Diário de Classe

Referenciais teóricos: por que pensamos como pensamos?

Autores

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

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7 de setembro de 2024, 8h00

O Diário de Classe é um espaço que, desde de 2012, tem se consolidado como um movimento de oposição às reproduções acríticas perpetradas pela dogmática jurídica tradicional e, como bem lembrado na semana passada, isso se constitui a partir da compreensão de que a Teoria do Direito tem, sim, uma função social (cf. aqui). Falamos (todos e todas) a partir de uma perspectiva: o fenômeno jurídico não é simples e existem diversos referenciais teóricos que possibilitam uma discussão pautada em ideias sedimentadas por uma determinada tradição de pensamento que favorece discussões mais densas e reflexivas. Este parece ser, inclusive, o cerne das pesquisas desenvolvidas no âmbito do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Este pano de fundo põe luz em duas das discussões mais importantes da Teoria do Direito contemporânea, qual seja, a (in)determinabilidade do Direito e a necessidade de rompimento com a matriz positivista, que sustenta uma pretensa neutralidade como condição de “veracidade” para a observação do fenômeno que analisa. Não obstante, especialmente após a experiência da Segunda Guerra Mundial, parece-nos inegável o espaço que a moralidade (re)tornou a ocupar em relação à adequada compreensão do fenômeno jurídico e disso resulta um impasse fundamental: como podemos discutir as condições de possibilidade da pretensão de validade do próprio Direito?

Para responder essa pergunta, a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) vem se consolidando como um referencial (1) que evita soluções fáceis, na medida em que atribui à filosofia um papel fundamental e (2) que propõe uma abordagem que reconhece as idiossincrasias inerentes ao Direito ao mesmo tempo em que busca compreender de forma rigorosa o Constitucionalismo Contemporâneo (cf. aqui).

Assim, ao mesmo tempo em que a CHD se firmou como matriz teórica (e não por acaso tem seu autor como um dos juristas mais citados de todo Brasil), ela também se estruturou como uma escola de pensamento que não se restringe aos escritos do professor Lenio Streck. Angustiados pelo mestre — como deve ser e vide recente homenagem aqui publicada —, os pesquisadores e pesquisadoras que senta(ra)m-se na terceira cadeira (uma metáfora que simboliza uma terceira via na filosofia) continuam a problematizar o Direito a partir das reflexões inauguradas por Streck.

Diante disso, o Diário de Classe desta semana volta-se para um tema implícito e por vezes recôndito. Neste texto, propomos uma reflexão sobre a Crítica Hermenêutica do Direito como um referencial teórico que orienta as nossas discussões.

Nesse sentido, precisamos diferenciar o que é um referencial teórico de uma teoria stricto sensu antes de mais nada. Teorias não são necessariamente uma explicação do domínio de fatos aos quais se refere, mas um instrumento de classificação e previsão; e a verdade de uma teoria está em sua validade, e sua validade depende de sua capacidade de cumprir as funções às quais se destina [1]. Um referencial teórico, por outro lado, vai além disso: ele estabelece uma linguagem e um entendimento singular sobre um campo de estudo, delimitando as formas de pensar e de discutir um determinado tema. Em outras palavras, teorias nada mais são do que um conjunto de ideais que servem a um determinado propósito por elas (re)conhecido enquanto válido (seja para explicar a evolução ou a gravidade, por exemplo); enquanto um referencial teórico é uma racionalidade que orienta e estrutura a compreensão de um fenômeno dentro de uma determinada área do conhecimento.

Para ilustrar, pensemos no liberalismo na ciência política e no marxismo na sociologia em geral. O liberalismo, como referencial teórico, define uma série de conceitos fundamentais, como liberdade individual, livre mercado e governo limitado, que moldam a forma como analisamos questões políticas. Ele oferece uma linguagem própria e um conjunto de princípios que orientam a interpretação dos fenômenos políticos. Da mesma forma, o marxismo na sociologia estabelece um quadro teórico que privilegia a análise das relações de poder e de produção, fornecendo ferramentas conceituais para entender as dinâmicas sociais através da luta de classes e da economia política.

Filosofia no Direito, discurso ordinário e discurso filosófico

No Direito, a Crítica Hermenêutica do Direito assume esse papel de referencial teórico. Com efeito, precisamos compreender que essa “apoteose” depende de uma necessária vinculação com discussões de ordem eminentemente filosófica. Inclusive, é nessa toada que o professor Lenio Streck cunhou a noção de filosofia no direito em contraposição ao que comumente é denominado filosofia do Direito. Isso porque, como explica Ernildo Stein [2], a filosofia não deve ser considerada apenas um ornamento (conjunto de textos/citações geralmente utilizadas de forma pontual), nem como orientação (através da qual, sem compromisso com o método, se produz algum texto sobre temas como a moral), mas como fundante de paradigmas de racionalidade, algo que serve para produção de reflexões que se vinculam a uma matriz de inteligibilidade específica, conforme um determinado “método” e a um determinado projeto filosófico.

