Cedant arma togae

Governos não podem usar recursos públicos para comemorar golpe de 1964, decide STF

 

8 de setembro de 2024, 12h33

O uso de recursos públicos, por parte de qualquer ente estatal, para promover comemorações ao golpe de 1964 é um atentado contra a Constituição e causa dano ao patrimônio imaterial do governo federal.

Militares em tanque e carros em frente ao Congresso durante o golpe de 1964.

Golpe de 1964 deu início a uma ditadura militar no Brasil, que durou 21 anos

Esse foi o entendimento alcançado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na sexta-feira (6/9), no julgamento sobre o uso de dinheiro público em comemorações do golpe que instaurou uma ditadura militar com apoio civil no Brasil.

O caso diz respeito à “Ordem do dia de 31 de março de 1964”, uma mensagem publicada em 2020 pelo Ministério da Defesa, comemorando os 56 anos do golpe. Iniciada em 2019, a prática de comemorar o regime autoritário se repetiu novamente até 2022, ao longo do governo de Jair Bolsonaro (PL).

Contexto

A primeira instância determinou a retirada da mensagem do site do Ministério da Defesa e proibiu a publicação de qualquer anúncio comemorativo relativo ao golpe.

No entanto, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região reformou a sentença, alegando que a mensagem apenas reproduzia “a visão dos comandantes das Forças Armadas”. Para os desembargadores, “a Constituição não desautoriza as diferentes versões sobre fatos históricos”.

A deputada federal Natália Bonavides (PT-RN), então, acionou o STF para questionar a decisão do TRF-5, mas o ministro Kassio Nunes Marques rejeitou o recurso em outubro do último ano. Na ocasião, ele também negou o reconhecimento de repercussão geral sobre a questão.

Reviravoltas

Já em dezembro, o caso foi submetido ao Plenário. Nunes Marques manteve os fundamentos de sua decisão. De acordo com ele, a questão “não extrapola os limites da causa e o interesse subjetivo das partes envolvidas”, ou seja, seu efeito é “estrito ao caso concreto”.

O ministro Cristiano Zanin acompanhou o relator. Na sequência, o ministro Gilmar Mendes pediu vista e interrompeu a análise.

Em maio deste ano, o julgamento foi retomado com o voto de Gilmar, que abriu divergência. Segundo ele, a questão tem repercussão geral e a sentença de primeiro grau deve ser restabelecida.

O decano da corte foi acompanhado por Zanin (que reajustou seu voto e passou a concordar com Gilmar) e pelos ministros Flávio Dino e Alexandre de Moraes. Em seguida, o ministro Dias Toffoli pediu vista.

O caso voltou a ser pautado no último dia 30. Ao final, prevaleceu o entendimento de Gilmar, que também conseguiu o apoio dos ministros Luiz Edson Fachin, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. Já Toffoli e o ministro André Mendonça acompanharam Nunes Marques.

Tanques e togas

Gilmar apontou em seu voto que a questão de saber “se cabe ao poder público realizar atos comemorativos do golpe de 1964 ostenta inequívoca relevância social, jurídica e política, devendo ser reconhecida a repercussão geral na espécie”.

No mérito, o decano argumentou que “a ordem democrática instituída em 1988 não admite o enaltecimento de golpes militares e iniciativas de subversão ilegítima da ordem”.

Ele contextualizou as manifestações dentro de um projeto de retomada do protagonismo político das Forças Armadas, movimento feito fora das previsões constitucionais.

O magistrado lembrou que, mesmo antes da comemoração publicada no site do Ministério da Defesa, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, já tinha se sentido à vontade para tentar intimidar os ministros do STF em uma publicação no Twitter.

Naquela ocasião, o ministro Celso de Mello (já aposentado) alertou contra “movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma”.

Liberdade de expressão

Ainda que as pessoas tenham a liberdade de formar juízo próprio acerca de fatos históricos, Gilmar destacou que “agente algum, quando investido de função pública, está autorizado a se valer da estrutura estatal para propagar comunicação laudatória a golpe de Estado ou iniciativas de subversão da ordem democrática”.

Ele ainda indicou que essa retomada de protagonismo das Forças Armadas, em um cenário de hostilização contra as instituições políticas legítimas do país, foi o que possibilitou os episódios de terrorismo de 8 de janeiro de 2023, nas sedes dos Três Poderes, em Brasília.

Gilmar refletiu, em seu voto, que a comunicação oficial do governo, ao caracterizar o golpe como “um marco para a democracia brasileira”, abandonou qualquer intuito informativo e veiculou conteúdo “inegavelmente inverídico”.

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RE 1.429.329

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