Recepção dos 'alimentos compensatórios' pelo Direito Civil brasileiro
2 de setembro de 2024, 15h20
Nos últimos anos, difundiu-se entre nós a figura dos denominados “alimentos compensatórios”, que, rapidamente, não obstante a ausência de previsão legal, logrou alcançar acentuada receptividade, inclusive pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Como registra Otavio Luiz Rodrigues Jr. [1], em 2004, Rolf Madaleno inaugurou o desenvolvimento do tema em um artigo que viria a ser complementado por outros escritos, redundando, inclusive, em uma obra específica [2], cuja estrutura proposta acabou repisada por diversos autores, eis que, na avaliação de Maria Berenice Dias [3], o instituto “caiu no gosto da doutrina”, revelando-se exceptivas as manifestações contrárias ao seu acolhimento.
De início, notadamente por inspiração das legislações francesa e espanhola, defendeu-se a exigibilidade dos nominados “alimentos compensatórios humanitários”, os quais consistiriam em uma pensão devida ao ex-consorte/companheiro pela “queda brusca do padrão econômico e financeiro, especialmente quando quem os reclama tampouco possui bens conjugais ou convivenciais em razão de um regime obrigatório ou convencional de separação de bens” [4].
Adiante, passou-se também a sustentar a pertinência dos chamados “alimentos compensatórios patrimoniais”, sem correspondência no direito estrangeiro, os quais objetivariam remediar a perda ou a retenção dos frutos oriundos dos bens comuns percebidos somente pelo outro cônjuge/convivente antes de ultimada a partilha [5].
No presente artigo, iremos retomar os fundamentos já apresentados pelas conflitantes vertentes doutrinárias, acrescendo, ademais, outras ponderações que não foram colocadas no debate acadêmico, pois que, em nosso sentir, a matéria ainda requer uma melhor compreensão técnica, sobretudo quando se pretende inseri-la na codificação civil brasileira.
Alimentos compensatórios humanitários: argumentos favoráveis e contrários
Atentando-se à inexistência de regulamentação pelo estuário normativo nacional, a corrente que sustenta a sua aplicabilidade recorre a algumas premissas jurídicas sumamente distintas. Mencionando julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), Rolf Madaleno [6] declara que tal compensação evitaria “o injusto empobrecimento”, ou seja, a contrario sensu, constituiria mecanismo tendente a impedir o enriquecimento sem causa.
Maria Berenice Dias [7] aduz tratar-se de “indenização pela perda da chance experimentada”, e, citando Rodrigo da Cunha Pereira, afirma que a sua incidência seria “consequência do comando constitucional de reparação das desigualdades entre cônjuges ou companheiros”. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald [8] aludem à boa-fé objetiva, mormente quanto à frustração da justa expectativa de manutenção do padrão social usufruído durante a convivência.
No campo oposicionista, Gustavo Tepedino e Paula Greco Bandeira [9] asseveram que o instituto foi “importado de maneira servil e acrítica do ordenamento jurídico francês”, pensamento compartilhado por José Fernando Simão [10], que o considera “desvio de categoria e um engano perigoso”, e por Priscila M. P. Corrêa da Fonseca [11], que o qualifica de “instrumento perigosíssimo”. Para essa linha, em síntese, os alimentos compensatórios humanitários não deveriam ser consentidos pelas seguintes razões: 1- por falta de autorização legislativa; 2- por não ostentarem natureza alimentar; 3- por afrontarem o regime de bens entabulado ou fixado por lei; 4- por estabelecerem uma indenização pela prática de ato lícito.
Em nosso sentir, os argumentos contrários revestem-se de muito maior solidez, pois que, em verdade, aqueles que propugnam a sua admissibilidade, data maxima venia, assim o fazem por meio de retóricas referências principiológicas ou de outros institutos civis, destituídas, portanto, de uma efetiva fundamentação jurídica. Vejamos.
Como doutrina António Menezes Cordeiro [12], caracterizado o enriquecimento sem causa, impõe-se a obrigação de restituir (o indevidamente auferido), mas não de indenizar e tampouco de compensar. No mais, é cediço que às relações matrimoniais e convivenciais no direito brasileiro incidem os regimes de bens previstos pela lei, que, naturalmente, deverão disciplinar com soberania o destino patrimonial do casal. Em Portugal, ao revés, tão-somente sobre o casamento há uma normatização específica que rege o cabedal dos cônjuges, o que não ocorre na união de fato, e, em razão dessa singularidade, admite-se exclusivamente aos coabitantes o recurso a esse expediente (enriquecimento por prestação na modalidade causa finita).
Quanto a alegada “perda de uma chance”, consoante as lições de Daniel Amaral Carnaúba [13], esta técnica de imputação dos danos envolve a “hipótese de lesão a interesses aleatórios” diante de uma “incerteza contrafatual”, isto é, não há segurança de que o resultado desejado pela vítima teria se concretizado caso não fosse a ação/omissão do agente, que, de todo modo, ceifou a oportunidade da sua obtenção.
