalidade da ausência do advogado no ajuizamento da ação de pensão alimentícia. A Ordem dos Advogados do Brasil, que levou a ADPF ao Supremo, alega que esse entendimento viola o artigo 133 da Constituição Federal, segundo o qual “o advogado é indispensável à administração da Justiça”.

Em seu voto na ADPF 591, o ministro Cristiano Zanin, relator do caso, argumentou que a corte “tem reconhecido, em situações excepcionais, o caráter não absoluto da representação por advogado em procedimentos especiais previstos em lei”. Isso se fundamenta, segundo ele, na necessidade de acesso à Justiça e de rapidez em processos menos complexos.

Para o presidente da Associação dos Membros do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios, Elisio Teixeira Lima Neto, não é comum alimentandos irem ao Judiciário sem estarem acompanhados de um advogado. Ainda assim, de acordo com ele, a decisão acerta ao reafirmar a essencialidade da obrigação alimentícia a quem dela necessita.

“As causas que envolvem alimentos, normalmente, não são complexas, não se podendo afirmar ou concluir que haveria qualquer prejuízo aos interesses do alimentando pelo simples fato de ele ter se dirigido diretamente ao Judiciário. Essa possibilidade de iniciativa direta já existe e é consolidada, por exemplo, nos Juizados Especiais Cíveis, e não há qualquer prejuízo aos interesses das partes”, defende o promotor de Justiça.

O juiz Carlos Eduardo da Silva Camillo, do Tribunal de Justiça da Bahia, concorda com essa avaliação e acrescenta que a decisão do STF pretende dar celeridade à proteção da dignidade dos menores. O artigo 5º da Lei 5.478/1968 prevê que “na audiência de conciliação e julgamento deverão estar presentes autor e réu, independentemente de intimação e de comparecimento de seus representantes”.

“A lei não veda a participação do advogado. Contudo, se ele não comparece à audiência, o magistrado não pode redesignar tal ato processual, prejudicando o direito aos alimentos da criança e do adolescente. É muito importante isso: não estamos suprimindo direitos da advocacia, estamos efetivando o direito de pessoas hipervulneráveis”, afirma Camillo.

“Em que pese o advogado ser essencial à Justiça, a prestação alimentar para crianças e adolescentes deve se sobrepor a qualquer outro dia fundamental, porque são pessoas em desenvolvimento, e toda a sociedade deve protegê-las”, completa o juiz.

Aplicabilidade em dúvida

O defensor público do Paraná Marcelo Lucena Diniz também entende que a não obrigatoriedade de um profissional na primeira audiência facilita o acesso à Justiça a pessoas vulneráveis, especialmente em regiões em que a Defensoria Pública Estadual não está bem estruturada.

Ele diz ainda que, nas circunstâncias em que isso ocorrer, o juiz terá meios para identificar a renda das partes e estabelecer uma decisão de tutela antecipada adequada. Contudo, ele menciona um fator que pode complicar a aplicação da medida.

“O Judiciário tem um entendimento bem consolidado de que, quando se ajuíza uma ação de alimentos, é necessário decidir também a guarda e convivência, e aí a decisão do STF não se aplicaria. É muito incomum a gente ver ações de alimentos isoladas, sem estarem conjugadas com essas outras demandas. Então, será que o Judiciário vai ser sensível para permitir que se leve apenas a ação de alimentos?”, questiona Diniz.

O defensor também pondera que, apesar de plausível, a dispensa de advogado não é a situação ideal: “Estamos falando aqui de situações que devem ser a exceção, e não a regra. Uma Defensoria Pública estruturada vai evitar essas questões e, evidentemente, vai entregar uma prestação jurisdicional mais célere e adequada”.

Complexidade das ações

A advocacia, por outro lado, está convencida de que a decisão do Supremo foi um equívoco. Maria Berenice Dias, desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), foi bem clara sobre isso: “A decisão é, no mínimo, desastrosa. Existe uma parte escancaradamente vulnerável, formada por crianças e, em geral, mulheres. Então, acho que a ação mais significativa que existe é a de alimentos”.

Segundo ela, a dispensa de um profissional do Direito ao lado de quem apresenta a ação resulta em disparidade de armas. “O economicamente mais forte, normalmente o alimentante, esse vem acompanhado de advogado, e quem ficará sem será essa parte mais frágil.”