De acordo com tal perspectiva, qualquer concepção que busca encontrar na lógica da argumentação, de caráter puramente axiomático-dedutivo, a principal função contributiva da filosofia para o Direito viola uma diferença fundamental — identificada a partir da revolução kantiana, quando surgiram a teoria do conhecimento e a subsequente superação e inversão da relação objetivista — entre o discurso ordinário, no qual se incluem as linguagens naturais e as linguagens científicas, e o discurso filosófico, que utiliza uma linguagem própria e vinculada à uma matriz de inteligibilidade, ou seja, a um “método” filosófico específico. Diante dessa concepção paradigmática da filosofia, as teorias jurídicas contemporâneas que não se fundamentam sobre sólidos e consistentes aportes filosóficos, seriam inevitavelmente limitadas porque a filosofia habita o Direito [3].

Novo horizonte interpretativo

Especificamente sobre o fenômeno jurídico, a Crítica Hermenêutica do Direito não apenas propõe uma forma de interpretação das normas jurídicas, mas também estrutura um entendimento particular sobre o que é o próprio Direito. Ao adotar a CHD como referencial, passamos a utilizar uma linguagem específica e uma abordagem crítica que questiona as premissas subjacentes às práticas jurídicas convencionais. Bem por isso, ainda que não tenha sido o único, o Streck foi um dos responsáveis por “popularizar” um paradigma de observação do Direito que rompe com a abordagem analítica tradicional. Levando em conta a virada ontológico-linguística, ele apontou para a hermenêutica como uma alternativa [4].

Em virtude disso, podemos destacar a hermenêutica filosófica (de matriz heideggeriana) como um ponto de partida (e de chegada, para fazer alusão ao círculo hermenêutico) comum nas pesquisas desenvolvidas pelos alunos de Lenio Streck e isto nos permite conferir à Crítica Hermenêutica do Direito o status de marco teórico. Nas últimas duas décadas, diversos foram os temas problematizados a partir da CHD, resultando na publicação de livros como Decisão Judicial e o Conceito de Princípio [5]; Levando o direito a sério [6]; Jurisdição e ativismo judicial [7]; Jurisdição Constitucional de Crise [8]; e de muitos outros, dos quais destacamos Entre Positivismo e Interpretativismo; Contrapúblicos interpretativos; O espinho do ouriço; Ativismo judicial e judicialização da política; A pena é uma poderosa espada; e O que é isto – a Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck? que estão reunidos na coleção Hermenêutica, teoria do direito e argumentação (cf. aqui).

Numa palavra final, a Crítica Hermenêutica do Direito se estabelece como um referencial que vai além de uma simples teoria jurídica, oferecendo um novo horizonte interpretativo para o fenômeno jurídico. Tal como Umberto Eco nos lembra da importância de reconhecer os gigantes sobre os quais nos apoiamos, a CHD nos proporciona uma referência sólida para questionar e (re)interpretar o Direito, sempre em diálogo crítico com suas tradições e práticas. No entanto, independentemente do referencial teórico adotado, diante dos incontornáveis desacordos teóricos inerentes à prática jurídica [9], é fundamental que nossos marcos sejam bem fundamentados, pois é essa base que permitirá discussões mais densas e reflexivas.


[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 953.

[2] STEIN, Ernildo. Exercícios de fenomenologia. Injuí: Unijuí, 2002.

[3] TRINDADE, André Karam. A filosofia no direito e as condições de possibilidade para se compreender os fenômenos jurídicos. Revista Paradigma, Ribeirão Preto, ano XVII, n. 22, p. 258-268, jan./dez. 2013. p. 262 e 265.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 51

[5] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

[6] MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

[7] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[8] LORENZONI, Pietro Cardia. Jurisdição constitucional de crise: o papel do STF no enfrentamento das crises constitucionais. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

[9] Para uma compreensão mais profunda dos desacordos, conferir: QUARELLI, Vinícius; MADALENA, Luis Henrique Braga; STRECK, Lenio Luiz. Desacordos compreensivos: uma necessária explicitação dos fundamentos teóricos na discussão jurídico-científica. Revista Direito e Práxis, [S. l.], v. 15, n. 2, 2023. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/69069. Acesso em: 2 set. 2024.

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos. Pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição. Pesquisador, editor da Revista da ABDConst. e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é bolsista Capes/Proex, doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos, advogada e professora da Faculdade São Judas Tadeu e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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