Como se vê, tais diretrizes são inaplicáveis à situação econômica de consortes e companheiros quando da extinção do vínculo, não havendo “interesse aleatório”, “incerteza contrafatual” e muito menos “vítima” e “agente”. Sob esse prisma, as renúncias pessoais, acadêmicas e profissionais supostamente intentadas em prol da família são juridicamente irrelevantes.
Ademais, o artigo 226, § 5º, da CR/88, consagra a igualdade entre homens e mulheres no âmbito familiar, não se podendo dele inferir qualquer autorização implícita para a imposição de obrigações pecuniárias arbitrárias sem lastro legal.
No que concerne à suposta “justa expectativa de manutenção do padrão social”, ora, em uma época em que os casamentos no país duram em média 13 anos e oito meses, tanto que a sua dissolução vem sendo paulatinamente desburocratizada (ex. eliminação de prazos; adoção de procedimentos extrajudiciais), não é crível nem admissível que alguém possa legitimamente nutrir tal vã esperança.
Mas não é só. Convém não se olvidar que os alimentos assistenciais previstos pelo Código Civil devem ser fixados em atenção à condição social do beneficiário (artigo 1.694, caput), não abarcando apenas o necessarium vitae [14], e, como se fosse pouco, consoante jurisprudência sedimentada, regra geral, a sua estipulação entre ex-cônjuges/companheiros dar-se-á de forma transitória, quer dizer, por um determinado período até que o alimentando possa inserir-se adequadamente no mercado de trabalho.
De fato, a existência de pensões perpétuas hodiernamente restringe-se àquelas situações particulares, especialmente se pela idade e/ou condições de saúde se revele inviável a sua integração laboral [15], vigorando no Brasil, como ocorre nos países europeus, o princípio da autorresponsabilidade pós-conjugal/convivencial [16].
Por derradeiro, cumpre reforçar alguns aspectos já delineados pela vertente contrária, particularmente: 1 – a incontroversa ausência de escopo alimentar, circunstância reconhecida até mesmo por aqueles que pugnam pela sua aplicabilidade [17]. Não por outra razão, no Code Napoléon o instituto foi nominado de “prestação compensatória” (prestation compensatoire), no que fora acompanhado pelo novo codex romeno de 2009 (prestația compensatorie), enquanto o artigo 97 do Código espanhol dispõe sobre o “derecho a una compensación”. Aliás, essa nomenclatura também foi objeto de crítica do Ministro Sidnei Beneti do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do RHC nº. 28.853-RS, oportunidade em que sublinhou a sua “natureza indenizatória” [18].
Sejamos francos: a preterição do vocábulo “prestação” e a eleição do termo “alimentos” não decorreram de mera inabilidade, mas de nítida estratégia para viabilizar a sua recepção no direito pátrio à margem da legislação, colocando-o artificialmente próximo a uma categoria jurídica já contemplada pelo Código Civil brasileiro; 2 – o pacto antenupcial e o contrato de convivência, como todo ajuste negocial, “configura indiscutivelmente um elemento de confiança e de estabilização de expectativas”, na precisa pontuação de Manuel Carneiro da Frada [19].
Desta feita, quem opta pelo regime de separação de bens não pode futuramente almejar qualquer participação no patrimônio alheio. Definitivamente, é preciso respeitar a autonomia privada de indivíduos plenamente capazes; 3 – os alimentos já estatuídos pela lei (CC, artigos 1.694 a 1.710) independem do regime de bens.
Alimentos compensatórios humanitários: críticas à importação
Como bem observa Judith Martins-Costa [20], tornou-se recorrente na doutrina brasileira o acolhimento de soluções estrangeiras sem o conhecimento integral do seu entorno normativo, o que efetivamente nos parece ser a hipótese ora estudada.
Em uma pesquisa de direito comparado europeu que abarcou 15 países [21], salta aos olhos que a prestação compensatória somente restou acolhida na França, Espanha e Romênia, tanto que os autores a qualificaram de “une pratique rare”, sendo que nos demais não se observou a sua introdução por meio de voluntarismos doutrinários e jurisprudenciais [22].
Assim, concentrando-se nos exceptivos ordenamentos, caberia inicialmente destacar que a inserção do instituto se deu no bojo de profundas alterações legais, tanto que Gérard Cornu [23] afirma que a prestation compensatoire fora concebida como uma das peças centrais da reforma francesa do divórcio de 1975. No direito romeno, outrossim, o seu advento decorreu do novel Código que substituiu a anosa legislação oitocentista.
Entretanto, cumpre registrar com destaque o primordial equívoco: nesses diplomas, em regra, não é possível a sua cumulação com os alimentos (assistenciais), como assim se deseja implementar no Brasil, a saber:
1 – Na Espanha, o ex-cônjuge pode pleitear exclusivamente a pensión compensatoria, eis que a pensión alimenticia apenas é exigível entre parentes [24]; 2 – Na Romênia, o artigo 390, alínea 2, da codificação civil [25], dispõe que o ex-consorte que demandar o pagamento da prestația compensatorie não poderá requerer a percepção de alimentos; 3 – Em França, a prestação compensatória tem como objetivo substituir sempre que possível a pensão alimentícia [26], que, após a revisão de 2004, ainda é devida tão só em duas circunstâncias (durante a tramitação judicial da separação de corpos e do divórcio; se estipulado convencionalmente) [27].