A presidente da Comissão Especial de Direito de Família da OAB Nacional, Ana Vládia Feitosa, vai pelo mesmo caminho.

“As ações de alimentos têm um profundo conteúdo humanitário, tutelam direitos indisponíveis, da própria dignidade da pessoa humana, e que têm a ver com o sustento desses indivíduos”, diz a advogada.

No ano passado, as ações de pensão alimentícia foram o quarto assunto mais demandado na Justiça estadual em todo o país, segundo o Conselho Nacional de Justiça, com 864.580 registros. Para Ana Vládia, os processos de alimentos são complexos porque, entre outras coisas, tratam de questões de gênero, que exigem a sensibilidade e o conhecimento técnico de um advogado até para que seja exigida a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do CNJ, já desde a audiência inicial.

“Não é raro essas ações de alimentos serem manejadas por mulheres que representam seus filhos, e é preciso levar em consideração toda uma questão de capital invisível investido na maternidade, porque ele impacta diretamente na vida dessa mulher, e isso raramente é considerado no cálculo de alimentos se essa mulher for leiga.”

Risco para as decisões

A legislação atual estabelece que, no caso de ajuizamento desse tipo de processo sem advogado, o juiz deve nomear um profissional para auxiliar o autor da ação. Ainda assim, para Felipe Russomanno, sócio da área de Família e Sucessões do escritório Cescon Barrieu, a falta de uma assessoria especializada logo de início, seja por um advogado particular, por um dativo ou defensor público, pode prejudicar a qualidade das decisões judiciais.

“O dia a dia da advocacia do Direito de Família demonstra que, muitas vezes, a gente se depara com atos judiciais que não tutelam efetivamente os direitos das partes, e cabe ao advogado fazer essa defesa de seus clientes, evitando decisões arbitrárias e que não observam o melhor direito das partes”, argumenta ele. “O entendimento do STF é preocupante, ainda que tenha como norte o acesso à Justiça. Meu receio é o de que, no final, isso gere mais lesão a essas pessoas que são vulneráveis, com uma decisão judicial muito menos qualificada.”

Maria Berenice Dias reforça essa avaliação: “No caso, por exemplo, de estabelecimento de alimentos provisórios nessa primeira audiência, se acaba havendo um acordo, isso se cristaliza e pode causar um prejuízo para sempre com relação ao credor dos alimentos, porque às vezes ele não sabe quanto o genitor percebe ou não tem como saber”.

O defensor público Marcelo Lucena Diniz, porém, discorda dessa visão dos advogados. “As ações de Família são mais maleáveis, diferentemente de outras áreas, como Cível e Criminal, em que precisamos ter tudo no início. Em geral, permite-se que a gente acoste provas no curso da instrução. Então, o maior impacto seria na decisão provisória, que poderia ser melhor com um advogado ou defensor público.”

Já o promotor Elisio Teixeira Lima Neto lembra que não apenas o advogado zela pelos direitos das partes, mas também o órgão do qual ele faz parte, que acompanha cada conciliação: “O ministro Zanin garantiu o imediato e necessário acesso do jurisdicionado à Justiça sem afastar a relevante participação do Ministério Público, dos advogados e defensores públicos nas demais fases do procedimento”.

Projeto de lei

A OAB pretende apresentar um projeto de lei ao Congresso Nacional para alterar a Lei 5.478/1968, a fim de assegurar a presença da advocacia nas audiências iniciais dessas ações. A proposta deverá se basear em um relatório técnico produzido pela comissão presidida por Ana Vládia Feitosa, documento que também sustentou a ADPF 591.

“É uma lei de 1968, então ela tem de estar alinhada conforme a legislação atual de regência, especialmente a Constituição Federal de 1988 e o Código de Processo Civil de 2015”, diz a advogada.

“A ausência de um profissional qualificado para defender com precisão os direitos dos alimentandos compromete a justiça do resultado que venha a se obter, levantando a questão de que uma decisão, embora juridicamente válida, pode se mostrar insuficiente para garantir a proteção integral da dignidade da pessoa humana e da equidade de gênero.”

Clique aqui para ler o voto de Zanin
ADPF 591

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