Portanto, da forma como desenhada, que, reitera-se, não possui correspondência nos citados sistemas, não há dúvidas de que os alimentos compensatórios humanitários só possuem uma questionável serventia: contornar o regime (legal ou pactuado) de separação de bens.
Alimentos compensatórios patrimoniais
Diferentemente da primeira espécie, os alimentos compensatórios patrimoniais não propiciam maior cizânia por um único motivo: a franca prescindibilidade de tal categoria, seja pelo disposto no artigo 4º, parágrafo único, da Lei nº 5.478/1968, como pelo ius fruendi garantido a todo proprietário, nos termos do art. 1.228 do Código Civil.
[1] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Natureza Jurídica e Limites dos Alimentos Compensatórios: Uma Análise Doutrinário-Jurisprudencial no Brasil e no Exterior in Revista dos Tribunais. v.1000. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 271-272.
[2] MADALENO, Rolf. Alimentos Compensatórios. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
[3] DIAS, Maria Berenice. Alimentos. 3.ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 122.
[4] MADALENO, Rolf. Alimentos Compensatórios…ob. cit., p. 140.
[5] Idem, ibidem, p. 140.
[6] Idem, ibidem, p. 137.
[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 15.ed. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 846-850.
[8] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 13.ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 787.
[9] TEPEDINO, Gustavo; BANDEIRA, Paula Greco. Os Alimentos Compensatórios no Direito Brasileiro: Inadmissibilidade por Ausência de Fonte Legal e Incompatibilidade de Função in Transformações no Direito Privado nos 30 anos da Constituição: Estudos em Homenagem a Luiz Edson Fachin. Coord. Marcos Ehrhardt Júnior e Eroulths Cortiano Junior. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 713 e seguintes.
[10] SIMÃO, José Fernando. Alimentos Compensatórios: Desvio de Categoria e um Engano Perigoso in Revista do Instituto de Direito Brasileiro. v.6. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2013, p. 5849.
[11] FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Manual do Planejamento Patrimonial das Relações Afetivas e Sucessórias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 134.
[12] CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil Português. v.II. t.III. Coimbra: Almedina, 2010, p. 239 e 273-275.
[13] CARNAÚBA, Daniel Amaral. Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance: A Álea e a Técnica. São Paulo: Método, 2013, p. 25-32.
[14] CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 18; MONTEIRO, Washington de Barros; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 39.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 430.
[15] NERY, Rosa Maria de Andrade. Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 108-109.
[16] DETHLOFF, Nina. Familienrecht. 30.ed. Munique: C. H. Beck, 2012, p. 233-235.
[17] MADALENO, Rolf. Alimentos Compensatórios…ob. cit., p. 142.
[18] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Natureza Jurídica e Limites dos Alimentos Compensatórios: Uma Análise Doutrinário-Jurisprudencial no Brasil e no Exterior in Revista dos Tribunais…ob. cit., p. 269.
[19] FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedina, 2004, p. 666.
[20] MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: Critérios para a sua Aplicação. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 610.
[21] Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Espanha, França, Grécia, Holanda, Hungria, Inglaterra, Itália, País de Gales, Polônia, Romênia e Suécia.
[22] FERRAND, Frédérique; FULCHIRON, Hugues. La Rupture du Mariage en Droit Comparé. Paris: Société de Législation Comparée, 2015, p. 171-174. Não consideramos a realidade em vigor na Inglaterra e no País de Gales, pois que nesses países, diferentemente dos demais, inexiste a noção de regime patrimonial. Por oportuno, cabe salientar que, ao contrário do que se apregoa, o § 1587 do Código Civil alemão (Versorgungsausgleich), regulamentado pela Gesetz über den Versorgungsausgleich (VAStrRefG), de 3.4.2009, bem como o art. 12 bis da Lei italiana nº. 898/1970, disciplinam matérias diversas e inconfundíveis com a prestação compensatória.
[23] CORNU, Gérard. Droit Civil: La Famille. 9.ed. Paris: Montchrestien, 2006, p. 605.
[24] FERRAND, Frédérique; FULCHIRON, Hugues. La Rupture du Mariage en Droit Comparé…ob. cit., p. 178.
[25] BORCAN, Daniela; CIURUC, Manuela. Nouveau Code Civil Roumain: Traduction Commentée. Paris/Chasseneuil: Dalloz/Juriscope, 2013, p. 145.
[26] BÉNABENT, Alain. Droit Civil: La Famille. 3.ed. Paris: Litec, 1988, p. 276.
[27] MALAURIE, Philippe; FULCHIRON, Hugues. Droit Civil: La Famille. Coord. Philippe Malaurie e Laurent Aynès. 4.ed. Paris: Defrénois, 2011, p. 322.
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